O Cinema Nun’Alvares no Porto é um dos cinemas da minha infância. O cinema “de bairro” mais perto de minha casa, como já escrevi noutra Histoire du Cinema, era o Estúdio Foco, mas um jovem a crescer nesta zona no final dos anos 1980, início dos anos 1990, tinha o privilégio de estar perto de salas como o cinema Charlot (no centro comercial Brasília), o Pedro Cem na Rua Júlio Dinis ou, claro está, o cinema Nun’Alvares, um dos mais prestigiados.
Situado na rua de Guerra Junqueiro, curiosamente (ou não) numa das extremidades daquele que é chamado o bairro Hollywood do Porto (um bairro residencial de grandes vivendas e ruas arborizadas), o cinema Nun’Alvares abriu portas em 1959. Com uma única sala de 192 lugares, rapidamente se tornou um dos grandes centros cinéfilos da cidade. Não sei dizer exactamente quantos filmes vi aqui na infância (as minhas memórias estão naturalmente mais associadas ao Estúdio Foco) mas não tenho dúvidas que foram uns quantos. Sempre o recordei como um espaço agradável numa rua agradável.
Contudo, depois da glória dos anos 1980 e 1990, com a chegada dos centros comerciais e dos multiplexes (o centro comercial Arrábida abriu as suas 20 salas em 1996; o Norteshopping e as suas 8 salas seguiram-se em 1998) todos os cinemas de bairro do Porto (e de todas as outras cidades) foram lentamente perdendo a sua clientela, o seu prestígio e a sua capacidade para sobreviver. Muitas das salas fecharam de vez ou reconverteram-se para outros usos. As que se mantiveram abertas encontraram outras distribuidoras, mais pequenas, mais focadas em filmes europeus, independentes, alternativos ou documentais. O próprio Nun’Alvares, que a partir de 1996 começou a ser explorado pela distribuidora Medeia, passou a exibir precisamente este género de filmes, para o bem ou para o mal.
Para o bem porque há sempre cinéfilos cansados da desinspiração de Hollywood. Para o mal porque estes não se comparam às enchentes que fazem fila para ver os maiores blockbusters, e portanto é muito difícil um cinema destes ter retorno do seu investimento. Mesmo assim, quando finalmente fechou portas em Janeiro de 2006 após ter exibido ‘Oliver Twist’ de Polanski, o Cinema Nun’Álvares era um bastião de resistência. Era a única sala de cinema tradicional do Porto que ainda mantinha uma programação regular. Mas foi demais para a Medeia que decidiu não renovar o contrato que tinha com a empresa proprietária do espaço, a Ciura (Imobiliária Agrícola Urbana). Segundo fontes noticiosas da época que encontrei na Internet, o défice na altura de fecho rondava os 50 mil euros, quase três vezes mais do que a empresa tinha sustido no ano anterior. O número médio de espectadores por sessão não passava, aparentemente, das três ou quatro pessoas. Uma triste realidade para uma casa aberta há quase 50 anos. A imprensa muito especulou posteriormente qual seria o futuro do Nun’Alvares, mas a realidade é que nada aconteceu.
Confesso que na altura, como um jovem estudante universitário habituado há anos a ir a centros comerciais com os amigos, aceitei esta notícia como uma inevitável inevitabilidade, passe a redundância. Sempre gostei do ambiente do cinema de bairro, mas quando as grandes produções de Hollywood deixaram de ter lugar aí, e consequência da minha idade, fui-me afastando. Continuei a visitar estas salas tradicionais para eventos específicos (lembro-me que vi ‘My Darling Clementine’ de John Ford no Charlot por exemplo) mas não posso dizer que era propriamente um espectador assíduo. Tudo isso, contudo, estava prestes a mudar. Em meados de 2009, agora um jovem trabalhador solteiro, fui morar sozinho precisamente para bem perto do Nun’Alavares. Quis o destino que um par de meses mais tarde tenha sido anunciada a grande notícia que o cinema iria reabrir.
Três anos depois de ter fechado portas, o Nun’Alvares voltou a abri-las em Dezembro de 2009. E não foi uma abertura qualquer. A Malayka Cinemas fez uma aposta avultada (e na minha opinião acertada) para quebrar com o modelo de reabilitação que havia sido norma noutros cinemas de bairro (ou seja apelar a um público fora do mainstream) e em vez disso ir directamente à jugular. Mantendo a sua ocupação de cerca de 200 lugares, a sala foi completamente remodelada. As cadeiras novas eram incrivelmente confortáveis. Foram instalados sistemas de som e imagem digitais. E no mês de saída de ‘Avatar’, foi instalado um dos mais modernos sistemas de projecção 3D em Portugal. As salas não eram melhores nos centros comerciais, e era essa precisamente a ideia. A grelha de programação manteve alguns travos de cinema independente, principalmente em matinés, mas apostou-se seriamente, de novo ao contrário da maior parte dos cinemas de bairro reabilitados, na exibição dos grandes êxitos comerciais nas sessões nocturnas. Nas palavras do responsável Elias Macovela a ideia era que estes filmes “pagassem as contas”; as contas de um investimento inicial de 150 mil euros e de uma despesa mensal estimada em 5 mil.
Elias Macovela, o promotor do renascimento breve do Nun'Alvares entre o final de 2009 e o início de 2011 |
Com esta estratégia montada, o cinema arrancou logo com duas grandes estreias, a de ‘Alice in Wonderland’ de Tim Burton e ‘Avatar’ de James Cameron, e notícias da altura mostram um cenário risonho de salas cheias para estas duas estreias. Eu próprio fui experimentar este “nuovo cinema paradiso”. Recordo-me perfeitamente de sair do trabalho um pouco mais cedo numa sexta-feira de tarde para apanhar a sessão de ‘Alice in Wonderland’ algures pelas 18h. Deram-me uns óculos 3D para a mão e abriram-me as portas para uma sala extraordinária que já não visitava há mais de uma década. O velho espírito do cinema, que os centros comerciais de certa forma deturparam, estava de repente a ganhar vida no quarteirão onde moro. Foi uma experiência fantástica. Mais fantástico ainda (mais do que o filme) foi sair da sala não para um centro comercial abafado e apinhado de pessoas, mas para a rua, e poder ir a pé até casa, tranquilamente sentindo a brisa do início da noite no rosto e matutando sobre o filme.
Com o passar dos meses essa seria para mim a epitome da experiência Nun’Alvares nesta sua reencarnação no início da década de 2010. A experiência de ter uma sala de cinema mesmo ali ao virar da esquina; a possibilidade de poder ir e vir a pé; a capacidade de poder decidir sair do sofá e ver um filme numa sala de cinema tradicional em menos de cinco minutos. Perfeito. Morando sozinho, muitas foram as noites em que o fiz. Lembro-me que vi lá filmes como ‘Invictus’ (2009), ‘The Imaginarium of Doctor Parnassus’ (2009), ‘Brothers’ (2009), ‘Iron Man 2 (2010) ou ‘Robin Hood’ (2010). Aliás, tenho ideia que vi tudo, ou praticamente tudo o que o Nun’Alvares tinha para oferecer nas suas sessões nocturnas à excepção dos filmes de animação (‘Toy Story 3’ por exemplo), pois preferi ir ver as versões originais ao shopping, e não as dobradas que o Nun’Alvares decidiu exibir. Mas confesso que a minha frequência no Nun’Alvares deveu-se muito, precisamente, ao facto de morar no bairro e ir lá geralmente sozinho. Quando ia ao cinema com grupos maiores, dificilmente ia ali; um local sem possibilidade imediata de fazer compras e comer antes ou depois da sessão. O Nun’Alvares, orgulhosamente, nem pipocas tinha para vender nas sessões nocturnas (de acordo com mais uma notícia que encontrei), para supostamente não incomodar e manter o espírito tradicional. Bem, não concordo nada com isso. Não foram os shoppings que inventaram as pipocas, e se queriam mesmo atrair as famílias do bairro (afinal exibiram o ‘Toy Story 3’ em português!) então deveriam ter pipocas, não? E lucro é lucro, não se deviam ter dado a esse e a outros luxos se queriam sobreviver.
Mas esse para mim nem era o maior problema. Para mim o maior problema era a pouca rotatividade dos filmes. Com uma única sala, não há grande escolha. Entre a matiné e o serão só se pode ver um ou dois filmes diferentes por semana. Antigamente, os cinemas de bairro concorriam uns com os outros somente até certo ponto. Como há sempre várias estreias por semana, os cinemas podiam reparti-las. Mas isso acabou quando os centros comerciais passaram a ter numerosas salas. Todos puderam passar a exibir (quase) todos os filmes. O problema que eu comecei a sentir com o Nun’Alvares foi que, depois de ir ver o novo filme no seu fim de semana de estreia, tinha que esperar várias semanas até que ele saísse de exibição e chegasse um novo. Consegue um cinema destes sobreviver se cada cliente só lá vai uma ou duas vezes por mês? Lá está, dificilmente. E de permeio, se o cliente gosta de ver um filme por semana, ou se quer ver um filme diferente daquele que a sala está a exibir, aonde vai? Obviamente, ao centro comercial. Assim, nunca se habitua a “perder o mau hábito” em prol de um “regresso ao bairro”.
Digam o que disserem, para mim esta foi a razão do “fiasco”. Não havia rotatividade suficiente dos blockbusters para suster um público constante que pudesse pagar as contas do resto. Se o bairro inteiro ia ver o ‘Iron Man 2’ no fim de semana de estreia, para quê ter o filme em exibição mais duas ou três semanas? Claro que rodar filmes é caro, mas um acordo qualquer podia ter sido orquestrado com uma grande distribuidora. “Vocês dão-nos a capacidade para mudar de filme todas as semanas e nós em troca damos-vos uma percentagem dos lucros”. Mas em Portugal ninguém pensa desta forma integrada. Cada um faz o seu negócio para o bem ou para o mal. Cada um é uma ilha, mas depois culpa tudo e mais alguma coisa (os DVDs, a internet, os centros comerciais) se o negócio não corre bem.
Sinceramente, sempre achei que um acordo de rotatividade de filmes com uma distribuidora maior era a única estratégia viável para um cinema de bairro voltar a singrar. “Não precisa de ir ao shopping, caro espectador. O filme que você quer ver está aqui à beira de sua casa. Venha ver esta sexta feira o ‘Black Panther’. E para a semana teremos o ‘Jurassic World 2’. E na a seguir o ‘Mission Impossible 6’. Todas as sextas-feiras um blockbuster diferente para si”. Isto mesmo mantendo o cinema “independente” nas sessões da tarde para uma classe de público completamente diferente. Basicamente, o melhor de dois mundos. Mas se calhar estou a ser excessivamente ingénuo e utopista. E a distribuidora maior iria querer uma grande fatia dos lucros para aceitar este esquema (de novo a falta de visão integrada a longo prazo) o que provavelmente inviabilizaria o negócio logo à cabeça…
Seja como for, a verdade é que a nova glória do Nun’Alvares, para muita pena minha, foi sol de pouca dura. Rapidamente chegamos ao início de 2011 e o cinema já estava a passar por dificuldades. Os dois últimos filmes em exibição foram ‘José e Pilar’ e ‘Com que Voz’. Os posters de ambos ainda se encontram hoje, mais de sete anos depois, na vitrina do cinema (incrível!) e sempre que os vejo (passo a pé à sua porta várias vezes por semana) sinto sempre uma pequena nostalgia a apertar-me o coração. Associo à reencarnação deste cinema em 2010 muitas e boas memórias da minha vida de jovem profissional, e associo-lhe também um pedaço importante da minha história de amor. Mas principalmente, sinto pena por haver um bom e moderno espaço de cinema, tão pertinho de casa, que está a ser completamente desaproveitado. E esse é o sacrilégio maior de todos.
O espaço não está completamente abandonado. Todos os dias, os senhores do café ao lado guardam dentro do foyer de entrada do cinema as mesas e as cadeiras da sua esplanada, e de quando em quando vê-se que está a ocorrer um evento qualquer com muitos pais e crianças, provavelmente associado a uma das várias escolas nas imediações (nunca me dei ao trabalho de perguntar). Mas esse não é o propósito de um CINEMA, tal como soletram as gigantescas letras verdes que o edifício ainda ostenta. Quem salvará o Nun’Alvares, se é que algum dia poderá ser salvo? Faço essa pergunta a mim mesmo todos os dias, quando passo à sua porta. Talvez um dia, se tiver capital, possa ser eu.
O último post do blog do Cinema Nun'Alvares, datado de Março de 2011, possui uma emotividade desgarrada, ao afirmar de uma forma fria e com uma contrastante simplicidade: “AVISO. Informamos que o Cinema Nun'Álvares se encontra encerrado por tempo indeterminado. As nossas desculpas por qualquer inconveniente. Esperamos voltar em breve”. Nós, espectadores, esperamos o mesmo.
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