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Tirem-me deste filme, ep. V: O ‘pan-scan’ contra-ataca

O título desta crónica diz tudo. O ‘pan-scan’, essa horripilante invenção que durante várias décadas andou a mutilar a gloriosa arte do cinema, está de volta. Está de volta na internet e nos smartphones. Está de volta na forma como os filmes estão a ser promovidos e discutidos. E ninguém no mundo do cinema, de produtores, a distribuidores, a críticos e até ao público em geral, parece fazer caso disso. Isto é, a não ser aqui o velho do Restelo, que decidiu escrever sobre o assunto. Pode ser que alguém leia isto e alguma coisa se faça. O mais provável é que não, mas fica aqui expressa a minha revolta. Uma revolta bem revoltadinha.

Há uns meses inclui o ‘pan-scan’ na minha crónica ‘As três piores ideias de sempre da indústria cinematográfica (mais uma!)’. Aí expliquei com mais detalhe a génese do ‘pan-scan’ e porque me repugna tanto. Basicamente, para entender o ‘pan scan’ temos de traçar o historial dos formatos de imagem associados ao cinema. Desde os primórdios que um formato de imagem próximo do quadrangular (o vulgo 4:3) foi norma indiscutível, com raríssimas excepções. Só na década de 1950, com o advento da televisão, é que, para se diferenciar, o cinema adoptou um formato alargado, rectangular (o vulgo Widescreen), que impera até hoje nas suas múltiplas variantes.

O grande problema foi quando as televisões, outrora quadrangulares, começaram a passar estes filmes rectangulares. Na altura, algum iluminado achou que o letterboxing (ou seja, colocar barras pretas em cima e em baixo) não iria ser do agrado dos espectadores, que poderiam achar que a sua televisão estava avariada ou ficar descontentes com a imagem sobrante ser tão pequenininha. Por isso, o mesmo iluminado decidiu pelo mundo que a melhor solução era literalmente cortar o rectângulo do filme, desprezando os lados e criando um quadrado central que coubesse direitinho na televisão, sem margens. O processo que permitiu conceber isto é o malfadado ‘pan-scan’, assim chamado porque há um operador que literalmente anda a ‘scanarizar’ o filme, escolhendo que parte da imagem, frame a frame, é que tem a boa fortuna de ser mantida. Os filmes widescreen usuais perdem quase 40% da imagem graças a este processo, enquanto os de rácios extremos (como ‘Ben-Hur’ ou ‘Lawrence da Arabia’) perdem quase 75% da imagem! Inacreditável e horroroso.

Contudo, quase ninguém viu mal nisto e durante todas as décadas de 1980 e 1990, com a proliferação dos VHS, o ‘pan-scan’ vulgarizou-se de forma insana. Só no cinema é que se podia ver a imagem do filme tal como ela foi filmada. Na televisão ou em VHS éramos obrigados a ver uma versão mutilada, inúmeras vezes deserdada pelos próprios realizadores. Sidney Pollack, por exemplo, levou a tribunal num famoso julgamento uma televisão dinamarquesa por fazer um 'pan-scan' do seu filme ‘Three Days of Condor’ (1975).

Mas não foi este julgamento que salvou o cinema. Na realidade, foram os DVDs e a popularização da comercialização de televisões digitais ‘rectangulares’ na década de 2000. De repente, já não havia utilidade para o ‘pan-scan’ e o cosmos cinematográfico do home-cinema voltou a fazer sentido. Bem, ou quase. Restaram sempre os velhos VHS nas estantes dos cinéfilos e aqueles canais que, ao invés de comprar cópias novas dos filmes, se decidiram a esticar o 'pan-scan' (!!!), tornando todos os actores bem gordinhos. Mas os VHS sempre podem ser substituídos por DVDs ou Blu-rays (é o que tenho andado a fazer) e a maior parte das televisões por cabo há muito abandonou o ‘pan-scan’. Portanto, o que estava podre no reino da Dinamarca com o tempo curou-se. Isto é… até hoje.

A História tem a tendência a repetir-se, todos sabemos isso, e a cega sede de lucros e a cega necessidade de seguir as modas será sempre uma constante em todas as vertentes da nossa sociedade. O cinema não é excepção a esta regra. O regresso do 'pan-scan' é talvez inesperado, tão pouco tempo depois de ter desaparecido, mas não é de todo surpreendente. E infelizmente não é mentira. Não é um fenómeno que tem muitos meses. Aliás, não é um fenómeno que tem muitas semanas. Mas está aqui, entre nós, e pode ser encontrado numa internet perto de si, caro leitor.

A arte de filmar e fotografar vulgarizou-se totalmente nos dias de hoje. Todos temos no bolso máquinas poderosíssimas que nos permitem criar mini-filmes num segundo, sem pestanejar. Os telefones inteligentes até têm um formato próximo do widescreen, isto é, se os deitarmos, mas a maior parte destes novos realizadores urbanos não se dá a esse trabalho. Não dá tanto jeito para segurar no telefone. Assim sendo, a partilha e visualização de vídeos amadores nas redes sociais vulgarizou-se num rácio completamente diferente do usual; o rácio dos smartphones - um widescreen invertido, ao alto, uma espécie de, vou inventar agora um termo, slimscreen. Confesso que não tenho nada contra esse novo formato para partilhar vídeos amadores de gatinhos fofinhos ou de jovens a darem valentes quedas de skates. Agora os profissionais deviam ter mais juízo.

Até há bem poucas semanas a partilha de vídeos no Facebook originava uma imagem relativamente pequenina, porque o formato do mural do Facebook está feito numa lógica de visualização vertical e não horizontal. Portanto, só posso assumir que de novo algum iluminado em Hollywood terá achado que era preciso fazer qualquer coisa para dar mais destaque aos trailers, featurettes e demais vídeos promocionais que os estúdios continuamente partilham nas redes sociais. Mas então o que fazer? A solução não foi, certamente, difícil de encontrar. Quem fez ‘pan scan’ uma vez, pode sempre voltar a fazê-lo. É como andar de bicicleta. Mas neste caso uma bicicleta podre até ao tutano.

Eis que de repente, caro leitor, há poucas semanas, as páginas do Facebook da Sony Pictures, da Paramount e de todas as outras distribuidoras e produtoras da meca do cinema começaram a oferecer aos seus seguidores trailers, não num formato widescreen, mas num formato slimscreen, "optimizado" (com muitas, muitas aspas) para os smartphones. Repito: inacreditável e horroroso.

Vejam-se as duas imagens em baixo. À direita, as versões oficiais dos trailers de ‘Baywatch’ e ‘Baby Driver’, duas aguardadas estreias de 2017 para um público mais jovem, publicadas no Youtube no rácio usual, praticamente semelhante àquele em que o filme irá ser exibido nas salas de cinema. À esquerda, contudo, a versão Facebook de exactamente as mesmas cenas dos mesmos trailers, publicados nas respectivas páginas oficiais. Como se nota sem esforço, mais de metade da imagem está cortada, só para que o vídeo tenha um formato que torne a imagem maior e mais facilmente visível quando se faz scroll por esta rede social num computador ou num telefone.





É incrível que, sendo o cinema um meio de base visual, as grandes promotoras desprezem assim tanto a qualidade do próprio visual. A imagem obtida na parte direita das duas figuras foi o fruto do dispêndio de muito dinheiro, muito tempo e de muita energia criativa de um grupo alargado de artistas de cinema, de produtores, a realizadores, a actores, a uma equipa inteira de técnicos. Como se consegue cortar assim o fruto da sua arte num ápice, sem pensar duas vezes, só para encaixar no formato de uma rede social e de um telefone? É uma gigantesca falta de respeito. É descer baixo. É descer muito baixo. É não ter qualquer amor pela arte do cinema.

Ganhem vergonha. É o que eu digo. Ganhem vergonha! Nunca se venderam CDs só com os refrões das músicas para a sua duração ser menor. Nunca nenhum museu expôs um quadro parcialmente, com os extremos tapados, só para ocupar menos espaço. Mas por qualquer motivo, fazer isto parece perfeitamente válido no cinema. "A imagem está cortada em 75%? Ok, tudo bem. Siga!". O que interessa é a publicidade, passar a ideia geral, vender o conceito. A qualidade da arte, a integridade do artista, será sempre uma coisa secundária...

O 'pan-scan' regressou em força e aliou-se às redes sociais. Que horror. Tirem-me deste filme. Estou chateado. Estou muito chateado. Enerva-me profundamente cada vez que me aparece uma coisa destas no Facebook. Insurjam-se caros leitores. Insurjam-se comigo. Senão daqui a nada vamos ter versões ultra-violeta para telefones em 'pan scan', tal como tivemos as versões em VHS para os nossos velhos videogravadores. Em vez de andar para a frente, o cinema anda para trás. E tudo porque virar um telefone 90º para ver um trailer dá demasiado trabalho. Estamos assim tão preguiçosos como sociedade que é mais fácil mutilar uma obra de arte do que virar um telefone?  Fica a questão...

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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