Realizador: Mike Newell
Actores principais: Richard Chamberlain, Patrick McGoohan, Louis Jourdan
Duração: 100 minutos
Crítica: ‘The Man in the Iron Mask’ (em português ‘O Homem da Máscara de Ferro’), a adaptação televisiva britânica de 1977 da clássica história de Alexandre Dumas, é sem dúvida alguma um dos melhores filmes de aventura histórica ‘para a família’ de sempre da história do cinema. Tenho dito.
O leitor tem contudo de ter em atenção que eu posso ser um pouco tendencioso neste julgamento, porque devido a um acaso do destino, cresci com este filme. Tinha o VHS lá em casa, uma versão, se a memória não me falha, gravada pelo meu irmão mais velho da RTP algures no início dos anos 1990, e revi-o vezes sem conta com a minha família. E o filme estava tão bem feito aos meus jovens olhos, era tão cativante na sua aventura, que alimentou imenso as minhas fantasias e brincadeiras de infância e pré-adolescência. Tanto que, quando uns anos depois, em 1998, tinha eu 14 anos de idade, Hollywood lançou a sua adaptação blockbuster com um Leonardo DiCaprio saidinho de ‘Titanic’, senti uma enorme indignação. Como era possível terem arruinado uma história tão fantástica? Como era possível terem desfeito esta gloriosa fantasia? Como era possível terem feito um remake tão pobre de um filme tão rico?
"The Man in the Iron Mask’ a adaptação televisiva britânica de 1977 da clássica história de Alexandre Dumas, é sem dúvida alguma um dos melhores filmes de aventura histórica ‘para a família’ de sempre da história do cinema (...) É uma fantástica fantasia cinematográfica, (...) incrivelmente bem construída, com uma capacidade ímpar de estimular a nossa imaginação (...) Um verdadeiro ícone do espírito basilar do entretenimento."
Claro que hoje sei que não é bem assim. O filme inglês de 1977 é “apenas” um telefilme e portanto é muito mais simples e directo na sua aventura, e não é tão fiel à obra de base como o opulento filme dos anos 1990, apesar de tudo, acaba por ser. Mas é essa simplicidade, aliada a um sem número de factores intrínsecos que o dinheiro não pode comprar, que garantem a sua imortalidade e o seu infinito apelo ao espectador, principalmente o espectador jovem sedento de grandes aventuras cinematográficas que estimulem a sua imaginação. Para mim na altura não havia duvidas. ‘The Man in the Iron Mask’ de 1977 era a versão definitiva desta história (nunca tinha visto também a versão clássica de 1939). E apesar de não ter voltado a rever nenhuma das adaptações em mais de uma década, sempre fiquei com essa impressão bem vincada no meu coração cinematográfico.
Esta semana, tantos anos depois, decidi fazer a há muito devida visita a este velho amigo de infância. Por isso foi com grande excitação que pus a dar a minha cópia de fraca qualidade do filme e entrei de novo na sua fantasia… Foi como se nunca tivesse crescido. Foi como se o filme nunca tivesse envelhecido. ‘The Man in the Iron Mask’ é ainda uma fantástica fantasia cinematográfica. Tal como os grandes filmes de piratas, tal como as grandes obras sobre os mosqueteiros, é também um pedaço de cinema incrivelmente bem construído, em toda a sua subtileza, com uma capacidade ímpar de estimular a nossa imaginação e de nos convidar a mergulhar na sua aventura. Quem precisa de efeitos especiais e 3D? Ninguém, se existem filmes como este, verdadeiros ícones do espírito basilar do entretenimento.
Contudo, ao mesmo tempo, ‘The Man in the Iron Mask’ é também um produto do seu tempo. Os swinging sixties foram uma profunda época de mudança social e cinematográfica. Enquanto o velho sistema de Hollywood produzia opulentos blockbusters com elencos all-star para tentar salvar a cara, eram movimentos como a Nouvelle Vague ou o do ‘angry young man’ inglês que mais contribuíram para a reinvenção do cinema moderno e, como consequência, para o corte entre gerações. Em Inglaterra, filmes como ‘Darling’ (1965) ou ‘Blowup’ (1966) mostravam um outro lado da sociedade, a face sombria do flower power, e inevitavelmente chegou-se ao cinema decadente, alheado, revoltado, perdido dos anos 1970; aquele de obras como ’Get Carter’ (1971) ou ‘Don’t Look Now’ (1973).
"Richard Chamberlain tem uma fantástica, e dual, interpretação, trazendo à memória o carisma e o charme aventureiro de Errol Flynn, e dando uma forte credibilidade a todo o filme. (...) Soberbamente filmado em dois palácios em França (...), ‘The Man in the Iron Mask’ tem um fabuloso uso de exteriores (...) e um cativante uso de interiores, o que permite alimentar a sua alma fantasiosa e transportar o público para pleno século XVII"
Se eram estas as obras que mais caracterizavam o cinema britânico, outro estilo surgia como um forte contraponto. Em todas as épocas, creio eu, há sempre lugar para o escapismo, por mais negras que as coisas pareçam, e o cinema é a forma de escapismo suprema. É talvez portanto pouco surpreendente notar que neste contexto surgiram também algumas das mais fascinantes aventuras cinematográficas, ao mesmo tempo um deturpar e um aligeirar do peso da década, criando assim uma ponte entre o novo e o velho cinema. O cinema de acção podia estar a enveredar pelo policial duro e sujo de Popeye Doyle, Bullit ou Dirty Harry, mas Roger Moore era o novo James Bond, com um bem-vindo toque de sarcasmo e ironia. ‘Deliverance’ (1972) ou ‘Dear Hunter’ (1978) mostravam o lado mais negro de homens levados ao limite, mas Andrew V. McLaglen entretinha-nos com filmes-missão cheios de adrenalina e com elencos de luxo quase exclusivamente masculinos, como ‘Wild Geese’ (1978) ou ‘Espace to Athena’ (1979). E as adaptações dos clássicos regressaram, de uma forma que já não se via desde os exuberantes filmes de baixo orçamento em Technicolor dos anos 1950 como por exemplo ‘At Sword’s Point’ (1952).
No início da década de 1970, Richard Lester lançou a sua exuberante e cómica adaptação em duas partes da obras de Dumas, ‘The Three Musketeers’ e ‘The Four Musketeers” (1973-1974, já criticados em Eu Sou Cinema), um dos pais do blockbuster de Verão antes do termo existir, com um elenco glorioso incluindo Michael York, Charlton Heston, Faye Dunaway e ainda Richard Chamberlain como Aramis. Aliás, seria Richard Chamberlain (famoso de séries como ‘Dr Kildare’ ou ‘Shogun’), com o seu porte altivo e um brilho travesso no olhar, que se tornaria o grande rosto das adaptações inglesas da obra de Dumas. É ele o Conde de Monte Cristo no filme de 1975. E é ele também o Homem da Máscara de Ferro do filme de 1977, com uma fantástica, e dual, interpretação, trazendo à memória o carisma e o charme aventureiro de Errol Flynn, e dando uma forte credibilidade a todo o filme.
Com o selo de “Lew Grade apresenta” (o produtor de épicos que nesse mesmo ano apresentaria ‘Jesus of Nazareth’ de Zeffirelli, uma das maiores mini-séries de todos os tempos), ‘The Man in the Iron Mask’ tem atrás das câmaras o director de fotografia Freddie Young (que ganhou três Óscares pela fotografia dos épicos de David Lean) e o realizador Mike Newell. Newell limou a sua arte na televisão inglesa, passou para os telefilmes e acabou por ter variados sucessos a partir dos anos 1990 como ‘Four Weddings and a Funeral’ (1994), ‘Mona Lisa Smile’ (2003), um dos Harry Potters (‘Goblet of Fire’, 2005) e até ‘Prince of Persia: The Sands of Time’ (2010). Neste que é um dos seus muitos telefilmes da década de 1970, Newell é extremamente inteligente na forma como gere o material, e esse é sem dúvida um dos maiores trunfos desta obra e fonte do tal apelo intrínseco a que me referi no início.
"A mistura, talvez paradoxal destes elementos; por um lado a plena fantasia de um romance histórico com soberbo guarda-roupa, design de produção e fotografia a condizer, e por outro uma aura mais negra que tanto paralelismo tinha na década em que o filme foi feito (...) – torna cada cena desta obra incrivelmente fascinante. (...) E depois há a aventura propriamente dita, que não fica atrás."
Soberbamente filmado em dois palácios em França (nenhum efeito especial reproduziria a beleza realista destas localizações), ‘The Man in the Iron Mask’ tem um fabuloso uso de exteriores (então as cenas da corte, nos jardins do rei, são incríveis) e um cativante uso de interiores, o que permite alimentar a sua alma fantasiosa e transportar o público para pleno século XVII. Ainda recentemente vi ‘A Little Chaos’ (2014) de Alan Rickman, também passado na corte do Rei Sol, e apesar dos meios modernos e da assistência do computador, a atmosfera nunca está tão bem captada. Aqui o filme ganha com a, digamos, ‘sujidade’ inerente ao cinema dos anos 1970, afastando-se do estilo de ironia sarcástica e muitas vezes kitsch de ‘The Three Musketeers’ (1973), para oferecer um vincado sentido de realismo. caracterizado pela fotografia e pelos cenários mais naturalistas (materializados em composições de grande beleza), mas também por subcorrentes de subtil intensidade. A mistura, talvez paradoxal destes elementos; por um lado a plena fantasia de um romance histórico com soberbo guarda-roupa, design de produção e fotografia a condizer, e por outro uma aura mais negra que tanto paralelismo tinha na década em que o filme foi feito (veja-se os toques de paranóia que Louis XIV demonstra e o desespero de Phillipe na prisão) – torna cada cena desta obra incrivelmente fascinante.
E depois há a aventura propriamente dita, que não fica atrás. Sem esforço, esta obra consegue transladar a excitação da aventura cinematográfica moderna para o meio clássico sem nunca, por um único segundo, parecer artificial. Pode ser, admitidamente, uma simplificação do romance de base, e ser extremamente directa e pouco ramificada em termos de psicologia das personagens e tramas secundárias, mas é uma propositada e bem-sucedida simplificação, que surge da necessidade do telefilme que é, mas que acaba por tornar a aventura ainda mais intensa e ainda mais cativante. Recordemos o ritmo das maiores aventuras cinematográficas, de ‘Captain Blood’ (1935) ao primeiro Indiana Jones. Recordemos o universo fantasioso das adaptações de ‘Conde de Monte Cristo’, ‘A Ilha do Tesouro’, ‘As Minas de Rei Salomão’ ou qualquer outra aventura de época que desde sempre cativou leitores e cinéfilos. Este ‘The Man in the Iron Mask’ existe nesse comprimento de onda, desenvolvendo-se a uma passada incrível (100 minutos que passam a voar) e onde tudo está feito para satisfazer e exacerbar, com uma segurança tremenda, essa nossa noção romântica das aventuras de espadachins e das intrigas da corte.
Logo na primeira cena assistimos a um ataque a uma casa de campo, embalados por uma banda sonora intensa. Phillipe (Chamberlain) é retirado à força da sua cama e levado para a Bastilha, onde é encarcerado sem que lhe digam qual é o seu crime. Mas tarde descobrimos que foi posto lá para sua própria protecção por Colbert (um sensato ministro da Corte interpretado com sagacidade pelo veterano Ralph Richardson) e D’Artagnan (o francês, o único do elenco, Louis Jourdan, que pode ter sido um carismático galã do cinema dos anos 1940 e 1950, mas que não tem o perfil, a pose ou a idade para interpretar o famoso mosqueteiro, especialmente depois de termos visto Michael York no filme de 1973…). Phillipe não o sabe, mas é a cara chapada do tirano rei Louis XIV, não fosse ele o seu irmão gémeo separado à nascença e o legítimo herdeiro do trono de França.
"O filme desenvolve-se a uma passada incrível (...) onde tudo está feito para satisfazer e exacerbar a nossa noção romântica das aventuras de espadachins e das intrigas da corte. (...) Nota para a personagem de Louise, a belíssima e delicada Jenny Agutter (...) que ajuda a dar um propósito às personagens (a fina linha entre a paixão, o desejo e o poder) e portanto oferece um interessante contraponto emocional à aventura."
A ideia de Colbert e D’Artagnan é manter Phillipe escondido na Bastilha enquanto urdem o seu plano, longe das garras de Duval (um novo e pouco influente Ian Holm) e do seu superior, o maléfico Fouquet (um magnífico Patrick McGoohan), um ministro da Corte que tem o Rei sob influência (de novo Chamberlain que dá uma inesperada profundidade à superficialidade do monarca), e que portanto está disposto a tudo para encontrar e aprisionar Phillipe. Já dizia Hitchcock que quanto melhor o vilão, melhor o filme, e a interpretação viperina de McGohan é memorável (espectadores mais recentes podem recordá-lo como o Rei em ‘Braveheart’, 1995); daquelas personagens que o público, principalmente o mais jovem, despreza e adora em partes iguais.
Um acaso faz com que Fouquet descubra que Phiillipe está na Bastilha e, a mando de Louis XIV este é enviado para uma longínqua prisão-ilha (o fraquinho de Dumas) onde a máscara que dá o título ao filme lhe é posta para que ninguém saiba a sua verdadeira identidade. Contudo, D’Artagnan vai liderar o assalto a essa prisão (os outros mosqueteiros, presentes no livro e na versão de 1998, estão ausentes aqui) e Phillipe é resgatado. É então que de Colbert e D’Artagnan abrem o jogo e treinam Phillipe (mais uma grande sequência) para o golpe de estado mais fantástico de que há memória; a substituição de Louis por Phillipe no trono, sem que ninguém se aperceba. Conseguirão? De que forma? O filme tem um trabalho de mestre a criar-nos a expectativa e a deixar-nos presos à cadeira quando o plano é posto em marcha.
Pelo meio nota ainda para a personagem de Louise, a belíssima e delicada Jenny Agutter (uma das grandes sex symbols do cinema inglês dos anos 1970 e 1980), que aqui tem uma performance contida como uma dama da corte cobiçada quer por Fouquet quer pelo Rei, mas que na realidade está apaixonada por Phillipe. A sua presença é um pouco secundária, mas é muito mais do que apelo visual ou o lugar-comum de uma sub-trama amorosa. Ela ajuda a dar um propósito às personagens (a fina linha entre a paixão, o desejo e o poder) e portanto oferece um interessante contraponto emocional à aventura.
"Um dos mais underrated filmes de sempre, incompreensivelmente esquecido pelos críticos e pelos livros da especialidade, este ‘The Man in the Iron Mask’ é uma aventura cinematográfica suprema (...) Tem a glória de ser construído (...) pela força do seu Cinema (o soberbo visual, as actuações), o encadeamento vibrante das suas cenas (gerindo brilhantemente as emoções do espectador) e a subtileza da sua história e das suas personagens"
Tudo somado, parece incrível que este ‘The Man in the Iron Mask’ seja “apenas” um telefilme (apesar de ter sido lançado nos cinemas em alguns países da Europa). Parece incrível porque é uma obra-prima em inúmeros departamentos, do design de produção às actuações, mas o elemento mais importante de todos é a fabulosa forma como o realizador conduz esta aventura. O filme, por exemplo, praticamente não tem uma cena de acção (há o resgate da prisão e pouco mais), ao contrário do que aconteceria se esta adaptação fosse feita agora. Mas o magnetismo das personagens é tão forte, a estrutura da trama é tão compacta, sempre concentrada no seu propósito, que o filme tem uma intensidade inata. Tanta que facilmente perdoamos as suas pouquíssimas falhas, que na maior parte das vezes advêm do seu estatuto de telefilme, como por exemplo algumas transições em fade de música e imagem (cortes abruptos que parecem querer dizer: “ponham um intervalo aqui”!), ou o seu quase repentino final, quando a marca dos 100 minutos é atingida.
Um dos mais underrated filmes de sempre, incompreensivelmente esquecido pelos críticos e pelos livros da especialidade, este ‘The Man in the Iron Mask’ é uma aventura cinematográfica suprema, entretenimento de classe par excellence. Tem a glória de ser construído, não por uma imposição, muitas vezes artificial, de cenas excitantes (como é geralmente norma neste tipo de filmes), mas sim pela força do seu Cinema (o soberbo visual, as actuações), o encadeamento vibrante das suas cenas (gerindo brilhantemente as emoções do espectador) e a subtileza da sua história e das suas personagens (veja-se ainda, como exemplo, a profundidade de uma personagem tão secundária como a Rainha e a sua influência na trama numa brilhante cena final). No fundo, esta é simplesmente uma grande história, um pináculo da fantasia aventureira, contada da forma mais perfeita e eficaz possível, sem excessivo e desnecessário espalhafato, gigantesca mestria na direcção (de longe, o melhor filme de Newell), actuações memoráveis com um charme gracioso, e o balanço perfeito entre aquilo que nos oferece e aquilo que propositadamente não nos oferece, para estimular a nossa imaginação. É raro ver esta característica, tão proeminente nos grandes livros, num filme. Mas este têm-no.
"No fundo, esta é simplesmente uma grande história, contada da forma mais perfeita e eficaz possível, (...) com actuações memoráveis com um charme gracioso, e o balanço perfeito entre aquilo que nos oferece e aquilo que propositadamente não nos oferece, para estimular a nossa imaginação. É raro ver esta característica, tão proeminente nos grandes livros, num filme."
Disse e repito, ‘The Man in the Iron Mask’ é sem dúvida alguma um dos melhores filmes de aventura histórica ‘para a família’ de sempre da história do cinema, e toda a gente o deveria ver pelo menos uma vez. Se já o viu em jovem, caro leitor, sabe perfeitamente de que é que estou a falar (é só ver os inúmeros comentários entusiastas e saudosistas no imdb). Se não o viu, nunca é tarde de mais para se ser jovem outra vez, e ver um filme de aventura de época fantástico, para todas as idades, que nunca irá esquecer. Garantido.
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