Realizador: Woody Allen
Actores principais: Anthony Hopkins, Naomi Watts, Josh Brolin
Duração: 98 min
Crítica: Desde que comecei a escrever críticas tenho relatado religiosamente o cinema de Woody Allen, ano após ano. O leitor pode ler já nestas páginas as críticas a ‘Midnight in Paris’ (2011), ‘Blue Jasmine’ (2013), ‘Magic in the Moonlight’ (2014) e ‘Irrational Man’ (2015) e elas descreveram na perfeição a forma porque adoro o seu cinema. Não é apenas o humor satírico que caracteriza o início da sua carreira, nem o fascinante olhar crítico sobre a vida e o sobre o amor que se lhe seguiu, nem o brilhantismo do género walk and talk que instituiu, nem a irreverente personalidade trágico-cómica, de neurótico inconformado, que concebeu, nem mesmo o sabor de esperança e fantasia que (quase) todas as suas obras contêm, principalmente as mais recentes. Na realidade, é a conjunção perfeita de todos estes factores, para criar um estilo de cinema muito próprio: o estilo Allen.
O que muitos criticam neste estilo é contudo uma das coisas que mais me fascina. O trabalho de Allen, salvo algumas, incontornáveis, obras-primas (‘Manhattan’, ‘Zelig’, ‘Stardust Memories’, ‘Vicky Cristina Barcelona’), sempre foi mais grandioso como um todo do que individualmente. Allen pode ser, sem dúvida alguma, um dos maiores génios da história do cinema, mas nunca se aninhou nessa condição. Prefere viver a trabalhar, e trabalhar para viver, filmando todos os Verões o filme que irá lançar nos cinemas no Verão seguinte, mesmo que isso implique que o filme nunca seja tão sublime como se Allen desse uma de Kurosawa, Scorsese ou Kubrick e deixasse meia dezena de anos entre filmes. Não é isso que interessa a Allen. Interessa-lhe continuamente mergulhar no universo das suas personagens, e recontar as suas histórias de vários pontos de vista.
Como escrevi recentemente na minha crítica a ‘Zootopia’, Agatha Christie, por exemplo, conseguia re-escrever o mesmo livro (a mesma história base, os mesmos twists), sem que ninguém se apercebesse disso, tal era o engenho da sua escrita e o seu interesse pelas personagens. O cinema de Allen funciona de forma similar. As suas estruturas cinematográficas podem ser semelhantes, e as histórias de base, girando sobre temáticas de existencialismo, amor, e a vida em geral, também, mas Allen consegue continuamente reciclar o seu material. Os elencos fortes, as personagens memoráveis, os diálogos sempre frescos, sempre engraçados, e os pequenos, infinitamente inspirados, twists emocionais e argumentais que proporciona, são suficientes para que a história tenha continuamente força e apelo, para que o material continuamente se transcenda, para que cada filme seja uma pérola especial e única.
Mesmo assim, é uma inevitabilidade desta forma de fazer cinema que de quando em quando surja um filme que, em comparação, tem de ser considerado menor. Fazer um filme por ano é obra, fazer um grande filme por ano só está acessível aos génios, mas esta pressão simpática que Allen impõe a si próprio é por vezes demasiada. Há filmes de Allen que falham por diversos motivos, e muitas vezes a explicação parece ser que nunca explorou devidamente a boa ideia que teve, que não conseguiu encontrar a perfeita conjugação dos elementos (que geralmente estão lá) para fazer com que se desse o tal clique para a genialidade. Nestes casos fica a sensação que se tivesse tido mais tempo, mais uns meses de filmagens, o teria conseguido obter. Mas não é essa a sua forma de trabalhar e Allen acarreta a responsabilidade dessas obras menores (que contudo são melhores que boa parte do cinema que anda para aí), respondendo da melhor maneira que sabe; faz um grande filme no ano seguinte. Desta forma, por exemplo, os dramas íntimos esquecidos ‘September’ (1987) e ‘Another Woman’ (1988) foram seguidos pelos muito melhores ‘Crimes and Misdemeanors’ (1989) e ‘Alice’ (1990). O fraco ‘Melinda and Melinda’ (2004) foi seguido do genial ‘Match Point’ (2005), que revitalizou o seu nome na América. E de igual modo, antes de produzir ‘Midnight in Paris’ (2011) ou ‘Blue Jasmine’ (2013), Allen realizou ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ (2010).
Eu vi ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ duas vezes. A primeira foi no cinema em 2010, a segunda foi agora em blu-ray no conforto do lar. Embalado pela vibrante energia que Allen havia encontrado na década de 2000 com a trilogia Scarlett (‘Match Point’, 2005; ‘Scoop’, 2006; ‘Vicky Cristina Barcelona’, 2008), bem como ‘Cassandra’s Dream’ (2007), na minha perspectiva um dos mais underrated filmes de Allen de sempre e ‘Whatever Works’ (2009) uma hilariante comédia, ver no cinema ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ foi uma gigantesca decepção. Talvez não por não ser uma obra-Allen (é), mas pelo contraste com os filmes imediatamente anteriores ser demasiado e apanhar o espectador de surpresa. Nas minhas notas chamei-lhe um fiasco, o pior filme de Allen nas duas últimas décadas e pouco digno quer do seu talento, quer do talento do grande leque de actores famosos que o filme contém.
Agora, contudo, depois de o rever, estou disposto a mudar ligeiramente a minha opinião. Sinceramente, gostei mais do filme na segunda visualização, provavelmente por já ter baixado a fasquia do que estava à espera, ou melhor, por ter ficado menos preocupado em seguir a história ou absorver a típica moral-Allen (que quase não tem ou é uma cópia menor de outros filmes do próprio) e assim ficar livre para me deixar levar mais pelas personagens, que basicamente são o cerne deste filme e tudo o que ele tem para oferecer.
Sumariamente, ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ entrelaça a história de dois casais para criar uma alegoria de um tema muito bem definido: o descontentamento com o status quo e como a sofreguidão de querer mais da vida, a nível pessoal, a nível amoroso e até a nível espiritual, pode levar as pessoas, ironicamente, a um estado pior em relação àquele em que inicialmente estavam.
O primeiro casal é constituído por Alfie (um rotineiro Anthony Hopkins) e Helena (uma surpreendente e soberba Geema Jones, talvez porque estamos muito pouco habituados a vê-la). Alfie quer sentir-se jovem outra vez, por isso despacha a mulher e inicia a vida jet set londrina dos ginásios, jogging e comida saudável. Pouco depois apaixona-se por uma prostituta muito mais nova, Charmaine (a engraçada Lucy Punch na tradição do papel que valeu o Óscar a Mira Sorvino em ‘Mighty Aphrodite’, 1995), que agarra a oportunidade para casar com um homem rico. Já Helena, após o divórcio, fica cada vez mais instável psicologicamente, tornando-se assim presa fácil de uma cartomante (Pauline Collins), que lhe promete continuamente boas novas ao virar da esquina. Allen sempre teve um fraquinho pela comédia crítica ao espiritualismo (veja-se o recente ‘Magic in the Moonlight’), mas é neste filme que tem o seu olhar mais acutilante, muito embora, como em todos, é o inocente que acaba por ser mais redimido no final.
O segundo casal é constituído por Sally, filha do primeiro (uma Naomi Watts à medida) e por Roy (um adequado Josh Brolin). Sally trabalha numa galeria de arte e sonha em abrir o seu próprio espaço. Contudo, os seus sonhos são sempre postos em espera para suportar o do marido, um escritor que teve um grande sucesso há alguns anos, com o seu primeiro romance, mas que nunca mais correspondeu às expectativas da crítica. Roy passa os dias em casa supostamente às voltas com a escrita do novo romance, mas que nunca se materializa, e encontramo-lo cada vez mais enfadado com a vida, com o casamento e principalmente com a sogra, que constantemente aparece em sua casa sem ser convidada para contar, com uma esperança cega e mais do que uma vez estimulada pela bebida, as últimas promessas da sua cartomante.
A primeira metade do filme entretêm-se (é talvez esta a palavra correcta) a estabelecer estas quatro personagens, numa forma algo lenta e descompassada. Tal como ‘Vicky Cristina Barcelona’ o filme é narrado por uma voz off desprovida de sabor e ritmo (não seria óptimo se fosse a do próprio Allen, para compensar a sua ausência na tela?!) e o clássico estilo walk and talk acaba por ser muito menos vibrante porque neste caso os diálogos são mais rotineiros e raramente têm a deliciosa magia da prosa de Allen. Por isso mesmo, não conseguem ser uma vista privilegiada para o âmago das personagens como é costume nos seus filmes. Pelo mesmo motivo, os diálogos acabam por importar muito menos que a ideia que está subjacente ao filme, a moral do todo, que é revelada, finalmente, na segunda parte.
Depois de estabelecer as personagens, o filme fica definitivamente melhor, encontrando um ritmo mais eficaz e contendo cenas mais interessantes que acompanham os seus twists dramáticos, já que Allen decide recorrer claramente aos seus elementos vintage para espevitar o filme e trazê-lo de volta para uma zona de conforto, quer para ele, quer para o público. Cada personagem principal terá uma ou mais tentações pelo caminho e a ilusória promessa de uma vida melhor a vários níveis. Helena fica cada vez mais dependente da sua cartomante e conhece um simpático viúvo dono de uma livraria sobre o oculto. Alfie decide casar com a prostituta, endividando-se para lhe dar tudo o que ela deseja; um apartamento, roupas e jóias. Sally apaixona-se pelo seu novo patrão (um monocórdico António Banderas), que tem o charme que falta ao seu marido e uma suposta vulnerabilidade ao confessar a Sally intimamente que o seu casamento está a desfazer-se…
Já Roy (em quem o filme acaba desequilibradamente por se focar mais) apaixona-se pela vizinha da frente (a exoticamente bela Freida Pinto, acabadinha de sair de ‘Slumdog Millionaire’, 2008), ela própria hesitante com o seu iminente casamento. A persistência de Roy acaba por seduzi-la e ambos deixam as suas respectivas caras metades para viverem juntos. É nesse momento que Roy tem uma oportunidade de cometer um crime (um roubo, não um homicídio como havia sido norma no cinema recente de Allen) que lhe poderá dar a hipótese de voltar ao topo do mundo literário… Mas não passará muito tempo até que ele, e quase todas as restantes personagens, se comecem a arrepender das suas escolhas, sendo que só a mais inocente e a mais crédula (aquela última cena de Gemma Jones é absolutamente brilhante) é que realmente encontrará a felicidade.
Tudo somado, e apesar de terminar bastante melhor do que começou, não creio que ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ consiga realmente ser considerado um bom filme, pelo menos tendo em conta o longo historial da carreira de Allen. Todas as nuances argumentais que possui já foram vistas, e melhor, noutros filmes deste realizador, e falta aquele toque de magia, comicidade, e até dramatismo à la Allen (que há muito provou que não precisa de ser cómico para ser genial) para que as cenas, e a história em geral, se transcendam e sejam cativantes. A interligação entre as histórias cruzadas é pouco forte e as punchlines cómico-dramáticas não só são previsíveis como artificialmente pungentes, uma ratoeira na qual Allen já não caia desde os seus primeiros dramas no final dos anos 1970 e que destoa completamente com a sua extremamente bem conseguida veia mais negra pós ‘Match Point’.
O resultado final é portanto uma amálgama emocional sobre a tragicomédia da vida, de como após tantas mudanças, após tanta esperada felicidade, acabamos por ficar tão mal, ou até pior, que o ponto de partida. É preciso admitir que o elenco é forte e que este filme acaba por pertencer às interpretações, que correspondem (a excepção é claramente Banderas, esquisitíssimo ao tentar imitar o nervoso estilo de Allen!) e às personagens, que de certa forma também correspondem pois como sempre estão plenas de naturalidade e de universalidade. Mas apesar da mensagem subjacente e das interpretações, o tal clique a que me referi no início desta crítica, o tal elemento de diversidade no universo constante do cinema de Allen, nunca se dá. O filme e as personagens permanecem perdidas num limbo entre o dramático e o humorístico durante 90 minutos sem nunca se decidirem bem o que querem ser, e tudo se processa no b-a-ba da rotina de Allen. Fica a ideia que ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ é uma mistelada de boas ideias de outros filmes de Allen, com personagens fortes que encaixariam muito melhor nesses filmes, que aterram aqui apenas para provar a moral que Allen pretende oferecer ao público e não para realmente contar uma história…
Entre ‘Melinda and Melinda (2004) e ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ Allen fez cinco grandes filmes. Entre ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ e o mais recente, menos conseguido, ‘Irrational Man’ (2015), tivemos pelo menos mais três grandes obras (a excepção será ‘To Rome with Love’ que, bem, é válido como comédia). Se Allen fizer um filme pior de cinco em cinco anos, eu pessoalmente não me importo. É a prerrogativa do génio, e uma inevitável consequência do seu modo de trabalhar. ‘You Will Meet a Tall Dark Stranger’ é um filme em que o todo é muito maior que a soma das partes, mas a vantagem é que quer o melhor todo, quer as menos conseguidas partes têm, apesar de tudo, o toque de Allen. É essa a marca insubstituível do seu cinema, mesmo do seu pior. E por isso é que regressamos continuamente no ano a seguir, para mergulhar de novo no seu universo. Daqui a umas semanas será ‘Café Society’ (2016) e, como de costume, mal podemos esperar…
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