Nesta era em que o cinema americano perdeu a arte do genérico, e cada filme parece desesperado em chegar logo à primeira cena bombástica, não vá o público sair da sala e reclamar o seu dinheiro de volta, os filmes do James Bond constituem raras excepções. Mais por tradição do que propriamente por motivação, é certo, felizmente os filmes do mais famoso espião britânico são dos poucos que ainda nos oferecem essa entrada maravilhosa de acomodação ao filme que dá pelo nome de créditos iniciais. E com os créditos surge inevitavelmente a música.
Quando pensamos naquilo que os filmes do James Bond deram à história do cinema é fácil enumerar uma série de coisas; os avanços tecnológicos em termos de efeitos especiais, as cenas de acção de cortar a respiração, os magníficos cenários de Ken Adams, o charme de um sem número de Bond-girls. Mas também pensamos na arte de Maurice Binder, o génio por detrás dos primeiros genéricos. E pensar nisso é pensar imediatamente noutra coisa: nas músicas. Quem pode esquecer a voz de Shirley Bassey (na fotografia com John Barry) a pronunciar ‘Goldfinger’? Quem não sabe cantarolar o tema de Monty Norman que o arranjo de John Barry tornou imortal?
As músicas de James Bond são um género musical por direito próprio, que ainda hoje movem multidões de uma forma tão intensa como quando eram uma novidade. Cinquenta anos depois do primeiro filme de James Bond, o single de ‘Skyfall’, da autoria de Adelle, vendeu mais de cinco milhões de cópias, para além de ter ganho o Óscar de Melhor Música. Com cada filme que é lançado, a qualidade da música do genérico é motivo de discussões quase tão acesas como a qualidade do filme em si, e a escolha dos cantores e compositores parece ser tão fulcral quanto a escolha dos próprios actores e realizadores dos filmes. E os dramas de bastidores (as músicas rejeitadas, os cantores inicialmente contratados e despedidos) fazem parte do imaginário cor-de-rosa desta saga, que o cinéfilo mais dedicado, se tiver coragem para o admitir, consome como a mais brejeira telenovela.
Eu estou aqui hoje para o admitir. Culpado. Confesso, também me envolvo nestas telenovelas e já pesquisei sobre as várias músicas que nunca viram a luz do dia porque foram rejeitadas, porque foram substituídas por outras que hoje o público tão bem conhece. É um exercício fascinante, cheio de surpresas, paradoxos e escolhas absolutamente incompreensíveis. Caro leitor, mergulhe comigo no universo das músicas de James Bond que por uma nesga nunca o foram, e acompanhe-me neste countdown, da pior para a melhor (na minha opinião claro está!). Imagine, por breves momentos apenas, estas músicas nesses filmes. Algumas resultariam, sem dúvida, muito melhor do que a oficial…
15. “The Living Daylights” para o filme ‘The Living Daylights’ (1987). Composto e interpretado por Pet Shop Boys.
Depois do estrondoso sucesso de vendas do single dos Duran Duran para ‘A View to a Kill’, os produtores do James Bond abandonaram as vozes femininas clássicas e abraçaram os cantores da era moderna. O comercialismo, como sempre, a vir ao de cima. A primeira escolha para compor o tema do filme de estreia de Timothy Dalton no papel de Bond foram os Pet Shop Boys. Antes de serem despedidos e substituídos pelos A-ha (que diga-se compuseram uma canção bastante interessante), os Pet Shop Boys apenas haviam composto a música, faltando ainda a letra. Mas pela música já dá para ver o que ia sair daqui. Pop electrónico num tema de Bond? Uma alegria prazenteira eighties nada adequada à história nem ao espião? Bem, quem aceita o techno de Madonna (‘Die Another Day’) aceita tudo, mas neste caso ainda bem que os produtores tiveram bom senso. O pior quase-tema de Bond de sempre!
14. "Tomorrow Never Lies" para o filme ‘Tomorrow Never Dies’ (1997). Composto e interpretado por Pulp.
Antes de se tornar o compositor oficial da saga Bond em 1997, David Arnold (que ficaria no cargo até ‘Quantum of Solace’, 2008) produziu um álbum de covers dos temas de Bond chamado ‘Shaken and Stirred’, no qual os britânicos Pulp contribuíam com uma versão de ‘All Time High’. Com base nesse conhecimento profissional, os Pulp compuseram um tema para ‘Tomorrow Never Dies’ e tentaram impingi-lo a Arnold e aos produtores de Bond. E quase conseguiram! Mas a escolha de música para este filme levou tantas voltas (há três entradas nesta lista e aparentemente outras mais...) que esta música acabou por cair em prol da de Sheryll Crow. E ainda bem... até certo ponto (ver no. 3). Pop-rock da escola de Manchester não é propriamente o que se espera de um filme de James Bond. Demasiado smooth, muito pouco shaken. Os Pulp não se fizeram rogados e lançaram o tema num dos seus CDs, mudando “Dies” para “Lies” por motivos de copyright!
13. “Goldfinger” para o filme ‘Goldfinger’ (1964). Composto por John Barry, letra de Leslie Bricusse e Anthony Newley, interpretado por Anthony Newley.
Goldfinger e Shirley Bassey. Uma combinação intocável, certo? Quase. O icónico tema foi composto por John Barry com letra do famoso letrista Leslie Bricusse e do cantor/produtor Anthony Newley. E foi precisamente Newley que se chegou à frente para a primeira gravação, mas não tenho a certeza (a nossa grande fonte de informação, a internet, não o comprova!) se foi apenas uma demo de referência ou se havia realmente intenções desta interpretação abrir o filme. É difícil comentar esta versão quando a de Bassey é tão intensa e tão enraizada na nossa cultura. O mesmo tema cantado por Newley é muito mais subtil, a sua voz um sussurro soft, e toda a instrumentalização tem a aura do smooth jazz. Tem menos espectacularidade, é certo, mas tem muito mais suspense e muita mais ironia, como se fosse o próprio Goldfinger a cantá-la. Contudo, é também bastante mais esquecível que a versão de Bassey, e não ficaria a ressoar na memória do espectador como fica a versão definitiva. Os produtores fizeram a decisão correcta, mas foi deveras interessante redescobrir esta versão no início dos anos 1990, no álbum ‘The Best of Bond’ (1992).
12. "Tomorrow Never Dies" para o filme ‘Tomorrow Never Dies’ (1997). Composto e interpretado por Saint Etienne.
Mais um tema que foi considerado para ‘Tomorrow Never Dies’, e que era, de acordo com os próprios Saint Etienne, o preferido de Pierce Brosnan (verdade ou só gabanço?). A música, na realidade, não é má, mas é difícil imaginar a melodia alegre e com tons de smooth exótico num filme de James Bond, muito menos num que nem sequer vai para uma localização solarenga nas Caraíbas ou no Mediterrâneo. Perfeito para o chill-out, para ouvir num elevador de um hotel numa estância balnear, ou para quem aprecia relaxar ao som destas coisas em casa. Agora é um chumbo redondo para introduzir o espião mais viril do cinema. Bond anunciado com uma flautinha e uma batida despreocupada? Deus nos livre.
11. "The Man with the Golden Gun" para o filme 'The Man with the Golden Gun' (1974). Composta e interpretada por Alice Cooper (com Glen Buxton, Michael Bruce, Dennis Dunaway e Neal Smith)
Depois do sucesso internacional (e da primeira nomeação para Óscar de um tema de Bond) da música de Paul McCartney para ‘Live and Let Die’, aparentemente foi o próprio Alice Cooper que se auto-propôs para compor o tema do filme seguinte. McCartney tinha provado que as músicas de Bond podiam ser mais que uma balada poderosa cantada por uma voz feminina. Podiam ser rock vibrante. Mas Alice Cooper não é propriamente McCartney e esticou ainda mais a corda, optando por um metal incisivo, com um riff digno de AC/DC, longas partes instrumentais, e um refrão chicoteante que a sua voz arranhada vai atirando com insolência. Mesmo assim, as semelhanças deste refrão com o de McCartney são mais que muitas (o que pode ter sido um factor decisivo para a sua exclusão), e a letra é excessivamente controversa. Seria absolutamente fantástico ter um tema Bond deste género, com uma ousada virilidade que só se veria 30 anos depois no ‘You Know My Name’ de Chris Cornell, mas o estúdio recusou-a veementemente. Acabou por ser substituída por uma música menos rockeira mas não menos movimentada, embora no mesmo estilo habitual. Seriam precisos muitos anos até os temas de Bond se aproximarem do género musical que Cooper tentou introduzir, e sinceramente, ainda não chegaram lá (provavelmente nem querem!). A música aparece no álbum de Cooper, ‘Muscle of Love’ (1973).
10. “Thunderball“ para o filme ‘Thunderball’ (1965). Composto e interpretado por Johnny Cash.
O filme ‘Thunderball’ é aquele que tem o stock de potenciais músicas para o genérico inicial mais interessante. Este é o quarto filme de Bond, mas apenas o segundo que teve um tema inicial, depois do icónico ‘Goldfinger’. Por isso mesmo, a fasquia era elevadíssima. O primeiro tema, ‘Kiss Kiss Bang Bang’, de que falarei em baixo, foi rejeitado, quando os produtores decidiram ter uma canção com o título igual ao do filme, por motivos de marketing. Foi aí que entrou em cena Johnny Cash, o rei da música country. Mas os produtores de Bond estavam à espera de exactamente o quê?! Que Cash compusesse um tema opulento e poderoso como ‘Goldfinger’?! Obviamente, ele faz exactamente o que sabia fazer: um magnífico tema country, vibrante, ritmado, quase poético na sua letra do homem só que luta contra uma ameaça maior que a vida, com coros femininos e masculinos a estalarem como se fosse uma banda sonora de Ennio Morricone. Aliás, este tema seria absolutamente fabuloso num Western. Agora, num Bond de Sean Connery?! Impossível. O tema esteve quase, quase para ser usado, até que uma decisão de última hora originou o seminal ‘Thunderball’ composto por John Barry e cantado por Tom Jones, um dos melhores temas de Bond de sempre!
9. "For Your Eyes Only" para o filme ‘For Your Eyes Only’ (1981). Composto e interpretado por Blondie.
O tema oficial de ‘For Your Eyes Only’, cantado por Sheena Easton, tem das piores letras do legado de Bond, mas foi nomeada na mesma para um Óscar (a melodia de Bill Conti, na realidade salva-a). Contudo, outra música, não necessariamente melhor mas pelo menos diferente (e com uma letra com um mínimo de cérebro) tinha surgido primeiro. Os Blondie foram o grupo inicialmente abordado para compor o tema, um sinal que os produtores de Bond queriam inovar e aproximar-se das massas na era consumista dos anos 1980. Depois, o nome de Bill Conti veio à baila para compor o tema para além da banda sonora instrumental, mas Debbie Harry recusou ser "apenas" a vocalista numa composição de outros. No interregno os Blondie já haviam composto o seu tema e o resultado é uma melodia que quebra completamente com tudo o que tinham sido as canções de Bond até então, embora não dispensando a clássica guitarra eléctrica. Os Blondie misturam essa sonoridade familiar com a voz fina, estranha e etérea de Debbie, que inicialmente desconcerta o espectador, mas que depois o seduz. É uma música cheia de charme e que, admita-se, tem a ligeireza de um filme de Roger Moore, mas é talvez demasiado relax. Falta-lhe uma ponta de intensidade para ser vibrante, mas certamente não é a balada cheia de clichés de Conti que a contém. Com a rejeição do tema e o sucesso de vendas do ligeiro, mas admita-se mais bondesco ‘For Your Eyes Only’ de Conti e Easton, os Blondie lançariam esta música um ano mais tarde, no seu álbum ‘The Hunter’ (1982).
8. "The World is Not Enough" para o filme 'The World is Not Enough' (1999). Composto e interpretado por Straw.
Não contente com a rejeição do tema dos Pulp para ‘Tomorrow Never Dies’, o pop-rock inglês voltou a atacar no filme seguinte, ‘The World is Not Enough’ (1999), sob a forma da banda de Bristol, Straw. O seu ‘The World is Not Enough’ tem uma surpreendente sonoridade bondesca, reinterpretando as batidas clássicas com uma modernidade que, esticada ao limite, daria o ‘Die Another Day’ de Madonna, mas que aqui está suficientemente contida para se manter fiel aos pilares clássicos mas ser na mesma uma música com apelo comercial moderno. Para além disso, os Straw estudaram muito bem a sua lição e foram respeitosos na sua homenagem. A letra vai citando vários standards de Bond, “kiss kiss bang bang” ou “all the time in the world”, e o riff de guitarra vai-nos agarrando. É difícil de dizer se este tema é melhor ou não que o definitivo de Garbage (composto por David Arnold e Don Black), que diga-se partilha bastantes semelhanças conceptuais e musicais com este, mas não é, definitivamente, uma música tão catchy. Contudo, não me chocaria nada se tivesse sido escolhido. O pop-rock inglês parece destinado a nunca fazer parte do universo Bond.
7. "You Only Live Twice" para o filme 'You Only Live Twice' (1967). Composto por John Barry, letra de Leslie Bricusse e interpretado por Julie Rogers.
Em meados da década de 1960, a cantora Julie Rogers tinha acabado de ter um gigantesco sucesso com a sua música ‘The Weeding’ e foi abordada pelos produtores de Bond para cantar o tema de ‘You Only Live Twice’. A música acabaria por ser cantada por Nancy Sinatra, mas apesar de em teoria ser a mesma canção, na realidade não o é. Há subtis diferenças entre as duas versões, não só na letra como na instrumentalização. Muitos dos arranjos japoneses na melodia mantêm-se, mas a versão de Rogers é muito mais próxima do universo de Shirley Bassey; a sua voz grave criando uma ária sumptuosa que a letra mais charmosa e desafiadora exacerba. Já a versão de Nancy Sinatra é bastante mais ligeira musicalmente e a letra foi retrabalhada para se tornar mais acessível. Pessoalmente (embora não seja essa a opinião de muitos fãs) considero esta música de Nancy Sinatra uma das piores da saga, portanto ainda mais gosto da versão de Julie Rogers, porque tem tudo o que um tema Bond é suposto ter, mais umas nuances interessantes que Rogers lhe dá. Demasiado próximo de Bassey numa década que mudou radicalmente em termos musicais na sua segunda metade? É provável. Como sempre, os produtores de Bond estavam a tentar adaptar-se aos tempos. Mas não foi aqui que o fizeram correctamente…
6. “The Goldeneye” para o filme ‘Goldeneye’ (1995). Composto e interpretado por Ace of Base.
Ace of Base a compor um tema para Bond? Pois, a primeira vez que li isso fiquei tão incrédulo quanto o leitor deve estar agora. Mas a verdade é que estes reis do pop dos anos 1990 conseguiram interiorizar na perfeição a transição de Bond para o cinema desta década, depois daquela que foi a mais longa paragem entre filmes da saga de sempre (seis anos, após 'Licence to Kill' em 1989). A letra refere isso directamente “We are in the nineties, nothing is the same, the cold war has been replaced” e a música tem a aura dos temas mais clássicos, mas com um natural toque de modernidade, e uma batida cíclica tentadora que nos envolve na teia de Goldeneye. Seria um grande tema. Mas por vezes os managers não tem boas decisões. A saga de Bond não estava propriamente no seu melhor momento e houve o medo que a associação dos Ace of Base a tal projecto fosse prejudicial para a sua carreira (imagine-se!). Portanto o grupo retirou-se do projecto. O melhor desta decisão foi abrir espaço para a excelente música de Tina Turner, composta por Bono e The Edge. 'Goldenye' claro, foi um sucesso, e a saga de Bond regressou ao topo, sem a ajuda dos Ace of Base.
5. “Never Say Never Again” para o filme ‘Never Say Never Again’ (1983). Interpretado por Phyllis Hyman e composto por Stephen Forsyth.
Tecnicamente, ‘Never Say Never Again’ não é um filme oficial da saga Bond, embora seja uma adaptação legal do romance ‘Thunderball’ de Ian Flemming. Este, em parceria com Kevin McClory e Jack Whittingham tinha tentado escrever directamente o argumento de um novo filme de Bond, mas a manobra não tinha resultado. Baseado nas ideias, Fleming escreveu o seu romance, que em 1965 seria finalmente adaptado ao cinema; o quarto filme com Sean Connery. Contudo, e talvez com razão, McClory reclamou direitos de autor e insinuou que muitas peculiaridades bondescas desta história tinham sido concebidas por si. Um acordo foi feito fora de tribunal e McClory ficou com os direitos para fazer um remake de ‘Thunderball’ a seu bel-prazer. Esse remake chegou quase 20 anos depois, em 1983, com a particularidade de ter Sean Connery de regresso ao papel, após 12 anos de Roger Moore, que nesse mesmo ano fez um filme ‘oficial’ da saga: ‘Octopussy’. A primeira música composta é, no mínimo, uma balada espectacular. Estamos longe do estilo bondesco e mais próximos das baladas eighties que bem podiam estar no final de um episódio de ‘Miami Vice’. Aliás, a letra é genericamente (mas inteligentemente) romântica, sem qualquer referência à temática do filme. Contudo, podia ser uma música cantada pelas milhares de Bond-girls que se renderam ao charme do espião inglês e por isso mesmo conseguimos imaginar esta batida e a voz perfeita de Hyman num genérico carregado de sombras femininas e espectros de cor. Mas não conseguimos imaginá-la no genérico que ‘Never Say Never Again’ acabou por ter. Rezam as crónicas que foi o compositor da banda sonora, Michel Legrand, que exigiu que este tema fosse substituído pelo que o próprio tinha composto, uma balada mais jazzística interpretada por Lani Hall. O tema de Hall está mais perto do tom do filme e é muito mais coerente com a sua banda sonora, por isso provavelmente terá sido uma escolha acertada. Mas o tema de Hyman é acima de tudo uma belíssima balada romântica sobre Bond, que seria uma adição perfeita ao legado de ‘All Time High’ ou ‘Nobody Does it Better’.
4. "Forever - I Am All Yours" para o filme 'Quantum of Solace' (2008). Composto por Christian Wolf, letra e interpretado por Eva Almér.
Nesta era moderna os produtores de Bond não parecem ter a cabeça no sítio. Rejeitam temas bons e colocam em seu lugar baboseiras comerciais como se isso fizesse todo o sentido. ‘Casino Royale’ tinha sido um sucesso de bilheteira, levando Bond para uma dimensão mais humana, mais crua, mais intensa, mas os críticos e o público não tinham ficado nada doidos pelo tema de Arnold e Cornell. Teria toda a lógica prosseguir nessa linha musical, já que os dois filmes estão intrinsecamente ligados, e pedia-se uma letra mais pesada, mais intensa, focada na vingança e na ligação emocional entre Bond e Vesper, cuja presença tinha que ser sentida nas entrelinhas de todo o filme. ‘No Good About Goodbye’ (ver no. 1) cria extraordinariamente essa ligação. Mas ‘Forever I am All Yours’ de Eva Almér também. Não só são ouvidas frases de ‘Casino Royale’ a meio da música, como é este o tema mais íntimo de todo o universo Bond, algo que o teor do filme mais do que exigia. Almér recorda Shirley Bassey e coloca uma enorme emoção na sua voz, alterando entre a profundidade intensa do refrão “forever I am yours”, com o aguerrido debitar das frases que nos fazem sentir o coração de Bond a endurecer quando o “quantum of solace is lost” (quem leu o conto de Fleming saberá o que isso é). Magnífico e cheio de camadas emocionais, é inexplicável como tendo este tema ou ‘No Good About Goodbye’, tão soberbos, tão entrosados com a temática do filme, se tenha optado por uma aberração sem profundidade nenhuma de Jack White e Alicia Keys, um tema literalmente composto à pressa e a cuspo, completamente genérico, e um dos piores que esta saga já viu… A maior palermice que os produtores de Bond alguma vez fizeram.
3. "Surrender" para o filme ‘Tomorrow Never Dies’ (1997). Composto por David Arnold e David McAlmont, letra de Don Black e interpretado por K.D. Lang.
O compositor David Arnold provou o seu mérito mais do que uma vez, em filmes de Bond e não só. Mas é a minha honesta opinião que foi pessimamente tratado pelos produtores de Bond, sem qualquer respeito pela herança musical que deixou à saga. Foi ele, e só ele, nos cinco filmes de Bond para os quais compôs a banda sonora (de ‘Tomorrow Neve Dies’, 1997 a ‘Quantum of Solace’, 2008) que deu um cunho de modernidade à sonoridade Bond para o século XXI, ao mesmo tempo que manteve sempre o respeito e a homenagem ao legado musical de John Barry. Contudo, não só foi chutado para um canto quando Sam Mendes assumiu as rédeas da realização em ‘Skyfall’, pois foi substituído pelo compositor habitual de Mendes, Thomas Newman, como também a maior parte dos temas principais que compôs foram rejeitados e substituídos por outros claramente piores, mas de músicos mais conhecidos. Isto aconteceu logo no seu primeiro filme como compositor. Os acordes de ‘Surrender’ podem ser ouvidos ao longo de toda a banda sonora instrumental de ‘Tomorrow Never Dies' e o próprio tema é uma poderosa e tentadora balada que trás à memória os anos dourados da saga (não fosse o letrista Don Black quem compôs com John Barry três temas de Bond!). A música enrola-nos numa tensão de batidas sedutoras e espirais sumptuosas em crescendo que ficam no ouvido e põem o público em sentido para o Bond da era moderna. Isto para além de ser o único dos temas candidatos a este filme que consegue encaixar, com lógica, a complicada frase "Tomorrow never dies" no meio da letra. A voz da canadiana K.D. Lang faz totalmente jus à melodia e à letra, completando o quadro. Contudo, quem é K.D. Land e David Arnold quando comparados com Sheryl Crow?! ‘Surrender’, com todo o potencial de se tornar um dos melhores temas de Bond de sempre, foi empurrado para o genérico final, e o tema sonolento e batido de Crow ficou, infelizmente, com o lugar de destaque…
2. “Mr kiss kiss bang bang” para o filme ‘Thunderball’ (1965). Composto por John Barry, letra de Leslie Bricusse, interpretado por Shirley Bassey / Dionne Warwick
Como disse em cima, a música original para o filme ‘Thunderball’ era “Mr. Kiss Kiss Bang Bang”. Este cognome para Bond tinha sido dado por um jornalista italiano em 1962 e popularizou-se como por exemplo o nome ‘Charlot’ para Chaplin se popularizou na Europa. Com este tema, John Barry e Bricusse estavam a tentar devolver esse carinho aos fãs. Apesar de infelizmente só se ouvir o tema muito fugazmente na versão final do filme (embora instrumentalmente encha a banda sonora e o bar a que Bond vai ostente este título para compensar), tornou-se um dos clássicos obrigatórios nos inúmeros CDs de compilações. Tornou-se uma espécie de música oficial ‘extra’, um tema que nunca apareceu nos genéricos iniciais mas que assumidamente todos adoram e que é constantemente referenciado e homenageado. Aliás, é o tema definitivo sobre aquilo que era a imagem de Bond nos anos 1960: “like a knife, he cuts through life, like everyday is the last”, “he’s from the school that loves and leaves them, a pity if it greaves them” ou “he can sooth you like vanilla, the gentleman is a killer”. Antes de ser rejeitado em prol de uma música com o título ‘Thunderball’ (portanto em teoria mais rentável) o tema foi gravado duas vezes, quer por Dionne Warwick quer pela seminal Shirley Bassey, e os produtores estavam indecisos qual das versões usar. Não admira. A de Bassey é inconfundível no seu estilo clássico (veja-se a forma extraordinária como diz a palavra “cool”), mas a de Warwick rivaliza completamente e por vezes até temos dificuldade em perceber qual das versões é qual. Talvez por isso ambas as versões aparecem indiscriminadamente, ora uma ora outra, nos vários CDs de compilação do universo Bond. Só é desculpável esta rejeição porque o tema de Tom Jones é magnífico (é o meu preferido de todos!).
1. “No Good about Goodbye” para o filme ‘Quantum of Solace’ (2008). Composto por David Arnold, letra de Don Black e interpretado por Shirley Bassey.
David Arnold e Don Black a serem injustiçados. Take 2. Depois dos eventos de ‘Tomorrow Never Dies’, Arnold manteve-se o compositor oficial da saga e os temas principais seguintes são da sua co-autoria. Talvez por os críticos não terem gostado muito de “You Know My Name” para ‘Casino Royale’, Arnold regressou às origens em ‘Quantum of Solace’. De novo com o histórico Black como letrista, não há dúvidas do que tentou fazer; procurou compor o tema definitivo de Bond da era moderna, uma canção que fizesse a ponte entre o passado e o futuro, o legado de Barry e o seu, e ao mesmo tempo fosse uma gigantesca homenagem ao 50º aniversário da saga. E quem mais poderia cantar essa canção que Shirley Bassey, a própria, a suprema? Assim nasceu ‘No Good About Goodbye’, uma balada poderosíssima, que não só retoma o teor emocional de ‘Casino Royale’, como reflecte a essência mais dura, mais pesada, do Bond dos livros que os filmes recentes recuperaram. E Bassey está imbatível, tão fresca e tão intensa como esteve 50 anos antes (!!!) em ‘Goldfinger’. Mas paradoxalmente ninguém a ouviu, pelo menos num filme de Bond (estaria contida no álbum 'The Performance' de Bassey em 2009). Porquê?! Três anos depois, na cerimónia dos Óscares, na mesma noite em que Adelle ganhou o Óscar de Melhor Música por ‘Skyfall’, Bassey foi aplaudida de pé quando surgiu a cantar ‘Goldfinger’. Aí já não houve pudor em aclamá-la. Aí toda a gente a chamou de “uma grande senhora” e as suas músicas para Bond tiveram um enorme reavivamento nas rádios e nas redes social. Já em 2008 a história tinha sido bem diferente. Os senhores produtores consideraram que colocar Bassey a cantar uma música não iria ser vendável e que o tema não era suficientemente comercial, o público pouco protesto esboçou, e portanto substituíram-na pela já discutida aberração de Jack White e Alicia Keys. Cambada de hipócritas. Terá sido esta valente injustiça a ditar o afastamento de Arnold pela porta pequena? É bem provável. ‘No Good About Goodbye’ é genial e para mim o melhor tema de Bond de sempre que nunca chegou ao filme. E mais nada. É um eterno candidato a ser reavivado para todos os filmes de Bond que se fizerem de agora até ao fim dos tempos.
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