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Easy Street

Ano: 1917

Realizador: Charles Chaplin

Actores principais: Charles Chaplin, Edna Purviance, Eric Campbell

Duração: 24 min

Crítica: À entrada de 1917, Charles Chaplin, o supremo, o maior cineasta que a sétima arte alguma vez viu, já tinha atingido o estatuto de mais bem pago e mais conhecido artista da História. Incrível portanto que a sua chegada a Hollywood tivesse ocorrido apenas 3 anos antes, em 1914. Pela mão de Mack Sennet, da companhia Keystone, Chaplin foi contratado como comediante (já critiquei por exemplo o filme ‘Tillie’s Punctured Romance’), mas num par de meses já estava a escrever (ou melhor, a improvisar, como se fazia na altura) e a realizar as suas próprias curtas. O seu sucesso foi imediato, a personagem do ‘Vagabundo’ incendiou a bilheteira de Hollywood ao Japão, e Chaplin, que viveu uma pobre infância Dickensiana em Londres, de repente tornou-se a mais bem-amada celebridade mundial e um multimilionário.

Graças ao apurado sentido de negócio do seu irmão mais velho Sydney, no final de 1914, após mais de 30 curtas-metragens para a Keystone, Chaplin tinha as portas abertas para praticamente reclamar o salário que lhe apetecesse de uma nova companhia que o quisesse contratar. Essa companhia acabou por ser a Essanay, que pagou a Chaplin 1.250 dólares por semana mais um bónus de 10.000 dólares só por assinar o contrato. Entre o início de 1915 e o início de 1916 Chaplin fez 14 curtas para a Essanay, mas a relação com os produtores não foi muito boa. Primeiro detestou ir para Chicago, onde a empresa estava sediada, e obrigou-os a construir um estúdio em Hollywood. Depois divergências criativas (e do seu método criativo de improvisação) e interferências na montagem das versões finais das suas curtas ditaram que ao fim do ano de contrato, Chaplin (e principalmente Sydney) já estivessem a procurar outro estúdio.

O vencedor da ‘corrida a Chaplin’ seria a Mutual. Antes de se tornar totalmente independente com sua United Artists a partir de 1923, Chaplin ainda faria curtas para a First National, mas uma série de escândalos e um infeliz casamento/divórcio minaram a sua capacidade criativa (faria apenas 8 curtas em 5 anos). Foi portanto para a Mutual que Chaplin, que nos anos da Keystone e da Essanay refinou a sua personagem e a sua comédia, finalmente atingiu o seu pico criativo como cineasta de comédias mudas em formato de curta-metragem. O próprio admite que este foi o período da sua carreira mais prolífero, mais inventivo e mais satisfatório. Com um gigantesco salário anual de 670.000 dólares, Chaplin foi contratado para realizar 12 curtas em 12 meses, entre meados de 1916 e meados de 1917; um ritmo ‘pausado’ para a altura, como nunca tinha tido. Para além do mais, graças à mestria de Sydney em negociar contratos, Chaplin teve ainda direito a um bónus por assinar contrato, um bónus por cada filme entregue, uma percentagem dos lucros (até então nenhum actor/realizador tinha obtido isso) e total e completa autonomia na criação (Chaplin teve direito a um estúdio novinho em folha) e na montagem da versão final do filme. 

Chaplin ter-se-á sentido no céu, e ainda longe dos seus primeiros escândalos matrimoniais, atirou-se de corpo e alma à criação cinematográfica. As “Doze da Mutual” como ficaram conhecidas, representam um extraordinário período do cinema de Chaplin, onde ele dá o salto de comediante a artista, onde se torna totalmente maduro e seguro na beleza da sua criação. Se nalgumas destas curtas Chaplin limita-se a recriar velhas gags (‘Behind the Screen’, 1916), embora o faça de uma forma infinitamente melhor, na maior parte delas assistimos ao nascer de uma comédia extraordinariamente executada e exímia, fruto de anos e anos de trabalho em vaudeville e cinema até que se tornou, aqui, absolutamente perfeita. Veja-se o one-man show cómico que Chaplin proporciona em ‘One A.M.’ (1916), ou as sequências sublimes, de uma graciosidade cómica inaudita em ‘The Fireman (1916, Chaplin a escalar a fachada da casa), ‘The Pawnshop (1916, Chaplin a arranjar o relógio) ou em ‘The Rink’ (1916, Chaplin a patinar). Mas foi também nas curtas da Mutual, principalmente na terceira, ‘The Vagabond’ (1916), que o Vagabundo finalmente ganhou a vida que conhecemos, a existência que teria até ‘Modern Times’ (1936). Nessa curta, o vagabundo finalmente abandona a sua mesquinhice (ele foi bêbado, ladrão, interesseiro, parasita em inúmeras curtas de 1914/1915), tornando-se, subtilmente, um ser trágico. E essa transição, que na Mutual se consumou, fez toda a diferença. Chaplin já não estava simplesmente a fazer rir. De repente, neste período, a sua comédia transcendeu-se. Tornou-se arte, tornou-se imortal.

À entrada de 1917, era esta a bagagem e o ritmo que Chaplin levava, um dínamo no pico da sua criatividade, e o mundo inteiro aguardava impacientemente por mais uma curta. ‘Easy Street’ (em português ‘Charlot na Rua da Paz’) foi a nona curta da Mutual e a primeira lançada em 1917, mais precisamente a 22 de Janeiro. O primeiro plano mostra-nos Chaplin a dormir na rua, encostado a um edifício. Até aqui nada de novo. Mas esse edifício é uma Missão e lá dentro, devotos e outros vagabundos ouvem o salmo cantado pela delicada Edna Purviance (a leading lady de Chaplin em todas as curtas desta época). Atraído pela sua voz e pela música, Chaplin entra na Missão. Aqui dá-se a primeira série de gags, com o pequeno vagabundo a tentar passar despercebido no banco, lendo o livro de salmos de pernas para o ar ou segurando no bebé da senhora ao seu lado – clássicos momentos Chaplinescos. Mesmo assim, o seu maior interesse parece ser a caixa de esmolas. Quando a cerimónia acaba e os missionários tentam reformar os vagabundos, Chaplin não parece estar muito interessado. Isto é, até ver Edna e esta ir falar com ele. Pelo beicinho, Chaplin decide reformar-se, e começa por devolver a caixa de esmolas que, sem termos visto, já estava dentro das suas calças largas!

Corte para a Easy Street, uma clássica rua em T tão característica do cinema de Chaplin mas que neste caso de fácil ou de pacífica não tem nada. O gigantesco rufia interpretado por Eric Campbell (o habitual homem forte das curtas de Chaplin, e um humorístico contraponto para o pequeno e enfezado vagabundo), lidera uma épica luta no meio da rua entre os seus capangas e os agentes da Polícia. Estes acabam por levar por todos os lados e regressam à esquadra a cambalear ou de maca, completamente batidos. Algo tem de ser feito e a Polícia está a ficar sem recursos. Deambulando pela rua à procura de uma nova vida, Chaplin vê o sinal “Polícias precisam-se imediatamente”. Hesita à sua maneira particular mas acaba por entrar, e pouco depois, hilariantemente vestido num uniforme da Polícia dois tamanhos acima do seu, já está a patrulhar a batida que ninguém quer; precisamente a da Rua da Paz.

É aí que Chaplin irá provar o seu valor. Primeiro terá uma altercação extremamente cómica com o gigante que, graças à ajuda preciosa de um candeeiro, conseguirá dominar. Quando os habitantes e os polícias chegam ao local e vêm Chaplin sentado em cima do corpo do gigante, ele torna-se um herói e algo mais, que nunca foi; um membro integrado de uma comunidade. Talvez por isso mesmo, quando pouco depois vê uma senhora débil e com fome a roubar na mercearia, Chaplin ainda rouba mais fruta para lhe dar – o seu velho eu transfigurado para servir os outros. Mais tarde, com Edna, visita uma família pobre e numerosa, em momentos de comédia subtil e até social, com acordes que exploraria mais tarde em ‘The Kid’ (1921).

Mas este pequeno período idílico é interrompido pois o gigante escapa da esquadra e regressa à Rua da Paz para se vingar de Chaplin. Isso origina a clássica cena de perseguição final, rua acima, rua abaixo, prédio acima, prédio abaixo, associada à habitual destruição de divisões e muito partir de vasos, pratos e outros utensílios de arremesso. A coisa complica-se quando Edna é raptada e colocada numa cave com um drogado (três anos antes do uso ousado de um drogado para efeitos cómicos na curta de Harold Lloyd ‘Get Out and Get Under’, 1920, que já critiquei, Chaplin já o estava a fazer!). A ousadia neste caso ainda é maior pois só depois de acidentalmente se sentar em cima da agulha é que Chaplin tem a energia suficiente para se recompor e salvar o dia, ficar com a miúda e transformar esta rua, efectivamente, na Rua da Paz...

Para mim ‘Easy Street’ não é uma curta-metragem da Mutual tão perfeita como ‘One A.M.’, ‘The Vagabond’ ou ‘The Immigrant’, a penúltima Mutual que Chaplin lançaria em Junho de 1917. Mas está lá quase e não é por acaso que é uma das mais bem-amadas de todo o espólio de Chaplin. Com a sua storyline bem delineada, ‘Easy Street’ conta uma enorme aventura de apelo familiar e universal, uma história de redenção de um pobre vagabundo que encontra o seu lugar na vida. O eterno homem à margem da sociedade torna-se finalmente uma parte da comunidade e isso é um arco, até então invulgar nas curtas de Chaplin, com que todos se podem identificar. Talvez a curta não tenha a pungência de outras, o pathos que Chaplin tão bem soube conceber um pouco mais tarde na sua carreira, mas estão aqui todos os indícios desse formalismo já a desabrochar. No final, de braço dado com Edna, Chaplin dirige-se, tal como todos os habitantes da rua, à nova Missão para assistir à missa. Não é tanto o teor de devoção religiosa presente no final (embora muito deva ter alegrado à Legião Católica que tentaria destruir Chaplin duas décadas depois), mas o facto do pequeno vagabundo finalmente ter conseguido passar para "o outro lado", que gera o enorme apelo desta curta. Mesmo que seja por pouco tempo, Chaplin venceu o estereótipo da sociedade, ultrapassou a sua condição, encontrou o seu lugar e a felicidade. O vagabundo de Chaplin não é um ser cómico ou até trágico. Aqui, finalmente, torna-se o homem comum. E é isso que o tornava tão apelativo para os espectadores, mas ao mesmo tempo tão poderoso e tão ameaçador para o status quo do sistema.

Contudo, ‘Easy Street’ não vale apenas por este arco quase subconsciente de Chaplin. Como todas as suas curtas vale pela comédia que Chaplin consegue descobrir nas pequenas coisas. Os seus pequenos movimentos baléticos, por exemplo a andar ou quando rodopia o bastão da polícia na mão, rivalizam com qualquer movimento de Nureyev. Quando rodopia, girando sobre os próprios pés, para afastar a população curiosa, é ao mesmo tempo gracioso e desajeitado, e o resultado é infinitamente cómico. Depois há ainda as suas habituais metamorfoses de objectos. Quando baixa o candeeiro sobre a cabeça de Campbell, para o adormecer com o gás, parece que está num salão de beleza a baixar um secador. Quando está na casa da família pobre, alimenta os bebés no chão como se fosse galinhas, atirando-lhes as migalhas. E por fim as maiores risadas surgem da química fabulosa entre Chaplin e Campbell. O contraste entre o alto e corpulento Campbell e o baixo e enfezado Chaplin é magnífico, desde o primeiro ao último minuto. Ninguém consegue tirar a luz da ribalta de Chaplin (nem ele deixava!), mas se nesta curta Edna é um mero aparte, já Campbell merece um enorme aplauso. Como o gigante líder dos desordeiros da Rua da Paz, um papel feito à sua medida, as suas capacidades cómicas estão exacerbadas como em nenhuma outra curta-metragem de que tenho memória.

Não envelhecendo com o passar das décadas, e quase a completar 100 anos de existência, ‘Easy Street’ é uma das paragens obrigatórias do espólio de Chaplin, e uma entrada recorrente nas listas dos seus melhores trabalhos mudos e nos cartazes de festivais de homenagem. Não tem épicas sequências cómicas, mas hoje ainda faz rir com a sua subtileza, sendo a sua história e as suas gags tão frescas e tão dinâmicas quando na altura do seu lançamento. Mais que isso, ‘Easy Street’ faz parte do lote selecto de curtas-metragens em que assistimos o Chaplin definitivo, que conhecemos das longas-metragens, a ganhar forma. E é por isso que é tão especial, tão bem-amada pelo público e pelos críticos e é considerada, a par de ‘The Vagabond’ e ‘The Immigrant’, uma das melhores curtas de Chaplin do seu período na Mutual, e até de sempre.

Sempre que revejo uma curta de Chaplin deste período tenho dificuldade em consciencializar-me de que já passaram 100 anos desde que ele se colocou à frente de uma câmara para a filmar. Essa é a marca do seu génio. Numa altura em que a maioria dos filmes e curtas não eram feitos para durar (estima-se que 75% dos filmes mudos estão perdidos para sempre) é uma bênção ainda nos podermos deliciar com o espólio de Chaplin (as curtas estão todas no youtube) e sabermos que ele conseguirá inspirar as gerações futuras, como nenhum outro artista. ‘Easy Street’ é uma das curtas-metragens de Chaplin que mais tem essa capacidade, esse apelo universal que transcende gerações. E isso é maravilhoso.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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