Realizador: Josef von Sternberg
Actores principais: Robert Mitchum, Jane Russell, William Bendix
Duração: 81 min
Crítica: Feito em 1952, ‘Macao’ poderá já estar um pouco desgarrado do cinema ‘noir’ que é a sua maior inspiração, ou melhor, o tipo de cinema que quer ser. Aliás, ‘Macao’ não é suficientemente negro (sombrio, profundo) para ser noir – é mais cinzento… – mas ao mesmo tempo é muito mais do que um produto aventuresco num local exótico tão banalmente feito em Hollywood. Fica no meio termo e talvez a principal razão para esta falta de equilíbrio seja a sua produção complicada.
O produtor do filme é o inconstante Howard Hughes, o cabecilha do estúdio RKO, nesta altura já numa fase decadente. O realizador original (e aquele que ainda é creditado) é Josef vou Sternberg, uma escolha aparentemente segura e pouco imaginativa já que este grande realizador estava conotado com filmes em ambientes exóticos – é ele o realizador, por exemplo, de ‘Marocco’ (1930) ou ‘The Shanghai Express’ (1932), ambos com Marlene Dietrich. Mas ao mesmo tempo, há mais de 10 anos que Sternberg não realizava um filme. Tudo isto, e o temperamento de Hughes, terá pesado. A meio da produção, Sternberg foi despedido e Nicholas Ray, o mestre do noir dos anos 1950, que acabara de fazer o magnifico ‘In a Lonely Place’ (1950), e ‘On Dangerous Ground’ (1951) e iria realizar ‘Johnny Guitar’ (1954) e ‘Rebel Without a Cause’ (1955) tomou conta, pelo menos parcialmente, da produção de ‘Macao’. Quer Ray quer supostamente outros realizadores, todos não creditados, acabaram o filme como se fosse uma colagem, e rezam as crónicas que o argumento desconexo até acabou por ser limado pela própria estrela do filme, o actor Robert Mitchum, que por esta altura era um experiente mas pouco reputado actor deste género de filmes. A somar a todas estas coisas a gloriosa Glória Grahame (que nesse mesmo ano ganhou o Óscar de Melhor Actriz Secundária pela sua soberba interpretação no não menos soberbo ‘The Bad and the Beautiful’) fez o filme contra a sua vontade (ah, os gloriosos tempos do estúdio e dos actores sob contracto!), interpretando um papel com o qual não se identificava num filme em que não acreditava. Reza a lenda que tentou minar todas as cenas em que entrou, e que a sua interpretação é propositadamente exagerada e descabida. Curiosamente, na minha opinião, isso não a impede de ser um dos pontos altos deste filme.
A acção do filme ocorre na então colónia Portuguesa de Macao, que é retratada como uma espécie de Casablanca do Oriente (as semelhanças conceptuais e do design de produção são óbvias). É um lugar que pode ter uma grandiosidade decadente, devido principalmente à vida nocturna dominada pelo jogo e pelos casinos, mas que é ao mesmo tempo sombrio e perigoso, como as cidades americanas dos filmes noir. Por detrás de cada sinal de néon está um canto escuro, uma sombra demoníaca, um ser sem escrúpulos, e homens e mulheres com passados a esconder que se refugiam na escuridão. Em teoria, este é o ambiente que o filme transmite. Na prática isso não é necessariamente verdade em todas as sequências.
A cena de abertura mostra-nos um inspector da polícia a levar uma facada pelas costas e a ser atirado ao rio. Uns dias mais tarde um barco atraca no porto de Macao e o filme segue três passageiros que ai se apeiam. Um vendedor, interpretado por William Bendix; um homem com um passado a esconder, interpretado por Robert Mitchum; e a clássica femme fatale, interpretada pela voluptuosa Jane Russell. Depressa descobrimos que cada um deles não é exactamente quem parece ser e possui qualquer tipo de segredo. Depois do barco, os seus caminhos voltam a cruzar-se num determinado casino, controlado por uma espécie de mafioso local (o mau da historia, interpretado pelo actor Brad Dexter) e por onde desfila a fabulosa Gloria Grahame, no papel de uma pin-up girl que apesar de tudo ilumina o filme e as cenas onde está.
Todas as pistas parecem indicar que Mitchum é um detective no encalço do corrupto dono do casino e do assassino do inspector. Será isso verdade? No resto do filme, o filme debruça-se exaustivamente sobre todo o jogo de alianças e traições entre as personagens, relacionadas com os segredos atrás do assassinato do inspector e de um enorme diamante que é atirado para a mistura (uma versão dos papéis de trânsito de ‘Casablanca’, que todos querem). Obviamente, como não podia deixar de ser, o filme vai ter uns twists e umas surpresas, que na verdade não são assim tão surpreendentes quanto isso, ou pelo menos, tanto quanto o filme tenta fazer crer que são. O filme tem um bom ritmo e chega a ser uma experiência da qual se pode desfrutar confortavelmente, com uns toques subtis de ‘negro’ e sarcasmo que o apimentam, mas no global não tem força suficiente para estar ao mesmo nível das melhores entradas do cinema noir.
A química entre Russell e Mitchum só existe nas páginas do argumento. Pouco ou nada é reflectido no ecrã, e as suas motivações para terminarem o filme juntos são extremamente superficiais. No final, o herói tem que ficar com a miúda, e independentemente do seu passado conseguem redimir-se, ou pelo menos superá-lo. Isto é a fórmula clássica. Mas até o lugar comum necessita de um bocadinho de credibilidade, o que não acontece neste filme. A performance de Mitchum é completamente insossa, como se estivesse a fazer o filme a dormir, e a sua clássica voz arrastada e grave (a sua imagem de marca) parece estar ainda mais arrastada, ainda mais grave, o que tira genica e ritmo às frases que tem que dizer. Já Russell infelizmente só brilha quando o argumento lhe dá a hipótese de pronunciar sagazes e sarcásticos ‘one liners’ ou respostas inteligentes aos homens (à Mae West, à Marlene Dietricht), pois nas cenas mais intimas a personagem parece esquecer-se que tem essa personalidade, que tem esse dom de respostas brilhantes na ponta da língua, o que é quase um paradoxo, e obviamente se torna uma grande perda para o filme. Para além disso, Russell, como a nova cantora do casino, lá tem que cantar uma série de canções, que fazem o filme estagnar e quebram o seu fluir completamente. Era necessário capitalizar na imagem de Russell, era necessário vender as músicas. Mas isso não se pode tornar mais importante do que a qualidade do próprio filme? Ou pode? Há coisas que nunca mudam...
No final, o filme tem uma perseguição climática de cerca de 10 minutos pelos ambientes sombrios da colónia portuguesa que, a par do pequeno papel de Gloria Grahame, é um dos seus pontos mais fortes, e oferece uma infusão de ritmo que por esta altura já era mais que necessária. Mas Macao nunca será Casablanca nem São Francisco, nem esta pequena peça de 81 minutos, com uma história de produção tumultuosa e sem uma visão de realização estável e coesa, se poderá comparar às grandes obras do género policial que o cinema dos anos 1940 produziu. Não há em ‘Macao’ aquela forma genial de gerir a fotografia a preto e branco, de gerir as sombras e os contrastes, e a beleza decadente da cidade americana à noite, filmada pelos especialistas do noir, como John Huston, Fritz Lang, Edward Dmytryk, Orson Wells ou Jules Dassin, não tem comparação com os cenários semi-exóticos aqui apresentados.
‘Macao’ poderá já estar meio esquecido num género que possui tantas pérolas (se é para ver um filme bom deste género há dezenas de filmes à frente de ‘Macao’), mas é um filme que nem é mau nem é totalmente desprovido de interesse. Tem aquela aura do filme de estúdio (a gloriosa época de Hollywood) que praticamente impede que um produto seja um fiasco completo, possui uma rara oportunidade de ver Russell neste tipo de filme (no ano seguinte iria entrar em ‘Gentleman Prefer Blondes’ com Marylin Monroe), o que poderá ser um chamariz, e claro, tem Gloria Grahame, uma das maiores senhoras do cinema. Só por estes três motivos, já merece que um cinéfilo lhe dê uma olhadela, mas não o recomendo se é para ficar a conhecer melhor o género do filme noir.
0 comentários:
Enviar um comentário
Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).