Realizador: Michael Anderson
Actores principais: David Niven, Cantinflas, Finlay Currie
Duração: 175 min
Crítica: No dia 27 de Março de 1957 na 29ª edição dos Óscares, ‘Around the World in Eighty Days’ (em português ‘A Volta ao Mundo em 80 Dias’) foi o grande vencedor, arrecadando cinco estatuetas, Melhor Argumento Adaptado (obviamente do clássico romance de Júlio Verne), Melhor Fotografia Cor, Melhor Montagem, Melhor Banda Sonora e claro, Melhor Filme. Isto não foi um feito banal. Nesse ano, os candidatos a Melhor Filme incluíam dois dos meus filmes preferidos, ‘Friendly Persuasion’ e ‘Giant’ (considero ambos bem melhores que ‘Around the World in Eighty Days’), bem como o épico ‘The Ten Commandments’ e o bem amado musical ‘The King and I’. Mas a vitória é plenamente justificada. Este filme é tudo aquilo que o cinema de espectáculo e de entretenimento pode proporcionar, não olhando a despesas. É, acima de tudo, um produto de exibição; de cenários, de localizações exóticas (e reais), de actores conhecidos (carradas deles), de elementos que hoje damos de barato (touradas, safaris, templos budistas), mas que em 1956 raramente tinham sido vistos quer no cinema quer na televisão. E ‘Around the World in Eighty Days’, num pacote de 3 horas, oferece esse magnifico espectáculo, aventureiro, cómico, de brilhante fotografia, milhares de extras e de um mundo inteiro encapsulado numa tela de cinema. É uma experiência, se não profunda, se não artística, pelo menos de deleite visual e enorme entretenimento.
Mas era nesse sentido que o cinema caminhava em meados da década de 1950. Nunca na história da televisão os programas e as séries desafiaram tanto a sétima arte como no seu início (talvez só agora, pós 2000, o mesmo esteja a acontecer). Perdendo espectadores, actores e técnicos, o cinema de Hollywood começou a tentar oferecer um espectáculo que a pequena televisão, 4:3 e a preto e branco não poderia dar. O formato alargado, widescreen, foi massificado e tornou-se norma em todas as produções de Hollywood desde ‘The Robe’ em 1953. As produções tornaram-se mais ousadas, maiores, mais custosas. Tudo tornou-se épico, excêntrico, visualmente avassalador. Os épicos bíblicos, os musicais da Broadway, os westerns, todos contribuíram para que o cinema se tornasse um espectáculo de cor, som, grandes planos, magníficos cenários, e emparelhamentos de estrelas. Um dos produtores que mais contribuiu nos bastidores para esta forma de cinema foi Michael Todd, embora a sua produção cinematográfica se tenha reduzido a um único filme, ‘Around the World in Eighty Days’. Todd era um megalómano produtor de teatro, que já fizera e perdera fortunas. No início da década de 1950, trabalhou directamente com a American Optical Company, para desenvolver um formato alargado de uma única câmara (o Cinerama, então em voga, precisava de 3). O resultado foi o sistema Todd-AO, que fez a sua estreia no musical ‘Oklahoma’ de 1955. Pouco depois, Todd tomou as rédeas para fazer ele próprio um filme com este formato. Uma década antes fizera uma versão de ‘Around the World in Eighty Days’ para o teatro com Orson Wells como Fogg, que fora um épico descarrilamento financeiro. Agora iria transpô-la para o cinema.
Tal como Selznick fizera em ‘Gone With the Wind’, Todd foi tudo no filme. O filme é como se fosse dele, apesar de não ser o realizador creditado. Este papel ficou a cargo do inglês Michael Anderson (que perdeu o Óscar de Realizador, justificadamente, para George Stevens em ‘Giant’), e que nem sequer foi a primeira escolha, tendo outro realizador inglês pouco reputado internacionalmente, Jonh Farrow, sido despedido após a primeira semana. Anderson acabara de realizar o épico da Segunda Guerra Mundial ‘The Dam Busters’, um dos seus filmes mais conhecidos, e o público poderá recordá-lo como o realizador do filme de culto de ficção científica ‘Logan’s Run’ (1976) ou do filme papal ‘The Shoes of the Fisherman’ (1968) com Anthony Quinn. O maior trabalho que Anderson faz neste filme, a meu ver, é menos no aspecto técnico e artístico da realização, e mais na gestão da visão megalómana de Todd, que se reflectiu na gestão das filmagens em estúdios e das equipas de segunda unidade por esse mundo fora, dos milhares de extras, dos gigantescos cenários e das centenas de egos de todos os grandes actores que entram no filme. Contudo sinto que o trabalho de Anderson deve ter sido muito restringido. Em todas estas coisas, as directivas vêm de cima, do produtor. O realizador, num espectáculo destes, apenas tem que cumprir. Se não cumprir é substituído por outro que o faça…
Para Fogg, Todd queria Cary Grant, mas quando este recusou (várias vezes, diz-se) Todd abordou o seminal David Niven. Aqui há uns anos em Londres folheei numa livraria a autobiografia de Niven, ‘The Moon’s a Baloon’, e deparei-me com os parágrafos deliciosos em que ele descreve como Todd o abordou. Sentado numa cadeira ao pé da piscina de sua casa, Todd pergunta a um Niven que acabara de chegar “Conheces Júlio Verne?”, com um ar de quem acabou de descobrir há pouco tempo quem Verne era. “Claro” diz Niven. “Conheces A Volta ao Mundo em 80 Dias?”, pergunta Todd exactamente com o mesmo ar, como se achasse que saber isso era ser imensamente culto. “Claro” continua a responder Niven. “Que acharias de interpretar Phileas Fogg?”. Niven escreve que respondeu “Até o faria de graça”, ao que Todd arregalou os olhos, como se estivesse já a pensar no dinheiro que iria poupar. Bem, Niven não o interpretou de graça, mas tornar-se-ia o papel preferido de toda a sua carreira. Niven é contido, clichezadamente birtânico, e até algo cómico (como iria provar, por exemplo, em ‘Casino Royale’ de 1966, que podia ser). Mas ao mesmo tempo Niven dá ao papel uma profundidade que o argumento não tem, nem as cenas supostamente permitiriam, pelo menos em papel, que pudesse ter. É algo quase subconsciente, como se na sua contenção houvesse uma chama de realidade, como se houvesse algo de trágico na batida fórmula do ser artificialmente pontual, que quer as torradas sempre a uma temperatura específica, que come sempre a mesma refeição à terça-feira, quer esteja em Londres quer esteja no meio da Índia. E esta forma de interpretar Fogg raramente ou nunca se viu. Não foi certamente Pierce Brosnan na série dos anos 1980 que o fez, nem Steve Coogan na mais recente versão com Jackie Chan (brrrrrr…..).
Mas para retratar a história do misterioso milionário inglês do Reform Club, que um dia a jogar às cartas aposta que a volta ao Mundo pode ser dada em precisamente 80 dias, e nesse mesmo dia inicia a sua viagem para provar que isso é verdade, Todd não se ficou por Niven nem pelo romance tão bem escrito por Verne. Todd viu, justificadamente, que a história, passada à volta do Mundo, em centenas de países, com milhares de povos, culturas e conceitos, tinha um potencial cinematográfico infinito. ‘Around the World in Eighty Days’ bateu na altura o recorde de animais utilizados num único filme, bateu o recorde de peças de guarda-roupa criadas, bateu o recorde de extras utilizados, foi filmado em 13 países diferentes e é ainda hoje considerado por muitos o mais ambicioso, mais expansivo e mais ousado projecto cinematográfico de sempre em Hollywood. E eu sou talvez capaz de concordar. É só ver o filme para crer. Tirando a cena em que Fogg e Passepartout (o actor mexicano Cantinflas, que na altura era um dos actores mais bem pagos do Mundo, graças ao sucesso das suas comédias latinas) voam num balão, não há um único efeito especial. A equipa técnica e os actores deram a volta ao Mundo, e nós damos com eles. Vamos realmente a Espanha, vamos ao Suez, vamos à India, vamos à América. São filmados os templos, os oceanos, as montanhas, as selvas, as cidades. São filmados os barcos, os comboios, os elefantes, os búfalos. São filmados os índios da américa e os indianos. E todos os interiores (cenários em Hollywood) são gigantescos, expansivos. Em cada plano, passam-se milhares de coisas. A atenção ao pormenor é notável. Há sempre dança, movimento, cor local. Nesse sentido a história muitas vezes é relegada para segundo plano, bem como algumas ligações. A passagem de Fogg de Londres até Paris, por exemplo, não é mostrada, e num salto avança-se da Ásia Menor até Hong Kong. Ao contrário de outras adaptações, em que há uma necessidade de movimento constante, de ritmo, de luta contra o tempo, neste filme isso não acontece. Rara é a altura em que nos dizem quantos dias já passaram e quantos dias faltam. Raro é o momento em que sentimos a pressão. O que interessa para Todd são os locais que são visitados e o que lá se pode encontrar, e o sumo, o espectáculo do filme, está aí.
Uma das cenas mais, diga-se, ‘polémicas’, que é totalmente inventada, é a passagem por Espanha, que não está no livro. Dura mais de um quarto de hora e assistimos a toda a intensidade de uma tourada. Para quê? É um bocado difícil de acreditar que Fogg fique placidamente a assistir a uma tourada quando está cheio de pressa. Mas é um cinema que o público nunca tinha visto e arrisco-me a dizer que deve ser uma das primeiras touradas filmadas a cores e difundida a nível mundial. E é esta lógica que persegue todo o filme. Só na última meia hora, na travessia do Atlântico de volta a Inglaterra, é que o filme acaba por abandonar o tom exibicionista e foca-se na necessidade de cumprir o prazo, de chegar no dia certo. E também aí, o filme é grandioso. A destruição quase total do barco, para obtenção de lenha para a fornaça, é tão épica como foi o safari de elefante pela Ásia, o exotismo de Hong Kong, a travessia de comboio pela América, o ataque dos Índios, etc. O filme vai de set piece em set piece e nunca abranda, e cada sequência ultrapassa a seguinte em grandiosidade. Esta é a sua grande riqueza. O filme nunca perde o interesse, nunca perde o lustro, nunca perde a capacidade de surpreender como o visual. É como um enorme espectáculo de circo. Era nisso que Todd era um mestre.
E Todd tinha ainda mais uma ideia na manga, que capitalizou como ninguém na promoção do filme, e é algo que ainda hoje suscita interesse. Todd contratou toda a gente que conseguiu para fazer pequenos papéis, participações especiais, em todo o filme. Aliás, a palavra ‘cameo’ para expressar estas aparições, popularizou-se aqui. A promoção do filme dizia que 50 estrelas de Hollywood (rezam as crónicas que são um pouco menos) iriam aparecer de surpresa no filme. Por isso mesmo o filme só tem o genérico no final, e mesmo aí não revela o jogo completamente. Mostra os nomes com apenas uma pista visual para a cena em que poderão ter aparecido. Todo o filme desenrola-se como um espectáculo de ‘Onde está o Wally?!’. Acredito que para o público de hoje pouco versado em estrelas de Hollywood dos anos 1950 isto não tenha grande interesse. Mas para o cinéfilo dedicado é mais um motivo de excitação em relação ao filme. E mesmo hoje, após já ter visto este filme meia dezena de vezes, ainda descubro alguém que não me lembrava de ter visto antes. Se peca por às vezes fazer muita pompa e circunstância pelo cameo (por exemplo a aparição de Frank Sinatra como o pianista do velho oeste, filmado umas cinco vezes de costas sem se ver o rosto, até que à sexta se vira e, olha, olha, é o Frank!), por outras é tão subtil que se torna genial. Para além de ter o brilhante Robert Newton como Inspector Fix (no seu último papel), Shirley MacLaine como a Princesa (um papel pouco trabalhado ao qual MacLaine não acrescenta nada e que poderia ter sido interpretado por qualquer menina bonita) e Finlay Currey, Trevor Howard e Robert Morley como os principais membros do Reform Club, vão aparecendo ao longo do filme pessoas como Buster Keaton, Marlene Dietrich, George Raft, a gloriosa Glynis Johns, Ronald Colman, Victor Maclaglen, John Gielgud, Noel Coward, Charles Coburn, etc, etc, etc.
Tudo somado, ‘Around the World in Eighty Days’ vale pelo seu espectáculo. O produto apresentado é demasiado vistoso para ser profundo e está pouco preocupado em desenvolver as personagens, justificar razões e ser inteiramente fiel ao livro. Aliás, o filme está muito mais preocupado em mandar bocas em relação aos hábitos dos ingleses (tudo desde a pontualidade, ao chá das 5, às expressões coloquiais são alvo de chacota) e em que as aparições especiais também sejam sempre imbuídas de humor, do que em propriamente a desenvolver a história e os seus intervenientes. Parece que o filme parte do princípio que o público já sabe a história de Fogg (o que é mais que provável). Até os eventos de tensão do livro (a perseguição de Fix, que acha que Fogg é o homem que acabou de roubar o banco de Inglaterra) aparecem muito pouco acentuados no filme. O que o filme mostra ao público é outra coisa, é tudo aquilo que a imaginação nem do leitor, nem de Verne conseguiriam materializar, mas que a magia do cinema, especialmente a da década de ouro em Hollywood, bem sabia. Mas quase miraculosamente, quer a performance de Niven, quer a de Cantinflas (uma escolha totalmente descabida para Passepartout, mas que surrealmente acaba por resultar no filme), conseguem coser toda esta amálgama, e acabam por ser bem conseguidos fios condutores.
‘Around the World in Eighty Days’ não é nem tão emocionalmente épico como ‘Giant’, nem tão massivo como ‘Ten Commandments’, nem uma lição tão simples mas tão fabulosa de cinema como ‘Friendly Persuasion’, mas é um filme que é um espectáculo, no duplo sentido que a palavra portuguesa lhe pode dar. É um filme de massas, é certo, mas é um dos filmes de massas com maior qualidade que alguma vez saíram das fornaças de Hollywood. E, por todas as suas valências, acaba por ser um excelente filme de família, um excelente filme de matiné, um excelente filme de aventura (passa do drama de época para o exotismo asiático para o western para a comédia), um excelente filme ‘de viagem’ (quando tal praticamente não existia) e finalmente, é também um excelente filme para os cinéfilos, pelo seu conjugar de estrelas, pela mestria na gestão das participações especiais, que apesar do seu espalhafato nem nunca estragam a história, nem nunca tiram protagonismo à verdadeira essência do filme: o seu visual, e tudo aquilo que os seus planos largos, e o seu rácio de imagem, conseguem (realmente, e sem recorrer a qualquer artifício) captar.
Após inúmeras visualizações desde a infância em VHS, ontem vi este filme pela primeira vez com ele deveria ser sempre visto, na sua edição de DVD de aniversário de dois discos. Aqui, não só pude desfrutar de todo o esplendor da imagem, como descobri a interessante cena inicial, que é geralmente retirada das exibições na TV (e aparentemente também o foi dos VHS). Esta cena mostra-nos um senhor a falar um pouco sobre Julio Verne, a sua obra, e como ela já havia sido passada ao cinema, nomeadamente por Meliés em ‘Voyage dans la lune’ (1902), da qual se mostram largos minutos. Daqui, e da imagem de um foguetão a descolar (também das primeiras imagens que o público alguma vez viu) se passa para a primeira cena do filme, na Inglaterra vitoriana. Brilhante.
Após o sucesso de ‘Around the World in Eighty Days’, Todd entrou para a lista de grandes produtores de Hollywood. No ano seguinte casaria com a rainha de Hollywood, Elizabeth Taylor, mas em 1958 iria falecer num desastre de avião. ‘Around the World in Eighty Days’ acabou por ser o seu único filme como produtor, mas o Óscar que recebeu (os Óscares de Melhor Filme são dados aos produtores) é a digna homenagem a um homem que tinha olho para o negócio e para o espectáculo, um Ziegfeld da sétima arte, e que poderia ter produzido inúmeras outras obras de enorme entretenimento e grandiosidade visual. Resta-nos ‘Around the World in Eighty Days’ como prova da sua grande visão, um filme que quebrou barreiras e que inspirou tantos outros, e que, como disse, poderá não figurar nas listas dos melhores filmes (nem o merece), nem dos filmes de uma vida, mas é sempre uma delícia de ver, e é um filme a revisitar, de tantos em tantos anos, em família, com os amigos, nunca desapontando. O cinema pode ter substituído o circo como o maior espectáculo na terra, e nesse sentido, ‘Around the World in Eighty Days’ é um dos maiores espectáculos que o cinema já produziu.
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