Realizador: Carl Theodor Dreyer
Actores principais: Thorkild Roose, Lisbeth Movin, Sigrid Neiiendam
Duração: 97 min
Crítica: O realizador dinamarquês Carl Theodor Dreyer foi um dos grandes. Ele fez algo que para mim é completamente inédito. Ao contrário dos seus contemporâneos ‘noir’ que realçavam as sombras e o negro da fotografia a preto e branco, Dreyer realçava o branco. Os seus filmes tinham uma qualidade alva na fotografia, uma luz pura que vinha de dentro, e que reflectia os significados fortemente religiosos, mas ao mesmo tempo fortemente humanos dos seus filmes. Foi com prazer que aqui há uns tempos, ao ler a crónica de Truffaut sobre a obra de Dreyer, me deparei com a expressão ‘la blancheur de Dreyer’. Prazer não por eu ter achado o mesmo que Truffaut (quem penso eu que sou?!), mas por me aperceber que essa sensação era propositada e que há décadas o público está a receber essa luz pura e alva deste conjunto muito limitado de filmes.
Isto porque a obra de Dreyer é parca. Truffaut também se interroga como é que é possível um realizador destes deixar dez anos entre filmes, à Kubrick, à Mallick? Talvez seja um privilégio apenas destinado aos grandes, mas a verdade é que quando realizou os filmes, Dreyer foi magnífico. Não foi épico, não foi grandioso. Os seus filmes são incrivelmente intimistas, com histórias contidas e um número muito reduzido de personagens. São também filmes de planos simples (mas de incrível fotografia), poucos movimentos de câmara, ritmo pausado e diálogos ponderados. Mas a sua força, o poder da sua mensagem, e o impacto das suas personagens são inegáveis e deixam uma marca no espectador. São filmes que não se esquecem e que só conseguem melhorar com as visualizações repetidas.
Depois de um começo pouco auspicioso no cinema dinamarquês na década de 1920, Dreyer produziu um dos mais impactantes filmes mudos, um quebra-convenções, brilhante no seu minimalismo conceptual, um estudo de personagem tão forte que provavelmente nunca foi repetido no cinema: ‘La Passion de Jeanne d’Arc’ (1928). Quem poderá esquecer os close ups do rosto de Maria Falconetti? É como se estivéssemos a ver o verdadeiro julgamento de Joana d’Arc. Logo depois, fez ‘Vampyr’ (1932) outra obra mestra. Mas, pergunta-se Truffaut, como é que o realizador destas duas obras pôde ficar 10 anos até regressar com ‘Vredens dag’ (1943)? A resposta é simples, e está bem documentada. Dreyer era um perfeccionista, e os seus filmes custavam mais dinheiro do que o que rendiam, o que causava problemas de financiamento. Também, ‘Vampyr’ foi fortemente atacado pelos críticos, fazendo-o desinteressar-se do cinema (o mesmo aconteceu décadas mais tarde a David Lean…). Placidamente, Dreyer retirou-se momentaneamente do cinema.
Mas 10 anos não fizeram mal a Dreyer. Quanto muito, amadureceram o seu estilo e tornaram-no melhor. As razões de ‘Vredens dag’ podem muito bem ser alegóricas. O próprio Dreyer foi obrigado a fugir da sua invadida Dinamarca para a neutra Suécia durante a Segunda Guerra Mundial, e este ‘Dia de Cólera’ (como é a tradução para português), pode ser interpretado como o dia em que a razão se perde, quer colectivamente, quer individualmente, por diferentes motivos, mas todos relacionados com uma cólera, um egoísmo interior. Mas Dreyer é suficientemente inteligente para não deixar que isso tome conta do filme. A beleza de ‘Vredens dag’, e de outros filmes de Dreyer (estou a pensar em ‘Ordet’, o seu filme seguinte, apenas em 1955), é que, apesar de serem de época (a Dinamarca medieval), não são datados. Podem ser transpostos para qualquer época, para qualquer local. São histórias humanas e universais, acima de tudo. Ao mesmo tempo não são tão ‘artísticas’ como outras obras de concepção semelhante, como a grande obra medieval de Bergman, ‘Sétimo Selo’ (1957). As personagens são tudo. E subjacente, sempre a luta entre a fé e a tentação do ser humano.
Absalon (interpretado por Thorkild Roose) é um dos líderes religiosos da comunidade e é também um dos membros da temível inquisição, embora ele próprio seja um ser calmo e devoto. É casado com uma mulher décadas mais nova, Anne (a belíssima e incrível Lisbeth Movin, o cerne do filme). Mais tarde, descobre-se que a mãe de Anne havia sido acusada de bruxaria e queimada na fogueira, e Absalon tinha ficado a cuidar da criança, Anne, tendo mais tarde casado com ela. No início, Anne, apesar da diferença de idades, é uma esposa dedicada, contida e subserviente. Todos gostam dela com excepção da mãe de Absalon, que mora com eles (interpretada por Sigrid Neiiendam – que parece exactamente da mesma idade, ou até mais nova, que Absalon, mas prontos…), uma figura imponente e temível, que faz recordar a personagem de Judith Anderson em ‘Rebecca’ (1940), e que parece ter ciúmes de Anne, da sua juventude, da sua beleza, do afecto que suscita em Absalon. Mesmo assim é uma existência quase idílica, que a fotografia alva salienta.
Mas há dois catalisadores que estragam esta harmonia. Primeiro, uma senhora de idade, amiga da família, é acusada de bruxaria. O máximo que o filme mostra é ela a dar uns chás de ervas a outra senhora, mas os rumores correm que ela é bruxa e então é perseguida. Tenta esconder-se em casa de Absalon, mas nem este nem Anne oferecem muita resistência quando as autoridades revistam a casa. O próprio Absalon está presente no ‘julgamento’ e no ‘arrancar da confissão’ (que faz lembrar os planos e a hipocrisia de ‘La Passion de Jeanne d’Arc’), mas não faz nada para a salvar. Quando já não aguenta mais a tortura, a senhora diz tudo o que a inquisição quer ouvir, mas pede depois em segredo para Absalon a salvar, já que foi ela que salvou Anne de ser morta com a mãe, quando Anne era criança. Absalon nada faz e ela acaba por ser morta na fogueira.
Mas esta meia verdade (de que é filha de uma bruxa) abre um lado de Anne que ela nunca antes tinha revelado (e que a própria provavelmente também desconhecia). Primeiro começa a ficar seduzida com essa ideia, com esse poder. Depois, quando o filho de Absalon, Martin (interpretado por Preben Lerdorff Rye), da mesma idade de Anne, regressa a casa passados muitos anos de ausência, ambos inevitavelmente se apaixonam. Martin tem sempre remorsos e dúvidas mas é cada vez mais seduzido por Anne, que por esta altura já se transformou completamente, soltando o cabelo, desafiando a sogra, quebrando as convenções. O facto de Anne querer Martin, de pensar que poderá ter o poder de uma bruxa (e portanto começar a achar que pode matar Absalon com o pensamento para poder ficar com Martin), e ao mesmo tempo o ódio crescente da mãe de Absalon por ela e a espera paciente da mínima desculpa para a poder acusar de bruxaria, vão levar o filme a um clímax trágico e inevitável…
‘Vredans Dag’ é mais um estudo contemplativo mas hipnotizante de Dreyer, e existe na mesma dualidade que caracteriza os seus filmes. Quanto mais pausado mais o espectador fica cativado na expectativa do que irá acontecer, quanto mais simples em concepção, mais abre espaço para que cada espectador o encha com um enorme e profundo significado. Existe neste filme a mesma poderosa corrente religiosa que iria existir em ‘Ordet’, e o mesmo ataque à hipocrisia e ao totalitarismo do sistema (neste caso a inquisição) que existiu em ‘La Passion de Jean D’Arc’, do qual se podem tirar óbvios paralelismos à histeria do regime nazi. Mas ‘Vredans Dag’ não se deixa ficar atrás destes dois grandes filmes e tem algo que eles não possuem; o estudo da personagem, neste caso Anne. Sim, Falconetti a fazer de Joana D’Arc era uma personagem extraordinária, mas já era trágica, indefesa e quase divina no início do filme, e assim continua até ao final. Em ‘Vredens Dag’, Anne tem uma transmutação magnífica, que o filme acompanha. O próprio oscilar da fotografia, que a meio do filme começa a salientar as sombras e o preto em prol do branco inicial, é o reflexo do arco emocional de Anne. E Movin está extraordinária no papel, os seus olhos brilhando, a faísca da tentação consumindo-a com cada cena que passa. A sua mudança de estado, com pormenores tão subtis como o soltar do cabelo, são a chama do filme.
Contudo, há uma coisa que para mim não funciona muito bem em ‘Vredans Dag’, que é forma como são tratadas as oscilações entre estados. O filme quebra de ritmo (ritmos lentos também podem ser quebrados, é tudo uma questão de equilíbrio), duas vezes, a seguir aos seus dois grandes picos. O primeiro pico ocorre logo no início, em toda a sequência de prisão, julgamento e execução da idosa acusada de bruxaria. Depois há um segundo pico; a transformação de Anne que quebra o equilíbrio da família e leva aos eventos trágicos do final. Pelo meio há uma abertura (a primeira quebra de ritmo), que é o ‘romance idílico’ entre Anne e Martin, passeando pela floresta, fazendo um pic-nic no lago, apaixonando-se. São sequências que consomem o segundo acto do filme e duram tanto tempo que estragam um pouco o hipnotismo que toda a peça exerce sobre o espectador e que é essencial para que ele consiga ficar focado apesar da concepção pausada. Não havia necessidade de separar tanto o primeiro e o terceiro acto, mas provavelmente isto foi feito para justificar mais plenamente a transformação de Anne.
A segunda quebra não o é na realidade, mas parece. O final (a redenção) desaponta pois acaba por ser tão pausada e tão contemplativa quando o resto do filme quando se calhar não o deveria ser. Após os eventos trágicos que se sucedem no final, a forma como o filme decide terminar é demasiado contida. Mereceria uma explosão maior, uma ousadia maior. Assim soa estranho e toma contornos de um anticlímax. Os próprios motivos para levar Anne por esse caminho são dúbios, após toda a magnífica transmutação que teve, e ao fazê-la acabar o filme daquela maneira Dreyer não está a incutir tanto significado quanto aquele que andou a inserir até então na subcorrente de todo o filme. Quais os motivos de Anne? Quanto de aquilo que acaba por fazer é consequência da sua própria personalidade, que pode ser justificada por ser uma jovem que casou adolescente com um homem décadas mais velho, presa pelas convenções, e que descobre com Martin pela primeira vez o que é o amor e a felicidade, e quanto é que poderá ser consequência da ‘histeria’ causada pelo sistema, quanto lhe dizem que a mãe dela era uma bruxa e que tinha o poder de matar com o pensamento devido a um pacto que fez com o diabo, e que ela própria é mais que suspeita de ter herdado esse dom só por ser filha de quem é? É Anne uma vítima por procurar a felicidade por caminhos tortos, influenciada por um sistema e pelos dogmas da sociedade, ou é culpada porque age egotisticamente?
O filme não é muito apto a procurar uma resposta e em vez disso acomoda-se numa solução que parece demasiado fácil, e que se o filme fosse americano me levaria a suspeitar que teria sido imposto pelo Código de Produção, que nas décadas de 1930 a 1950 era controlado pela Legião Católica. Se no caso de ‘Ordet’ o final ‘cristão’ é altamente imbuído de significado, tornando-se o símbolo do filme, o mesmo não parece passar-se em ‘Vredens dag’, e o final é a sua maior falha, e impede que se torne num filme praticamente perfeito. Mesmo assim, não impede que ‘Vredens dag’ seja mais uma grande obra de Dreyer, potentíssima na sua contenção, sublime na sua concepção técnica, hipnotizante no seu retrato de personagens, onde ao centro está a extraordinária Lisbeth Movin, que eu não vi em nenhum outro filme, mas que recordo sempre, por conhecer este.
Após ‘Vredens dag’, Dreyer fez apenas mais dois filmes, antes da sua morte, um quarto de século depois em 1968. Foram ‘Ordet’ em 1955, que como o leitor já reparou considero magnífico, e ‘Gertrud’ (1964) que nunca vi, mas espero ver em breve, porque filme mau de Dreyer é coisa que eu até hoje desconheço.
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