Realizador: Alfonso Cuarón
Actores principais: Sandra Bullock, George Clooney, Ed Harris
Duração: 91 min
Crítica: ‘Gravity’ (‘Gravidade’ em português) é, como o público por estes dias bem sabe, o último filme do realizador mexicano Alfonso Cuarón, que está mais que destinado a ganhar o Óscar de Melhor Realizador dentro de uma semana. O homem que cedo chamou a atenção de Hollywood após o seu primeiro filme mexicano (‘Solo com tu pareja’, 1991), e que após as suas duas experiências de estúdio (‘Little Princess’, 1995, e ‘Great Expectations’, 1998) voltou ao México para revoltar a chamar a atenção, desta vez não só de Hollywood mas do Mundo inteiro com o surpreendente ‘Y Tu Maman también’ (2001), finalmente fez a transição definitiva para os grandes estúdios e os grandes mercados quando realizou em 2004 um dos filmes da saga de Harry Potter. Mas para mim foi o seu filme seguinte (e o seu último antes de ‘Gravity’), ‘Children of Man’ (2006) que realmente revelou o quão fabuloso pode ser Cuarón a realizar. ‘Children of Man’ é magnífico em termos de realização, porque a beleza dos enquadramentos, a escolha dos planos longos, a forma genial como a história é conduzida visualmente, resultam, realmente, de uma abordagem de realização e não são uma mera consequência da história. ‘Gravity’ é um filme que se passa inteiramente no espaço, portanto todos os planos terão obrigatoriamente que ser belos, porque o espaço, o estar em órbita a olhar para a Terra, é realmente algo que é belo. Independentemente do rumo que o filme tome, o visual, se for bem executado (e isso é do departamento de efeitos visuais e não da realização), será sempre brilhante (tal como ocorreu o ano passado com ‘Life of Pi’…). E este não é o caso de uma história como a de ‘Children of Man’. Todo o brilhantismo visual que o filme tem proveio da escolha e da visão de Cuarón. Cuarón merece o Óscar de Melhor Realizador, sem dúvida, mas vai tê-lo pelo filme errado. Em 2006, quando Scorsese levou para casa (finalmente, e praticamente por favor) a estatueta, Cuarón teria sido uma escolha muito mais justa.
Isto porque ‘Gravity’ é daqueles filmes cuja ideia é muito boa, mas a necessidade de fazer o filme ‘para todos os públicos’, para o adequar aos mercados que geralmente correm em magote para ver filmes de George Clooney e Sandra Bullock, e para o tornar material digno de Óscares (como hoje entendemos os Óscares, bem entendido…), destruiu qualquer rumo artístico, existencialista, ou de perfeição cinematográfica que o filme poderia ter. É como se a meio de ‘2001: A Space Odyssey’ (1968) o filme se transformasse num blockbuster de acção, ou num filme inspiracional. Em ‘Gravity’ é precisamente isso que acontece. No final, praticamente patético, quase que se poderiam escrever as letras ‘baseado numa história verídica’, tal como ostentam 6 dos 9 filmes nomeados este ano para Óscar de Melhor Filme.
A cena de abertura do filme é magnífica e de tirar o fôlego. É, ao mesmo tempo, o melhor, o mais fabuloso e o mais surpreendente plano de todo o filme, o que obviamente é um turn off num filme desta natureza. Todos os trunfos foram lançados logo na primeira cartada, o que é uma das regras de ouro do que não se deve fazer. Visualmente e em termos de realização esta sequência de quase 15 minutos é tão extraordinária (e em 3D ainda é melhor) que o filme vai sempre a descrescer de qualidade até ao final, porque começa no seu pico. Por outro lado há outro grande turn off. A sequência é toda feita digitalmente. Durante mais de metade do filme (até Bullock finalmente entrar dentro de uma estação espacial), o filme bem que poderia ter sido feito na Pixar. É, para todos os efeitos, um filme de animação. Só o rosto real dos actores, sobreposto digitalmente, aparece por detrás do visor do fato espacial. Todos adoramos os efeitos visuais de ‘2001’, de ‘Blade Runner’ (1982), de ‘Star Wars’ (1977) porque eram feitos com truques de fotografia e com maquetas e naves reais em miniatura. Sentíamos a realidade, a ferrugem, o peso das coisas. Agora, por mais evoluídos que sejam os efeitos digitais, não deixam de ser efeitos digitais. Por isso é que a cena subtil em que Bullock dá a volta em gravidade zero muito lentamente dentro da estação espacial e se coloca numa posição fetal que só poderá ser uma homenagem ao bebé no final de ‘2001’, é muito mais poderosa que qualquer grandiosidade visual dos primeiros 45 minutos passados no negro do espaço. Porque aqui vemos todo o corpo de Bullock (pode estar preso por cabos invisíveis, mas não interessa) e portanto sentimos essa realidade.
Três astronautas encontram-se fora do vaivém espacial a fazer reparações e a instalar um satélite. À sua volta o vazio do espaço. Lá em baixo, a melhor visão de todas, o planeta Terra. Claro que só vemos o rosto de dois, Clooney e Bullock (incompreensível porque também não se vê o terceiro) e vamos ouvindo a sua conversa rotineira com a missão de controlo em Huston (voz de Ed Harris – lembraram-se de ‘Apollo 13’, foi?). Após o exibir durante 15 minutos (num único plano sem cortes) de tudo o que há para exibir em termos de efeitos visuais, algo corre mal. Aparentemente um satélite russo explodiu (ou foi alvejado por um míssil, não se percebe bem – a primeira de muitas coisas mal explicadas no filme) e portanto um monte de detritos entrou neste momento em órbita a alta velocidade. Ou seja, de 90 em 90 minutos (o tempo que demoram a dar a volta à Terra), estes detritos vão atingi-los como se fossem uma chuva de meteoritos. O timming dos detritos é incrível. Bullock e Clooney podem fazer tudo e mais alguma coisa, mas é no preciso momento crucial em que não podem falhar, em que precisam de abrir uma escotilha, ou de fazer qualquer outra coisa, (e claro numa altura em que o filme já não tinha acção há muito tempo), que os detritos regressam para estilhaçar tudo de novo. Eh pá, já passaram 90 minutos outra vez, lá estão eles de volta para apimentar as coisas…
Da primeira vez que surgem, os detritos destroem quer o vaivém (e toda a restante tripulação, que também nunca vimos, é morta), quer o terceiro membro que estava do lado de fora (o indiano que nunca aparece). Só Bullock e Clooney sobrevivem, sós no espaço, nos seus fatos espaciais, sem nave para onde voltar. Bullock inclusive fica à deriva (Clooney tem uns propulsores que o permitem deslocar-se a seu bel prazer… até se acabar o gás…). Neste ponto o filme estava interessantíssimo e espectacular e Bullock desempenha um papel como nunca na sua vida (nem mesmo aquele que lhe valeu o Óscar em ‘The Blind Side’, 2009). Parecia que a sua viagem à deriva iria iniciar uma verdadeira odisseia no espaço como em ‘2001’. Mas foi sol de pouca dura. Clooney vem buscá-la e ambos tentam dirigir-se, puxados pelos jactos de Clooney, até uma estação orbital russa. Até que se separam, e o filme se transforma numa odisseia enfadonha de sobrevivência da personagem de Bullock, de set piece em set piece, de estação espacial em estação espacial, de satélite em satélite, de passagem de detritos em passagem de detritos, à procura de uma nave ou uma cápsula de sobrevivência que a poderá permitir regressar à Terra. Neste ponto, eu estava à espera que aparecesse, não Clooney, mas o Bruce Willis. Com o aproximar-se do final, o filme dá a volta completa e transforma-se numa espécie de ‘Armageddon’…
Há várias coisas que não se percebem para além do timming perfeito dos detritos e da reviravolta de filme artístico para filme ‘Armageddon’ que ‘Gravity’ possui. Para começar a NASA tem vaivéns de emergência prontos a descolar para qualquer eventualidade, que demoram meia dúzia de minutos a chegar lá acima. Sendo que os detritos passam pelo menos três vezes, isso dá noventa minutos vezes três, ou seja mais de quatro horas, como quem diz, teriam mais que tempo para ir a órbita salvar os astronautas. Em segundo lugar, a personagem de Clooney é ridícula. Por um lado é incoerente ele aparecer. Se o filme é a história de sobrevivência de Bullock, então Clooney deveria ter tanta importância como as outras personagens, que nunca aparecem, e das quais só se ouve a voz. Por outro Clooney parece a Madre Teresa de Calcutá do Espaço, o Ghandi da NASA. Nada o afecta, é sempre Clooney. Está prestes a morrer? Ainda manda a piadinha. Sem hesitar, sacrifica-se para salvar Bullock. Qual o seu destino? Não se sabe, o filme esquece-se que ele ainda anda para ali à deriva no espaço. Tanto quanto sei, também pode ter feito um percurso semelhante ao de Bullock. E o seu reaparecimento mais tarde no filme é totalmente previsível e desprovido de qualquer sabor. Neste ponto, está ali porque 1) é Clooney, 2) os produtores acham que o público moderno não consegue suportar muito tempo de filme com apenas um actor e 3) para ‘explicar coisas na história’. É como quando Bullock fala sozinha. Quando estava à deriva no espaço era muito mais credível e muito mais interessante como personagem. De repente, toda a sua personalidade se altera. Porquê? Porque fala sozinha, porque sonha com Clooney. E aí já parece a Ripley dos filmes do ‘Alien’, já parece a sua própria versão do Bruce Willis. De repente consegue ler russo, e depois chinês, e carregar em botões em russo e em chinês, e fazer tudo e mais alguma coisa. Não há crise, pensaram os produtores, ela explica umas coisas com umas frases soltas a falar sozinha e o público nem se apercebe que os eventos não têm muita lógica....
E o final é a última grande coisa ridícula do filme. Não o posso comentar sem o revelar, mas apenas posso dizer que o filme acha que está a dar um fecho à história, que está a ser muito heróico (aquele plano de baixo para cima de Bullock, o que é aquilo?!), mas eu não concordo. O filme não está a explicar nada! Tanto quanto sei, bem que poderemos estar a falar do ‘Planeta dos Macacos’ ou do ‘Naufrago’… Heróico? Nada disso. O filme parece é estar a preparar uma sequela, ‘Gravity 2: Survivor’.
Eu acho que em ‘Gravity’ se perdeu uma oportunidade única de realizar um filme magnífico. Mas o sell-out foi demasiado. O filme começa de uma forma extraordinária mas depois nunca faz jus a essa concepção, e a história toma um rumo completamente banal, completamente inesperado para o espectador que viu o trailer, conhece Cuarón e estava à espera do melhor filme do espaço desde ‘2001’. Mas ‘Gravity’ é o mais próximo que o cinema moderno, feito em papa, e ‘digno’ daquilo que hoje em dia os Óscares significam, pode chegar de bom cinema, e portanto valha-nos isso. Mas ninguém me convence que isto é o filme do ano, ou o filme da década e um marco na forma de fazer cinema. E ninguém me convence que isto é um excelente trabalho de realização. É uma consequência, isso sim, da enorme capacidade que existe hoje em dia de gerar e gerir efeitos visuais. E um grande realizador como Cuarón poderia ter visto mais além de uma história 'inspiracional' que acaba por se tornar completamente desprovida de interesse, e não deveria ter permitido certas coisas, como por exemplo Clooney andar a pavonear-se (é exactamente isso que ele faz) pelo filme. Em ‘Children of Man’ Cuarón foi brilhante a realizar, e o filme é muito mais impactante, e muito mais poderoso, e muito melhor, e não precisou de ter um décimo dos efeitos visuais. O mesmo se pode dizer de ‘Y Tu Máman Tambiém’. A partir do momento em que já desfrutamos das vistas do espaço, em que já interiorizamos o 3D e o magnífico ambiente que o design de produção digital permitiu criar, ‘Gravity’ pouco ou mais nada oferece. Bullock foi uma grande agradável surpresa na maior parte do filme, mas depois nem ela consegue salvar algo que poderia ser muito mais, se ao menos tivesse tido a coragem de ser ousado. ‘Gravity’ pode ser inovador, e os Óscares nas categorias técnicas não irão fugir de certeza, mas não é ousado nem original. No final de ‘Alien: Ressurection’ (1997) Sigourney Weaver também está numa nave a tentar chegar à Terra. E depois?
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