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Philomena

Ano: 2013

Realizador: Stephen Frears

Actores principais:  Judi Dench, Steve Coogan, Sophie Kennedy Clark

Duração: 98 min

Crítica: Na minha pré-adolescência tive uma grande paixão (cinematográfica) pela actriz Geena Davis. Nessa altura, em que vi todos os filmes dela que consegui encontrar, descobri o filme ‘Hero’ (1992), uma das melhores, senão a melhor, sátira jornalística/social da década de 1990, e que contém uma interpretação extraordinária de Dustin Hoffman. O seu realizador, o inglês Stephen Frears, ficou-me na retina e desde então fiquei sempre a atento à sua produção. Mas a verdade é que a carreira de Frears, que despoletou com o drama homossexual ‘My Beautiful Laundrette’ (1985), tem estado muito presa a filmes como ‘Hero’, que poderão ser efectivamente bons (pelo menos na perspectiva de alguns), mas que passam na maior parte dos casos despercebidos, quer da crítica, quer do público. Entretanto, Frears vai tendo um ou outro mega sucesso, ‘Dangerous Liaisons’ (1988), ‘High Fidelity’ (2000), que poderão não ser os seus melhores trabalhos mas que vão carregando o seu nome e não deixam dúvidas quanto ao seu talento. 

Em 2006, Frears elevou-se a outro patamar. Deixou de ser Frears e tornou-se “o realizador de ‘A Rainha’”. Sinceramente não gostei deste filme. Qualquer filme cujo interesse se esgota depois de acabar a discussão sobre o quão parecido é o actor Michael Sheen com Tony Blair (e quem diz Blair diz todas as outras personagens) não pode ser um bom filme. Mas ‘The Queen’ tinha os ingredientes necessários para fazer Frears entrar no grupo ‘dos bons’ da Academia; uma telenovela dos famosos, baseada em factos reais, mas realizada de forma artística e com qualidade. O filme pode não ter mérito próprio mas tinha infinitas possibilidades de rentabilidade na bilheteira. Se houver um filme de fórmula semelhante, então o rótulo ‘do realizador de A Rainha’ sairá logo da caixa e os prémios estarão à porta, porque os interesses serão os mesmos. E ‘Philomena’ é um filme assim.

Frears realizou quatro filmes entre ‘The Queen’ e ‘Philomena’ e nenhum teve o tratamento VIP de ‘o realizador de A Rainha’. Eu gostei particularmente de ‘Tamara Drew’ (2010) uma comédia dramática na Inglaterra rural, mas nem sei se ‘Lay the Favorite’ (2012) estreou em Portugal, enquanto que ‘Muhammad Ali's Greatest Fight’ (2013), o filme para a televisão que passou nos canais por essa Europa fora nos últimos dois meses (em Espanha passou o mês passado), obviamente não fez, nem provavelmente irá fazer parte da programação dos nossos canais. Mas já ‘Philomena’ é outra história e constitui novo ouro, pois está apontado exactamente para o mesmo público que adorou ‘The Queen’.

Mas a triste verdade é que não só ‘Philomena’ é um daqueles filmes que tanto se me dá – nem é bom nem é mau, é um filmezinho – como o facto de ser realizado ou não por Frears é totalmente irrelevante. O material seria exactamente o mesmo qualquer que fosse o realizador. É um daqueles filmes em que a realização não pode ser intrusiva pois está feito com moldes claros e simples, completamente estereotipados, que o argumento e a produtora há muito definiram, o que deixa a pergunta no ar de se Frears não foi contratado precisamente por ser, pura e simplesmente, ‘o realizador de A Rainha’. ‘Philomena’ não tem valor (nem provavelmente quer ter) para além da sua ‘história verídica’ (tal como se salienta claramente no início, e como é o caso da maior parte dos filmes nomeados este ano para o Óscar). Conta essa história, tintim por tintim, que é embelezada provavelmente da mesma forma que a reportagem jornalística, e consequente livro que deu origem a este filme, está embelezado. Tirando uma ou outra ‘frase de trailer’ ou diálogo ‘para fazer rir o público’ ou ‘para exibir a personagem’, o atirar claro de culpas para uma personagem fictícia para ‘não ofender o sistema’, e as boas actuações (que são boas), ‘Philomena’ pouco ou nada se distingue de um documentário que poderia ser visto no canal Odisseia ou no canal História. O seu poder está na história, somente e só. As cenas são incrivelmente curtas, com frases telegráficas, como se fosse o ‘best-off’ de cada conversa, e logo se corta para a cena seguinte. Memórias embelezadas do jornalista que as escreveu, e nada mais, que os argumentistas se limitaram a transpor. Depois da história, dramática, pungente, humana (que é isso não haja dúvidas), passar, ou se se já a souber (como era o meu caso), o filme não oferece mais nada. E se é para pura e simplesmente contar esta história, por mais dramática, pungente e humana que seja, o artigo do jornal teria sido suficiente, não é preciso fazer um filme.

Judy Dench interpreta uma senhora de idade, Philomena, que começa o filme a ir a uma igreja acender uma vela no dia de anos de uma criança cuja fotografia antiga guarda com muito carinho. Numa série de flashbacks, percebemos que essa criança é seu filho, e que já não o vê há mais de 50 anos. Philomena era órfã e vivia num rígido convento católico irlandês, gerido por umas irmãs de elevado fanatismo religioso, como já vimos em vários filmes e retratos da época. Um dia, numa feira popular, Philomena perde a virgindade com um rapaz que acabara de conhecer (é capaz de ser a cena mais bem filmada do filme, onde Frears, pelo menos, pode mostrar o que sabe fazer). Ignorante, Philomena não sabe que pode engravidar. Quando isso acontece, é punida pelas freiras e forçada a trabalhar para expurgar o seu pecado. A sua criança, considerada bastarda, é vendida a uma abastada família americana, tal como aconteceu inúmeras vezes durante décadas, como o filme acaba por nos dizer, para nos dar umas lições de história. Após pagar a sua ‘dívida’ em 4 anos, Philomena deixou o convento e fez a sua vida. Sempre procurou o filho, mas a sua ignorância nunca a levou para fora da sua cidade nem da Irlanda, e a sua consciência fez com que nunca contasse isto a ninguém, nem ao seu futuro marido, nem à sua segunda filha, que acaba por ter. Mas se a história fosse só isto não haveria filme, portanto no mesmo dia em que a história começa, a filha de Philomena descobre-a agarrada à fotografia do miúdo e pede satisfações. Philomena revela a sua história, sem hesitar, depois de 50 anos de silêncio. A filha fala com a personagem de Steve Coogan (Martin) um jornalista político e concelheiro do governo recém-despedido num escândalo, que tenta encontrar um rumo para a sua vida. Obviamente, Philomena e Martin, completos opostos, vão começar por se dar mal e acabam por se dar bem. Obviamente, Philomena e Martin começam uma viagem na Irlanda, passam pela América e terminam de novo na Irlanda, na busca do filho e das pessoas que o conheceram, até um final surpreendente, ou pelo menos suficientemente surpreendente, dentro da previsibilidade inerente a este tipo de películas.

Há várias coisas que para mim não funcionam neste filme. Para começar, eu já vi esta história, pelo menos a de base. Há um filme muito interessante chamado ‘The Magdalene Sisters’ (2002), que ganhou uma catrefada de prémios em Festivais internacionais incluindo o Leão Dourado em Veneza, sobre estas ‘mulheres desavergonhadas’, que eram fechadas em conventos após terem dado à luz fora do casamento (Ganhou Óscares? Claro que não!). Aliás, desenvolvi a teoria que a verdadeira Philomena poderá ter visto este filme (e todas as outras notícias que vieram a baile sobre este tema no início da década de 2000). A aventura que o filme retrata ocorreu mais tarde nesta década e o livro que o jornalista Martin Sixsmith escreveu, no qual este filme é baseado, é apenas de 2009. Portanto, nada disto é assim tão novidade como o filme faz querer parecer. Nem a história, nem a atitude de Philomena perante a sua ‘revelação’ (que é estranhamente espontânea no filme), nem o próprio filme. Claro que ‘The Magdalene Sisters’ não é um filme propriamente análogo pois é de época, sobre as pobres raparigas durante o seu período de enclausuramento. Não há o ângulo da mulher à procura do filho anos mais tarde que supostamente (supostamente, reitero) é o cerne de ‘Philomena’. Mesmo assim ‘The Magdalene Sisters’ é muito mais humano e realista que ‘Philomena’ e faz mais para denunciar estas práticas horripilantes do que faz ‘Philomena’, que se vai enroscando confortavelmente no seu retrato da ‘coitadinha senhora simpática’.

Depois, como disse, o filme tem um balanço muito estranho entre o argumento e o desenvolvimento das suas personagens. Há muito trabalho em demonstrar, uma e outra vez, o quão ignorante e simplória é a personagem de Dench, e tão queque e convencido é a personagem de Coogan. Mas depois, volta e meia, para dar estilo, Dench diz uma ‘frase trailer’ completamente do nada, com uma astúcia e uma clareza invejáveis, e Coogan (que retrata a personagem mais completa deste filme – talvez por Coogan ser um dos argumentistas!) fica perdido com tanta sabedoria e vira-se para a introspecção do seu próprio ser. Só Dench parece saber tudo. Está sempre serena, plácida, uma alma simplória mas com o coração do tamanho do mundo e uma sabedoria, não proveniente de cultura, mas do que parece ser uma relação una com o universo ou o cosmos, apesar de todos os seus dramas pessoais. E isto é mais enfatizado pelos diálogos, que são parcos e parecem provir, como disse, de uma memória embelezada do jornalista. São aquilo que o jornalista reteve da conversa real, portanto não são assim muito naturais, o que torna ainda mais artificial todo o retrato destas personagens, e das coisas que lhe ocorrem.

Por exemplo, Philomena e Martin visitam a irmã adoptiva do filho de Philomena, ou seja, a outra criança que foi adoptada pelo mesmo casal no mesmo dia em que adoptaram o filho de Philomena. Ela está cheia de pressa de os pôr porta fora e não pergunta uma única vez a Philomena como era a sua mãe verdadeira, como seria de esperar de uma criança adoptada que um dia encontra alguém que conheceu a sua mãe. Eu pensei nisso durante a cena e tive uma agradável surpresa quando Martin fez precisamente a mesma pergunta na cena seguinte, no carro com Philomena. Mas foi só isso, interrogou-se e prontos. Ninguém mais mencionou este facto em qualquer ponto do filme. Não havia ali um ‘segredo’, como eu imaginei quando estava a ver a cena. Ou seja, o que se passou foi que isto realmente aconteceu, a senhora real comportou-se desta maneira, e o jornalista interrogou-se porquê e escreveu isso no seu livro. Agora, que interesse tem este facto para o filme? Nenhum. Que interesse tem isso para a história de Philomena? Nenhum. E desta forma se desenrola o filme, sem saber discernir o que utilizar ou não do livro para que se torne num produto cinematográfico com maior qualidade e profundidade. Em caso de dúvida, os argumentistas parecem ter optado por usar tudo. Por isso é que a nomeação para Óscar de Melhor Argumento Adaptado me parece ridícula.

E o que é mais curioso é que todo o filme acaba por ser um grande pedaço de ironia. O próprio jornalista na primeira vez que encontra Philomena distorce as suas palavras quando está a tomar notas, como o filme parece fazer nos diálogos entre as personagens. Mais tarde, vangloria-se à sua editora do ‘ângulo humano’ que se vai adensando, como por exemplo o facto do filho dela revelar ser um homossexual com SIDA que trabalhou para o presidente dos Estados Unidos. Primeiro rejubila com a perspectiva dos jornais que vai vender, mas depois arrepende-se como parte do arco da sua personagem. Mas não está todo o filme a capitalizar nas mesmas coisas? Não está todo o filme a auto-promover-se pelo facto de falar de mães solteiras, velhotas à procura de filhos, homossexuais, etc? O que me deixa parvo é o facto de o filme não se aperceber da constante hipocrisia que vai debitando. Eu apercebi-me, e não achei grande piada.

Por fim o filme também comete ainda mais um grande pecado. No final, para que os católicos não fiquem ofendidos (lá se iam os Óscares….), aponta as culpas a uma freira em particular, agora velhota, outrora chefe da instituição, como se fosse um filme do Poirot. Dench é magnânima a perdoar, como provavelmente foi Philomena na vida real. E por esta altura, um Coogan apanhado pelo turbilhão das circunstâncias já fez o seu arco completo emocional e já não quer publicar a história, como Philomena nunca quis o filme todo. Mais uma vez, o filme é a prova contrária deste sentimento. Não quer publicar a história mas estamos todos cá a sabê-la. Porquê? Lá está, Philomena diz mais uma frase à pressa: “afinal mudei de ideias, as pessoas precisam de saber isto”, e o assunto fica resolvido. Mas as pessoas já sabem isto. Pelo menos há uma década. E muitas, como eu, já viram filmes e documentários sobre isso. Precisam de mais um? Certamente, do mesmo modo que as histórias sobre judeus mortos na Segunda Guerra Mundial nunca perdem o interesse. Há sempre o ‘ângulo humano’. Nunca se esgota.

No final, ‘Philomena’ é todo um filme sobre o ‘ângulo humano’. Não tem outro. Foi uma hora e meia de debitação telegráfica de uma história. Interessante, sim, sem dúvida, como história, que o público passou a conhecer. Pouco interessante em todos os restantes aspectos cinematográficos. ‘Philomena’ é um daqueles filmes, como disse no início, que não é bom nem é mau. Passa bem, dá para rir num ou noutro momento e nunca é demasiado pungente para que haja choros ou ódios que se gerem no público contra os ‘maus’. No final tudo está bem quando acaba bem, como um bom romance de aeroporto, e o objectivo é, usando a expressão que inventei para o filme ’12 Years a Slave’, ‘chocar comodamente’. O objectivo é que as senhoras de idade digam deste filme ‘ai coitadinha da Philomena’, ‘oh que pena que tenho dela’, mas ao mesmo tempo o filme não tem o mínimo de força para que a história fique tatuada no espectador. Daqui a dois dias já me esqueci dela e estou pronto para o próximo documentário do canal ‘Vidas’ (perdão, filme) que me derem sobre um tema semelhante. Gostei das actuações, não gostei da forma como o argumento está escrito e não gostei de ter pago um bilhete, pois este é um filme perfeito para ver em casa, enquanto se está com o olho noutra coisa qualquer. 

Não há mal nenhum em vê-lo, não estou a dizer isso, serve um determinado mercado e não é mau cinema, mas a nomeação para Óscar de Melhor Filme é um total e completo escândalo. Como este há vinte, trinta, cinquenta filmes por ano. O que distingue ‘Philomena’ da carrada enorme de filmes deste género que são feitos todos os anos? Absolutamente nada. Então porque é que ‘Philomena’ está entre os 9 nomeados para o Óscar de Melhor Filme, e esses vinte, trinta, cinquenta filmes iguais a ‘Philomena’ não estão, e ‘The Magdalene Sisters’ não obteve uma única nomeação em 2002? A resposta é simples. Os produtores e os distribuidores de ‘Philomena’ conhecem as pessoas certas na Academia, e os produtores e distribuidores dos restantes filmes não. É a vidinha.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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