Realizador: Roberto Rossellini
Actores principais: Carmela Sazio, Gar Moore, William Tubbs
Duração: 125 min
Crítica: O realizador italiano Roberto Rossellini é para mim um dos autores mais influentes, se não o mais influente, do cinema italiano do pós-guerra. O homem que nos anos 1950 ganharia notoriedade pela sua ligação (dentro e fora do ecrã) a Ingrid Bergman (juntos fizeram ‘Stromboli’, 1950, ‘Viaggio in Itália’, 1954, e mais 4 filmes) revelou-se ao mundo em pleno em 1945. Quando os alemães ainda ocupavam Roma, Rossellini estava nas ruas a filmar o brilhante ‘Rome, Cittá aperta’ (1945), com um orçamento de meia dúzia de tostões, actores amadores, mas um incrível sentido de realismo e pungência dramática que nenhum estúdio, nenhum grande realizador conseguiria reproduzir. Porque Rossellini, a sua equipa técnica e os seus actores estavam realmente a viver os eventos. Era mais do que um documentário mas também não chegava a ser um filme em pleno, pelo menos na definição que o cinema tinha até então. Foi o nascimento daquilo que se apelidou do movimento do ‘neo-realismo’, que ficou muito em voga na Itália nos 20 anos seguintes.
Não contente com ‘Roma, Cittá aperta’, nem com a Palma D’Ouro que ganhou, ainda as tropas aliadas estavam a ajudar a reconstruir o país, já Rosellini estava de novo nas ruas para filmar ‘Paisá’. Este é um filme que contém 6 histórias separadas (digamos 6 curtas metragens), de cerca de 20 minutos cada uma, cada qual passada numa parte diferente da Itália nos últimos dias da guerra, após o desembarque das tropas americanas.
Mais uma vez, a cinematografia de Rossellini tem muito má qualidade, o som e a imagem são fracos, e alguns dos actores são horríveis. Mas isto realmente não é importante. Rossellini trabalhava com o que tinha, e fazer o que ele fez num país em guerra é surpreendente. O que é importante é que a profundidade da mensagem do filme é soberba e o realismo do retrato das várias personagens dos vários segmentos é comovente. Não consegue no entanto ser tão poderoso como ‘Roma, Cittá Aperta’, e isso será provavelmente consequência das histórias, mais curtas, mais desconexas, não conseguirem ter essa força, esse magnetismo, tão bem materializado, ou melhor, materializado de uma forma tão emocionalmente perfeita.
O primeiro segmento é para mim claramente o pior. Um grupo de soldados americanos chega a uma pequena aldeia italiana ao cair da noite, e mais tarde um soldado conversa (ou melhor tenta conversar) com uma camponesa. Os actores amadores são simplesmente horríveis, mas apesar disso, a forma atabalhoada como tentam falar um com o outro revela uma humanidade latente e deixa antever o verdadeiro tema do filme, que vai penetrando aos poucos no espectador, à medida que as curtas se desenrolam. O segundo segmento mostra a relação, entre os escombros, de um soldado americano e um pequeno rapaz italiano órfão. Apesar do conforto paternal que o soldado lhe dá, o miúdo acaba por lhe roubar as botas (talvez o seu objectivo desde o inicio?!) quando este adormece. No terceiro segmento, um soldado americano aborda uma rapariga italiana, forçada pelas circunstâncias e pela pobreza a tornar-se uma prostituta.
Estes três primeiros segmentos desenrolam-se a um ritmo lento, ponderando pausadamente sobre as consequências sociais do pós-guerra. A guerra pode estar a acabar, mas para todos os efeitos os italianos ainda vivem num pais ocupado, mesmo que os ocupantes sejam os soldados americanos, disponíveis para ajudar. É portanto só no quarto segmento que a tensão e a intensidade do filme, e inevitavelmente do período do pós guerra, vem ao de cima. Uma enfermeira americana tenta encontrar o seu antigo namorado, que durante a guerra se tornou o líder da resistência, algo que inevitavelmente acabará por o mudar. Mas apesar deste aumento de intensidade o filme volta a abrandar no quinto segmento. Três padres do exercito americano (um católico, um judeu e um protestante – não, não entraram num bar!), passam uma noite num velho mosteiro. No silêncio e solidão da noite, esta curta oferece algum equilíbrio emocional e algum significado para a loucura da guerra. Apesar disso, é também o segmento mais cómico, oferecendo algum escape e atenuando, mais uma vez, o tom dramático do filme. Finalmente, no último segmento um grupo da resistência junta-se a um regimento do exército americano, mas acabam por ser cercados pelos alemães, num clímax violento e impactante.
Tudo somado, ‘Paisá’ acaba por ser menos um filme de guerra e mais um filme sobre os povos, ou as pessoas, que a lutaram. Em todos os segmentos o relacionamento entre italianos e americanos tem lugar de destaque, e é essa ligação o objectivo principal do filme, embora o ponto de vista favorecido seja sempre, como seria de esperar, o italiano. São os italianos que têm de lutar para se verem livres dos alemães, outrora seus aliados. São os italianos que têm de lutar para de novo reorganizar as suas vidas e o seu país. São os italianos que têm que se esforçar por perceber estes salvadores americanos, que para todos os efeitos também ‘invadiram’ o seu país, e com quem têm de aprender a viver enquanto o reconstroem. O poder do filme está aqui, nesta ligação, na odisseia deste povo perdido no meio da guerra, um povo que não pode ser livre pois ainda está subjugado, de uma maneira ou de outra. Apesar de salvos da opressão Nazi, há outras lutas, sentimentais, de sobrevivência no dia-a-dia, que ‘Roma Cittá aperta’ já tinha mostrado e que ‘Paisá’ continua a enfatizar. Mesmo com a paz e a tão esperada libertação a poucas semanas de distância, há o medo, em todo o povo italiano, do desconhecido, do que é estranho e diferente, da própria liberdade, por um lado, e o medo de uma entidade ‘controladora’, embora já não seja ‘opressora’ e esteja na sua terra para o seu próprio bem, por outro.
Há que gerir todos estes medos, todas estas emoções. ‘Paisá’ é uma forma de Rossellini exprimir o seu próprio sentimento que é, na verdade, o sentimento de todo o povo italiano. ‘Paisá’ é a sua voz nesta altura crucial da história. Por isso mesmo, só posso deduzir que ‘Paisá’ tenha sido um filme incrivelmente poderoso na altura do seu lançamento. E há factos históricos que o comprovam, desde relatos diversos ao testemunho da própria Ingrid Bergman (que após ver este filme, sentiu-se tão emocionada que sentiu necessidade de conhecer Rossellini, o que levou primeiro à sua relação profissional e depois pessoal). Contudo, creio que, vendo-o hoje em dia, é um daqueles filmes que se tornam datados. Mas paradoxalmente, neste filme isso não é necessariamente mau. A razão para ser datado (ser muito focado e não mostrar o contexto mais alargado do conflito histórico), é precisamente a mesma razão que o torna memorável. O argumento é de uma ostensiva simplicidade, a actuação e a cinematografia não são dignas de nota, o ritmo do filme acelera e desacelera sem grande coerência ou equilíbrio, mas a força por detrás da realização, a mensagem sentimental que abraça todo o filme, é extraordinária. É um filme sobre um povo que não fala do povo, fala das pessoas que o constituem (parece que estou a dizer a mesma coisa, mas há aqui uma subtil diferença).
Este é um verídico drama de guerra, sem embelezamentos, sem artifícios cinematográficos para apelar ao público, sem lugares-comuns, feito com honestidade e dedicação por um grupo de cineastas que ainda estavam a viver os eventos à medida que os estavam a retratar ficcionalmente. Como disse no início, não é um documentário, nem chega a ser um filme em plena definição. É um pedaço da história do cinema mas, bem mais que isso, é um pedaço da própria História; simples, lírico e sincero.
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