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Dallas Buyers Club

Ano: 2013

Realizador: Jean-Marc Vallée

Actores principais: Matthew McConaughey, Jennifer Garner, Jared Leto

Duração: 117 min

Crítica: Filmes sobre pessoas com o HIV, o vírus da SIDA, sobre as suas lutas e a sua tragédia, certamente há muitos, mas não me lembro de ver um tão mediatizado desde 1993, ano em que ‘Philadephia’ ganhou dois Óscares, Melhor Actor para Tom Hanks e Melhor Música para Bruce Springsteen. Apesar de ser um filme ‘social’ relevante que surgiu numa altura em que o estigma contra a doença, e sobre o tipo de pessoas que a podia contrair, finalmente começava a ser quebrado, e apesar de possuir muitos clichés associados e este tipo de filme, ‘Philadelphia’ conseguia ter valor por mérito próprio e elevar-se acima da condição do seu tema, apresentado um poderoso ‘drama de tribunal’ numa altura (a primeira metade da década de 1990) em que este género de filme estava muito em voga.

Precisamente 20 anos depois, o ‘cinema social’ levou uma grande volta. Como já discuti em críticas como ‘Extremely Loud and Incredibly Close’ ou ’12 Years a Slave’ neste momento o cinema americano está muito contente em basear-se em histórias verídicas sobre um ‘tema social relevante’ (homossexualidade, xenofobia, adição a drogas, SIDA), e de fazer filmes que só são reputados e aplaudidos por causa disso, e não pela sua intrínseca qualidade cinematográfica. Tendo ‘Dallas Buyers Club’ várias pessoas com SIDA, travestis, drogados e homossexuais (o cocktail completo) eu estava com medo que fosse apenas mais um deste tipo de filmes, e entrei na sala um pouco relutante e dividido. O filme tinha claramente coisas a favor. Não é de um grande estúdio, é de companhias menores e independentes (Voltage Pictures e Truth Entretainment), é realizado pelo canadiano Jean-Marc Vallée, cuja curta carreira está ainda fora dos grandes círculos (não a posso julgar pois não vi nenhum filme) e que apenas roçou a fama por um dos seus filmes ‘Young Victoria’ (2009) ter ganho um Óscar para Melhor Guarda-roupa, e possui como actor principal Matthew McConaughey, um homem que se elevou do comercial e do papel de galã (ao qual regressa de quando em quando para o público não se esquecer dele), para o de ‘character actor’ no cinema americano independente, com grande sucesso. Tudo isto faria querer que o filme estaria menos preocupado em vender uma mensagem social, e mais em vender uma história, uma personagem. Mas por outro lado o filme teve decisões comerciais, ao nível publicitário, da distribuição e do casting, por exemplo, de Jared Leto, actor menor que agora tem muito mais sucesso e projecção como músico.

E a verdade é que esta dualidade que eu suspeitava acaba por realmente acontecer no filme, que se escapa, numa primeira instância, do inevitável cliché do ‘cinema social’ e segue o seu rumo com muito interesse, muito enfoque na personagem e na sua interpretação e menos na sua doença, mas que acaba, quando deveria estar a atingir o seu clímax emocional, por reverter para a sua mensagem social, para o ataque ao sistema, para o enfoque no dramatismo exacerbado que permite ganhar prémios, sim, mas não que o filme se torne num produto coeso e de perfeita qualidade.

A primeira metade do filme é claramente a melhor. Somos introduzidos à personagem de McConaughey, Ron Woodroof, um texano electricista das obras que passa as horas livres a beber, a tomar drogas, em orgias sexuais e a fazer apostas no rodeo. É um homem que não liga ao facto de estar cada vez mais magro e debilitado e tenta curar cada quebra com uma cerveja ou o snifar de uma linha de droga. Um dia tem mesmo de ir para o hospital e é aí que é diagnosticado com o vírus da SIDA. Nesta parte o filme está muito bem construído. Como apanhou SIDA pouco importa. Provavelmente numa das múltiplas vezes que fez sexo desprotegido, mas isso não é relevante. Nem McConaughey se queda por lamurias trágicas. O importante é sobreviver quando lhe são dados apenas 30 dias de vida. E para sobreviver é preciso ir para além dos medicamentos impostos pela agência nacional americana e pelas companhias farmacêuticas, que aparentemente fazem mais mal que bem. McConaughey acaba no México, onde arranja drogas ilegalmente. Sente-se melhor e começa a traficá-las para os Estados Unidos, onde rapidamente se torna um misto de traficante com salvador de uma casta social, os homossexuais, os drogados, rejeitada por ter o vírus da SIDA e com pouca possibilidade de ter ajuda do sistema nacional de saúde.

Mas mais uma vez o filme toma tudo isto como apartes da luta diária de McConaughey. Sobreviver mais um dia é uma conquista, e para sobreviver tem que se estar sempre a mover, a arranjar mais medicamentos, a ‘angariar’ mais clientes. O filme está-se a marimbar para o facto de estarmos a tratar de toxicodependentes, de homossexuais ou de pessoas com o vírus da SIDA. Está a contar a história de uma personagem, uma personagem muito forte, que tem valor por si e não pelo facto de ter um vírus dentro do corpo. E McConaughey está simplesmente extraordinário. A sua força não está em ter perdido peso, ou no argumento. Está na sua performance cativante e hipnótica, cheia de poder e energia, e com uma pitada do charme sulista que tão bem o caracteriza. Até meio, o filme dedica-se à personagem, e enquadra perfeitamente, e realmente, o seu contexto, com movimentos de câmara fluídos, muita filmagem em exteriores e em ambientes ‘urbanos’ tipicamente americanos e com um argumento ritmado e vivo, que só levemente apresenta as cenas-padrão exageradas do género ‘esta é a cena em que temos de provar que as pessoas acham que só apanha SIDA quem é homossexual’ (uma mal comum da maior parte dos filmes sociais), e que não tem medo de introduzir referências e piadas que grande parte do público moderno provavelmente não irá perceber (como quando McConaughey diz que Rock Hudson é o actor principal de ‘North by Northwest’ – duas pessoas riram-se na sala, eu e a minha mulher….). Por toda esta ousadia e subtileza no retrato da personagem, do contexto social, e na forma de mostrar os eventos, estava a desfrutar bastante do filme até ao intervalo.

Mas depois o filme perde, na sua segunda parte, quase todos os elementos que o estavam a transformar numa obra de qualidade. De repente, quando o cerco das farmacêuticas e do controlo do tráfego de medicamentos aperta sobre McConaughey, já o filme se vira para um ataque frontal ao sistema americano. As farmacêuticas e todos os médicos que não a personagem de Jennifer Garner (que tem a sua performance desenxabida do costume) são retratados como os mauzões. Para além do mais, o filme perde o seu foco em McConaughey. De repente, Jared Leto fica com toda a luz da ribalta. Leto interpreta um homossexual travesti também com SIDA, que se torna o parceiro de negócio improvável de McConaughey. Funciona não só como um meio de lhe fornecer clientes num mundo que ele desconhece como, mais importante que isso, o catalisador para fazer McConaughey perder a sua homofobia e o estigma (que toda a sociedade tem) sobre quem pode apanhar a SIDA. Através de Leto, McConaughey ganha uma humanidade para além do seu egoísmo pela sobrevivência e vontade de fazer dinheiro mesmo perante a morte. Mas enquanto McConaughey é relegado para segundo plano, Leto de repente torna-se o centro emocional do filme, na medida em que assistimos ao seu desmoronar psicológico, à forma como não consegue largar as drogas, e como o vírus o consome até ao inevitável final trágico. O definhar de Leto ocupa mais tempo de ecrã que o definhar de McConaughey no final do filme, o que é inacreditável. Após este evento trágico, o filme, tal com a personagem de McConaughey encaminham-se atabalhoadamente para a conclusão, virando-se para todos os lados, atacando tudo e mais alguma coisa, tendo pitadas de filme de aventura, de tráfego de droga, de corrupção, de drama de tribunal, de drama social. Tudo se mistura e o final fica pobre, quando comparado com a magnificência dos primeiros 45 minutos, por ter um elevado desequilíbrio emocional (perdemos a linha que nos ligava a McConaughey). 

No final é uma pena que um filme tão promissor se tenha perdido dentro do lugar comum da sua própria definição. Isto parece ser um lugar comum do próprio cinema moderno americano, em que os filmes parecem ser só feitos à metade, e depois andam à deriva para chegar à sua conclusão, ou à marca da 1h30 ou das 2h (tenho esta teoria não só para os dramas como para os filmes da Pixar!). Mesmo assim ‘Dallas Buyers Club’ é, principalmente pela sua parte inicial, um drama muito bem trabalhado, com um bom ritmo, que chega a ser pungente e que consegue ainda dar uma nota emocional convincente mesmo para os rezingões como eu que repudiam o cliché do ‘cinema social americano’. O realizador Jean-Marc Vallée não obteve a nomeação para o Óscar (não é suficientemente conhecido, parece-me, para isso) mas teve muito boas decisões na forma como escolheu gerir o drama emocional e o enfoque das cenas, embora tenha pecado por se deixar arrastar, na parte final, pelo mediatismo da história que estava a contar. O filme perdeu uma personagem e ganhou uma mensagem, que não é uma má mensagem há que dizer, nem uma ‘impingida ao público’ (como em ’12 years a Slave’), mas que simplesmente não convence tanto como se a linha emocional tivesse seguido sempre a personagem de McConaughey. Mas no final a crítica ao sistema de saúde americano falou mais alto. Afinal de contas este é daqueles filmes que acaba com 'isto foi baseado numa história verídica', e a história é filmada não só para a contar, como para atacar. E essa necessidade de atacar o sistema cairá bem em certos círculos, e será sempre aplaudida, mas há coisas que se perdem, ao nível da qualidade emocional do filme, para o poder fazer.

E por falar em McConaughey, se ele não ganhar o Óscar será um escândalo. É bem capaz de ser o papel da sua carreira. Por outro lado, se Leto ganhar será um escândalo. Estão-lhe a dar prémios por ter uma cara e uma voz efeminada e por se vestir de mulher. Tudo o que ele faz de ‘especial’ é seguir o argumento. Qualquer actor com esse potencial (o de ser convincente como mulher) daria uma performance igual ou superior. Cillian Murphy, por exemplo, fez algo de semelhante em 'Breakfast in Pluto' (2005) e não ganhou um único prémio. O argumento diz que Leto tem que falar de uma maneira, que tem que se injectar com droga, que tem de perder peso. E isso Leto fez, e obviamente, da forma como está filmado, é impactante. Mas não há uma transcendência para além disso. McConaughey transcende-se. É a diferença entre uma grande performance de um actor, e uma performance a cumprir o que diz o guião. Mesmo que o que o guião diga seja transcendental, é mérito do argumentista e não do actor. Mas já muita gente ganhou Óscares assim (ex. Sandra Bullock em ‘The Blind Side’)…

Em relação a ser o melhor filme não sei pois ainda não vi todos os nomeados. Mas uma coisa é certa, é bem melhor que ’12 Years a Slave’ pois é um filme que tem muito mais, que oferece muito mais, do que a sua ‘mensagem’, muito embora depois acabe por se perder nela.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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