Realizador: David O. Russell
Actores principais: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper
Duração: 138 min
Crítica: ‘American Hustle’ (Golpada Americana) é um ‘drama de vigaristas’, uma ‘telenovela de vigaristas’, um ‘filme em que as personagens fazem umas vigarices nas horas vagas’, mas há três coisas que não é. Primeiro não é um ‘filme de vigaristas’ (o que os americanos chamam ‘con’ ou ‘hustle’), tal como o imaginário cinematográfico o entende, de filmes como ‘Dirty Rotten Scoundrels’ (1988), a comédia com Steve Martin e Michael Caine, ou claro o magnífico ‘The Sting’, vencedor de 7 Óscares, incluindo Melhor Filme, em 1973. Nestes, a ‘vigarice’ é tudo, é a força do filme, é o centro da sua história, é o que gera tensão, é o que prende o público. Como vão aldrabar a polícia? Como vão aldrabar os mafiosos e os ricos? Conseguirão levar a sua avante? E quanto melhor o twist final, melhor, como em ‘The Usual Suspects’ (1995). Segundo, ‘American Hustle’ não é musical, nem muito menos uma comédia, portanto é inexplicável a presença nestas categorias nos Globos de Ouro (a não ser claro, evitar a concorrência dos dramas e ganhar prémios, como acabou por acontecer). E terceiro, não é um bom filme.
Sinceramente, o realizador David O. Russell diz-me pouco. O homem que começou por fazer comédias menores nos anos 1990 explodiu finalmente no final da década com ‘Three Kings’ (1999), um filme muito bom (até hoje ainda o considero o melhor filme de Russell), e que, olhando agora para trás, tem muito mais de ‘hustle’, de ‘vigarice’ cinematográfica, do que tem ‘American Hustle’! Mas Russell nem pessoalmente, nem na sua carreira, conseguiu fazer jus ao sucesso que ‘Three Kings’ lhe trouxe. O seu filme seguinte ‘I Heart Huckabees’ chegou apenas 5 anos depois em 2004, e o seu fiasco crítico e comercial pareceu dar a machadada final numa carreira que realmente nunca tinha despoletado. Nos próximos 6 anos Russell não faria um filme. Mas em 2010, Darren Aronofsky abandonou o projecto de ‘The Fighter’ para filmar ‘Black Swan’ e aparentemente a sugestão de contratar Russell proveio de Christian Bale. Desde então, Russell reinventou-se, como quem diz, vendeu-se aos valores comerciais do filme social confortável e estereotipado, feito única e exclusivamente para ganhar prémios e para agradar a críticos americanos. ‘The Fighter’ (2010), ‘Silver Linnings Playbook’ (2012) e ‘American Hustle’ (2013) são três filmes que foram mediatizados muito para além da sua verdadeira qualidade (achei ‘The Fighter’ particularmente execrável), que têm em excesso daquilo que apelido de ‘cenas de trailer’ (para exibir as personagens e o seu papel com planos e frases bombásticas que ficam na retina e no ouvido mas que são completamente ocos), e que se apoiam no seu espalhafato visual, na qualidade das suas interpretações (que admita-se, são de qualidade), e no seu tema e mediatismo para ter sucesso, quando a história, e a maneira como ela é dirigida, é morna e sem sabor.
‘American Hustle’ tem todas estas falhas e mais uma muito importante. Onde é que está o ‘hustle’, onde é que está a ‘vigarice’? Ela existe, sem dúvida, mas é muito fraca, fraca de mais para suster a história. Talvez por isso, andamos durante 2 horas a ver dramas pessoais, com narrações de várias personagens sobrepostas, e com planos longos de câmara a seguir a acção como se fosse um filme de Scorcese de segunda categoria. Muita exibição de personagem. Muitas performances cativantes de actores. Muita movimentação de câmara. Muita história em redemoinho. Mas ‘hustle’ nem vê-lo.
A história é, apesar de todas as rocambolescas reviravoltas, de uma simplicidade linear. A cena inicial, claramente a melhor do filme, introduz-nos a personagem de Christian Bale. A forma elaborada como faz o seu penteado leva a crer que o filme manterá esse tom cómico. Mas esse tom nunca mais se vê. Do mesmo modo, esta é a única cena em que se vê a barriga de Christian Bale, que a câmara faz questão de filmar para que o público a veja bem, uma e outra vez. No resto do filme está sempre vestido, mas a cena serviu para exibir Bale e o seu processo de transformação para o papel. Aliás, esta táctica é repetida sempre, ao longo de todo o filme, e toma ainda mais vagar quando Jennifer Lawrence é introduzida. É só exibição. ‘Olhem, aqui estão as personagens. Vejam como elas dizem frases impactantes e como estão esculpidos os seus corpos, nestas cenas que concebemos especialmente para as exibir’. Depois disso, o filme parece esquecer-se que estas personagens têm estas características. Bale junta-se então a Amy Adams (sempre com decotes gigantescos) e a Bradley Cooper (uma performance que me surpreendeu) para iniciar uma burla; a de tentar filmar o mayor da cidade (Jeremy Renner) a receber um suborno. Isto corre mal e voltamos atrás no tempo, para quando tudo começou.
Por melhor que tenha começado o filme tudo é estragado nas cenas que se seguem. Os 20 minutos seguintes desenrolam-se numa voz off sobreposta entre a personagem de Bale e a de Adams, de como se conheceram, de como começaram a fazer ‘vigarices’ juntos. Isto parece um filme de Scorcese, desde as voz offs que se interrompem umas às outras, à estética da cena, ao desenrolar do argumento em círculos, que pouco se aprofunda pois as personagens não são assim tão poderosas. São interpretadas genialmente por actores magistrais, mas provêm de um guião fraco. Depois de fazerem burlas pequenas ‘low profile’ durante anos, Bale e Adams acabam por ser apanhados por um agende federal (Cooper). Mas conseguem dar-lhe a volta, seduzindo-o com a promessa de apanhar um peixe maior através de uma burla ainda maior. Cooper então pensa que está a obrigar Bale e Adams a trabalharem para ele (o que poderá não ser bem verdade), e o filme vai-nos mostrando o seu percurso à medida que vão avançando na burla. Cooper embrenha-se de tal maneira que se torna ele próprio praticamente um burlão, e nunca quer parar. A vontade que tem de ser famoso e de acabar com a corrupção sozinho levam-no a querer mais e mais. Se estão em vias de apanhar um capanga, ele quer o chefe dos capangas. Se estão em vias de apanhar o mayor, ele acha que devem apanhar a onda e ir atrás dos senadores. E a burla vai sempre subindo até chegar aos mais altos políticos do estado, por um lado, e até ao chefe dos mafiosos (uma breve aparição de DeNiro, completamente rotineira), por outro. Quando estão tão enterrados que não sabem bem para onde hão de se virar, nem qual é a sua verdadeira identidade depois de tantos anos a fingir, Bale e Adams sabem que têm de passar a perna a todos, para conseguirem escapar…
Esta premissa só por si daria um filme genial. Como iriam Bale e Adams fazer a melhor burla de todos os tempos e ao mesmo tempo enganar a polícia, os mafiosos, os políticos e os seus próprios associados? Como pensei que era isto que iria acontecer, aguardei pacientemente durante toda a construção frágil e monótona do filme. Mas a verdade é que o que eu esperava não aconteceu. Quando a burla é finalmente mostrada, revela ser algo de extremamente insosso e desprovido de grande imaginação. O público quase nem se apercebe dela, de tão rápida que é mencionada. Não há aquele abrir de boca que houve em ‘The Usual Suspects’ ou aquele rasgar enorme de sorriso que houve em ‘The Sting’ (para usar os exemplos em cima). Aliás, todas as partes da burla são relegadas para segundo plano, o que deve ser uma estreia em filmes deste género. Em vez disso, o filme foca-se no ‘drama’ das suas personagens, o que neste caso é uma exibição contínua, como disse, dos seus talentos de actuação. O filme está mais preocupado em obter nomeações nas categorias de actuação do que fazer com que essas actuações funcionem em prol do filme. De novo pego no exemplo da personagem de Lawrence. A personagem de mulher negligenciada de Bale, de quem tem um filho, uma dona de casa desesperada e obsessiva que lhe suga o dinheiro, mas que no fim tem ainda uma palavra a dizer, podia ser feito por qualquer actriz, por ser pequeno e apenas relevante, na hora H, para a história. Mas suponho que a decisão de usar Lawrence tenha tido a óbvia consequência do seu papel ser apimentado, ou seja, das suas cenas serem esticadas para pavonear a actual detentora do Óscar de Melhor Actriz. Quem sabe? A nomeação de actriz secundária bem que poderia acontecer (como aconteceu!). Qual a relevância da cena em que ela dança ao som de ‘Live and Let Die’ para o suposto fio condutor do filme? Nenhuma. Mas é de extrema importância para que o papel de Lawrence fique na retina (que fica, verdade seja dita!).
‘American Hustle’ acaba por ser notável pelo facto de ser um ‘filme de vigaristas’ sem a parte da vigarice. Tenta ser desesperadamente Scorsese, tenta ser filme de mafiosos/gangsters, tenta ser ‘filme de burla’, tenta ser drama e ainda tenta encaixar uma fina réstia de comédia. Mas no fundo, no fundo, ‘American Hustle’ desaba, se tentarmos erguer estas camadas umas por cima das outras. A vigarice do título, quando pensada objectivamente, é fraquíssima e desprovida de imaginação, é pobremente dada ao espectador em termos visuais/cinematográficos (como se fosse algo sem importância para o filme) e a história é uniformemente monótona. Não se constrói, não se vai elevando aos poucos até ao clímax, mas antes amontoa-se como uma mistura de vários géneros e várias cenas de uma forma atabalhoada, onde só a superfície (da imagem, das interpretações) conta. O filme está repleto de espalhafato visual, desde os slow motions, à música de época, ao ritmo da montagem, ao cuidadoso estilo capilar de cada personagem, ao enfoque no corpo das duas actrizes principais (particularmente Adams), mas é debatível até que ponto tudo isto contribui para o filme e não é, pura e simplesmente, oco. Sim, o cinema é um meio visual, mas o visual não pode ser tudo, especialmente se está apenas preocupado nas coisas que filma e não como as filma (cf. Kubrick).
As interpretações são excelentes. Quer Cooper quer Bale vão sair de mãos a abanar dos Óscares, mas merecem bem mais o galardão que as suas companheiras femininas que são as potenciais vencedoras (sem o merecerem… mas lá que são bonitas e sexys neste filme, são). Mas como disse, estas excelentes interpretações perdem a sua razão de ser pois são totalmente artificializadas para o bem da câmara. As melhores frases do filme e os melhores momentos de interpretação de cada personagem constavam do trailer (e se calhar foram feitas de propósito para ele). Quando assim é o filme não revela surpresas e por isso sabe a pouco. No final de contas, parece que a golpada é pessoal e não financeira, e as intrigas ‘telenovelescas’ entre as personagens têm muito mais destaque que a falcatrua em si. Talvez seja essa a moral. Mas se assim é, havia formas bem mais interessantes e cativantes de a mostrar. O filme não cumpre nada do que promete, e andou a ganhar tempo até chegar a um sítio que nunca chega. Então onde ficamos? Foi bonito ver estas personagens? Foi, porque elas são bonitas. Mas depois, onde está o sumo?
Mais uma época de Óscares, mais um potencial candidato, mais uma decepção. ‘American Hustle’ é um filme de grandes interpretações no ecrã e de grande influência mediática fora dele. Mas nada salva uma história fraca e mal contada, e um estilo de realização vendido que quer ser tudo ao mesmo tempo. E mais uma vez, onde está a vigarice, onde está a burla, onde está a golpada, onde está o ‘hustle’? O filme chama-se ‘American Hustle’ por amor de Deus. Volta ‘The Sting’. Mostra a esta gente como se faz!
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