Realizador: Ridley Scott
Actores principais: Anthony Hopkins, Julianne Moore, Gary Oldman
Duração: 131 min
Crítica: ‘The Silence of the Lambs’, o extraordinário filme de 1991 realizado por Jonathan Demme vencedor de 5 Óscares, é uma indiscutível obra prima (apesar de alguns destes galardões serem discutíveis). Mas o que muitos não sabem é que este vencedor do Óscar de Melhor Filme não foi a primeira adaptação de um romance de Thomas Harris sobre a personagem de Hannibal Lecter ao cinema. 5 anos antes, Michael Mann tinha realizado um surpreendente ‘Manhunter’ (1986), com Brian Cox no papel de Lecter, baseado no primeiro livro, ‘Red Dragon’ (publicado em 1981). Este é um filme policial com muitos dos trejeitos de Mann, que se foca na investigação (o investigador é interpretado por William Petersen, que anos mais tarde lideraria o elenco do primeiro CSI como Grissom) e onde o Lecter de Brian Cox é apenas uma personagem secundária, menos pela forma como Cox o interpreta (está surpreendentemente bom), mas mais pela importância argumental e visual que lhe é dada, que é pouca. Este filme teve um sucesso moderado, mas suficiente para que o segundo livro de Harris sobre Lector, ‘The Silence of lhe Lambs’ (publicado em 1988), tivesse logo luz verde do estúdio. Mas desta vez, com um realizador diferente e com Anthony Hopkins como Lecter, a história foi outra. A escolha de tratar o filme menos como um policial urbano e mais como um drama psicológico, bem como de dar uma enorme importância a Lecter, foi muito bem feita. O sucesso de bilheteira, as estrondosas vendas em VHS e os 5 Óscares falam por si, e portanto quando Harris lançou um terceiro livro, ‘Hannibal’ (publicado apenas em 1999, consequência muito em parte de pressões mediáticas), uma sequela com Jodie Foster e Hopkins parecia inevitável.
Contudo, nem Foster nem Demme ficaram muito entusiasmados com o argumento original de ‘Hannibal’ e o filme entrou, como se diz na gíria Hollywoodesca, num ‘development hell’, com constantes adiamentos da produção, mudança de intervenientes e muitas alterações no argumento. Finalmente, quer Demme, quer Foster saíram do projeto, e rezam as crónicas que Hopkins só ficou após muita persuasão financeira e a entrada de Ridley Scott, que acabara de fazer ‘Gladiador’, para realizador.
Finalmente, quase 10 anos depois de ‘Lambs’, o filme entrou em produção. Estou seguro que os produtores acharam que tinham um sucesso garantido. Fazer um filme de Lecter sem Hopkins, que ganhara o Óscar de Melhor Actor por este papel em 1991, seria provavelmente um desastre, portanto a sua permanência era um bom sinal. Para além do mais tinham Scott, que acabara de fazer o filme vencedor do Óscar de Melhor Filme do ano de 2000. Mas esqueceram-se de um pormenor muito importante, para o qual a relutância de Demme e Foster lhes devia ter alertado; o argumento. Por muito genial que seja Hopkins no papel de Lecter, se o resto do filme não se consegue suster sozinho então a estrutura rui, e mesmo que Hopkins permaneça de pé o resultado não será convincente. Por muito genial que seja Ridley Scott como realizador, porque não escreve os seus próprios argumentos (poucos são os realizadores que o fazem hoje em dia), estará sempre sujeito a ter que lidar com um material, tal como o de ‘Hannibal’, que, sinceramente, é muito, mas mesmo muito fraquinho. Este é um filme no qual há uma chamada telefónica entre alguém nos Estados Unidos e alguém em Itália e em ambos os países é a mesma hora do dia. Este é um filme no qual os Italianos falam sempre inglês entre eles, mesmo que não haja um estrangeiro a ouvir, recordando o que se fazia nos filmes de há 60 anos. Este é um filme em que os turistas americanos falam em inglês com toda a gente que encontram na rua em Itália e toda a gente os percebe sem qualquer sombra de dúvida. Este é um filme cuja primeira metade está atulhada de cenas saídas da escola de escrita de argumentos: ‘esta é a cena em que temos de provar que o político é corrupto’, ‘esta é a cena em que temos de provar que a Clarice é uma personagem muito forte’ e assim por diante, o que retira, em vez de dar, profundidade às personagens e que retira, em vez de dar, a inteligência ao filme que ‘Silence of the Lambs’ possuía. Este é um filme cujos diálogos são absolutamente intragáveis. A história, na realidade, não é má de todo, mas cada vez que as personagens abrem a boca o que de lá sai é artificial, mal escrito e muito pouco interessante. O leitor pode ficar surpreendido por ver o nome de David Mammet nos créditos (eu fiquei!) associado a uma coisa tão má, mas diz-nos o imdb que o seu draft foi totalmente reescrito por Steven Zaillian (embora se tenha mantido o nome de Mammet). Assim já acredito. Zaillian já esteve envolvido nos argumentos de ‘Awakenings’ (1990), ‘Schindler's List’ (1993) ou ‘The Girl with the Dragon Tattoo’ (2011), mas também já debitou ‘Mission: Impossible’ (1996), ‘The Interpreter’ (2005) ou ‘Moneyball’ (2011), por isso inconstância é certamente o seu nome do meio.
E finalmente, os produtores acharam que seriam bem sucedidos se substituíssem Foster por outra pessoal qualquer. Quem aparentemente não interessava, já que tudo, incluindo o nome do filme, se focaria em Hopkins. Juliane Moore, a substituta arranjada para o papel de Clarice, chega a ser aceitável (não podemos apelidá-la de má atriz), mas a necessidade enorme de emular Foster (que também venceu um Óscar pelo seu desempenho 10 anos antes) é incrivelmente notória e estraga esta nova incarnação. Moore está tão preocupada em imitar o sotaque e o timbre de voz peculiar tão natural de Foster que se esquece de dar expressividade às frases que está a dizer e ao seu próprio rosto…
No filme, tal como na realidade, 10 anos passaram desde os eventos de ‘Silence of the Lambs’. Lecter não voltou a ser visto, mas uma das suas vítimas que sobreviveu, embora incrivelmente mutilado (Gary Oldman em mais uma performance de mestre), está obcecado em encontrá-lo e não tem escrúpulos em esbanjar a sua gigantesca fortuna para o fazer. Paralelamente Clarice está com problemas. Uma rusga de droga corre mal e ela é suspensa pelo departamento, muito também pela insistência de um político corrupto interpretado por Ray Liotta. Esta personagem é daquelas que são completamente inúteis, e só existe para proporcionar uma vítima a Lecter, mais à frente no filme.
Portanto como é que Lecter, um homem que esteve desaparecido, por vontade própria, durante 10 anos, se encaixa neste enquadramento? Bem na realidade não encaixa muito. Quase parece que é de propósito que Lecter se deixa reconhecer em Florença para poder entrar nesta história. E uma vez detectado, o velhote acamado interpretado por Oldman, Clarice e um polícia italiano interpretado por Giancarlo Giannini apontam armas e bagagens para Florença para o tentar apanhar. A história a partir deste ponto, sinceramente, tem pouco ritmo e pouco interesse. O único interesse advém das cenas em que Hopkins aparece e pode brilhar. Aí sim, as cenas são boas, mais porque lhe é dado muita importância e muita margem de manobra para poder demostrar o seu talento na interpretação desta personagem e menos, na realidade, por as cenas terem assim tanta relevância para o fluir do filme. Fica sempre a ideia que as cenas são simplesmente um show off dos talentos de Hopkins e que foram apenas concebidas com esse propósito. Algo de semelhante poderá ter-se passado no livro (não sei nunca o li), escrito após, é de se notar, o filme de 1991, e após a personagem de Hopkins ter corrido mundo e ter tornado quer Lecter, quer o escritor Thomas Harris mundialmente famosos. Recordo que Harris, tirando o seu livro de estreia ‘Black Sunday’ (que deu um brilhante filme de John Frankenheimer realizado em 1977 diga-se), só escreveu, desde então, livros de Hannibal, e o seguinte sempre após o filme do anterior ter sido feito, o que deve influenciar, e muito, as suas escolhas e o rumo das suas personagens…
É uma pena em ‘Hannibal’, pelo menos Hannibal o filme, que a delicadeza formal e a tensão psicológica que ‘Silence of the Lambs’ continha tenha sido substituída por uma espécie de brutalidade inteligente, muitas das vezes pouco justificada. Quando Lecter mata a personagem de Giannini, por exemplo, fá-lo de uma forma lindíssima em termos estéticos, que fica bem no ecrã claro, e que também se adequa à personagem perfeccionista de Lecter, mas parece incrível como é que Giannini não entendeu a marosca, fazendo-o descer ao nível daquelas personagens acéfalas dos filmes de terror estilo Halloween ou Sexta Feira 13 que se metem sempre sozinhas num sítio onde não devem, claramente à espera que o assassino apareça numa esquina pronto para lhes dar uma machadada. Se é para fazer cenas com este tipo de tensão, então Scott já o fez muito melhor, por exemplo, em ‘Alien’(1978).
Mas ‘Hannibal’ tem um twistezinho. Lecter acaba por ir para a América, para ‘salvar’ Clarice, e ter o seu confronto final quer com a personagem de Liotta, quer com a personagem de Oldman. Para este último ponto o filme oferece poucas coisas de novo; há alguma tensão, alguma acção, algumas surpresas e choques, mas também muitas coisas perfeitamente idióticas (como a forma como Lecter mata a personagem de Liotta). Mas é no primeiro ponto, na relação, que chega a ser quase platonicamente amorosa, entre Lecter e Clarice, que o filme atinge os seus pontos mais altos. Scott consegue explorar na perfeição esta conexão que as duas personagens acabam por ter uma com a outra. Se Foster estivesse aqui, creio que isto seria ainda mais perfeito, já que a química que teve com Hopkins no primeiro filme era divina. Mesmo assim, Moore consegue ser uma Clarice suficientemente convincente para esta relação resultar. ‘Hannibal’ tenta ser inteligente de muitas maneiras, mas só nesta, neste pormenor humano, é que consegue executar em pleno a sua ideia.
No final de contas, ‘Hannibal’ não foi um fracasso de bilheteira (não podia ter ser com a atractividade de um Lecter de Hopkins), mas foi um fracasso crítico, e isso é fácil de perceber olhando para o filme e para a forma como flui muito atabalhoadamente. Eu vi-o pela primeira vez no cinema (tinha 16 anos em 2001) e já o vi umas 2 vezes depois disso e nenhuma delas me convenceu. A vê-lo, só como parte da trilogia de Hannibal Lecter tal como interpretado por Hopkins, como uma continuação do estudo desta personagem tão bem desenvolvida por um brilhante actor. Com outro motivo de interesse, o filme perde toda a sua qualidade. Aliás, todas as cenas em que Hopkins não aparece são absolutamente irrelevantes e desinteressantes. Hopkins é a única coisa que ‘Hannibal’ tem de bom, e isso é dizer muito. Fico sempre desapontado com Scott, pois não conseguiu dar a volta a um mau argumento, e de ‘The Silence of the Lambs’ geralmente salto para o terceiro filme, um remake de ‘Manhunter’ (ou seja, do livro ‘Red Dragon’), realizado em 2002 por Brett Ratner. Já aqui falei de Ratner (ver crítica de ‘Tower Heist’ aqui) e da forma como o considero um excelente realizador da nova geração. É surpreendente ver, como apenas um ano depois, Ratner transformou ‘Red Dragon’ num blockbuster de qualidade (até artística) que ‘Hannibal’ nunca será. A maior parte do público nunca ouviu falar de Ratner e este não tem um único filme que possa ser considerado uma obra mestra, mas neste taco a taco com Ridley Scott levou certamente a melhor. ‘Hannibal’ é um filme que se esquece. ‘Red Dragon’ não.
Não vi o mais recente filme ‘Hannibal Rising’ (2007) (argumento do próprio Thomas Harris, 1 ano depois do livro ser publicado), mas sem Hopkins perco um bocado do interesse. E claro, agora há também a série, que confesso que também nunca vi. Para mim, falando em Cinema, Lecter é Hopkins em ‘Silence of the Lambs’ e em ‘Red Dragon’. ‘Manhunter’ é um filme de Michael Mann, e como eu adoro Michael Mann estará sempre na minha lista, mas não é bem a mesma coisa. Já ‘Hannibal’, por outro lado, é só estatística, e se o vejo é só para poder transitar de ‘Lambs’ para ‘Red Dragon’.
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