Realizador: François Truffaut
Actores principais: Jean-Pierre Léaud, Claude Jade, Delphine Seyrig
Duração: 90 min
Crítica: Excerto de uma crónica sobre a quintologia cinematográfica de Antoine Doinel que pode ser lida aqui.
Seis anos depois, Truffaut já não era apenas um ‘mero jovem realizador’ e Léaud já não era apenas mais um actor. Truffaut já tinha ganho o estatuto de mestre realizador com sucessos como ‘Jules et Jim’ (1962) e ‘La mariée était en noir’ (1968), enquanto Léaud tinha-se tornado o actor jovem mais popular da nova vaga francesa, aparecendo regularmente em filmes de Godard.
Em ‘Baisers Voles’, ou Beijos Roubados, de 1968, Truffaut apresentou a terceira parte da vida de Doinel. Este é também o primeiro filme da quintologia de Doinel a cores. A instabilidade política, as guerras da Argélia e do Vietname, a revolta social e os movimentos dos estudantes dominavam a ordem do dia em França e da maior parte dos filmes que lá eram produzidos. Mas apesar de Doinel (e Léaud) terem a idade ideal para estarem no epicentro dessas mudanças sociais, Truffaut distancia-se delas conscientemente (ao contrário das personagens de Léaud nos filmes de Godard). Portanto ‘Baisers voles’ existe numa espécie de realidade alternativa em França, e é tão vago, leve e distanciado como acaba por ser a vida de um rapaz com vinte e poucos anos. Mais uma vez, Truffaut faz do seu filme o reflexo da sua personagem. Eu próprio tinha 20 e poucos anos quando vi este filme pela primeira vez, e imediatamente me consegui identificar com as indecisões que Doinel tem sobre a sua vida, o amor e o futuro, indecisões essas que o filme como um todo igualmente partilha. E como, pouco tempo antes, também me tinha identificado com as desventuras amorosas em ‘Antoine et Colette’, ainda mais fascinado fiquei com a capacidade de Truffaut de captar tão bem a essência da vida de um jovem. Afinal de contas, passamos todos pelo mesmo, não é verdade?
Mais uma vez não há verdadeiramente uma história em ‘Baisers Voles’, mas sim uma série de aventuras e sequências que definem o passar do tempo e o desenrolar de uma vida. Doinel recebe a vida como ela é, e os eventos como surgem, sem nunca se questionar porquê. A sua inocência no amor e na vida já quase se dissiparam, mas a sua misteriosa personalidade, difícil de escrutinar, mantêm-se. Continua um homem de poucas palavras, e é difícil discernir aquilo que ele está a pensar. Por outro lado, as suas emoções são sempre perceptíveis, mas embora pairem à flor da pele, ele nunca as liberta completamente para o exterior.
O filme inicia-se numa prisão militar. Vemos Doinel a ser dispensado do exército porque não se consegue enquadrar e porque nunca se apresenta na altura devida. Esta impetuosidade de se querer alistar, para pouco tempo depois ser considerado inapto realmente aconteceu a Truffaut quando era jovem, tendo o futuro realizador tentado suicidar-se pouco tempo depois. Talvez para expurgar esta memória, Truffaut dá estas características a Doinel, mais uma vez provando que o triunvirato (Doinel, Truffaut e Léaud) une-se num único ser, num exemplo de um estudo cinematográfico/pessoal a roçar o surreal que raramente se vê no grande ecrã, e mesmo assim só pelos grandes mestres.
Mal é dispensado do serviço militar, Doinel corre desalmadamente pelas ruas à procura de uma prostituta. Mais tarde vai a casa de Christine, uma antiga namorada (interpretada pela bela Claude Jade), onde o mesmo que lhe tinha acontecido com Colette está a acontecer, ou seja, é muito amigo dos pais dela mas Christine não aceita os avanços dele (numa nota, Collette faz uma breve aparição neste filme, cumprimentando Doinel na rua, com um bebé ao colo e um marido ao lado…). A diferença em relação a Collete é que, neste caso, Christine lentamente baixa as defesas, e as suas recusas ficam cada vez menos convincentes, à medida que o público (e o próprio Doinel) começa a notar sinais de uma verdadeira afecção.
É nesta altura que Doinel tenta fazer o que todos os jovens da sua idade têm que fazer: arranjar um emprego. O filme mantém o tom dos anteriores ao apresentar em breves cenas as aventuras e desventuras de Doinel em três diferentes trabalhos: como um recepcionista de hotel, como detective (o segmento que ocupa a maior parte do tempo do filme e que produz mais ‘suspense’ na trama) e, por fim, quando a sua investigação como detective dá para o torto, como um reparador de televisões ao domicílio. Usando estas desculpas argumentais, ‘Baisers voles’ está repleto de momentos engraçados e toques subtis de ligeireza cómica, à medida que coisas muito interessantes e curiosas vão ocorrendo em cada um destes empregos. Infelizmente, a falta de uma linha argumental contínua faz com que se perca alguma da afinidade do espectador ao filme. Mas isto é compensado pelo simples facto da própria vida de Doinel ser a cativante linha argumental existente, e pela percepção que a vida, como todas as vidas, está repleta destes momentos ligeiros e interessantes, que lhe dão cor, que permitem escapar à rotina. Por esse motivo, porque cada pessoa se poderá identificar com os eventos, e por estar já ligada à vida de Doinel, o filme torna-se mágico, apesar da sua simplicidade. E não há nada de errado com isso.
Mais uma vez, tudo é tratado de uma forma muito terra-a-terra, e Doinel limita-se a ir ao sabor da corrente, aceitando as coisas como elas são. Apesar de lhe estarem continuamente a acontecer coisas, raramente ele é parte activa para que elas aconteçam. O que faz é reagir, alterar-se, mudar de rumo para se adequar às novas circunstâncias. Amorosamente vai experimentando. Sai com Christine, mas também com outras raparigas e, durante um período em que trabalha disfarçado numa sapataria (uma consequência do seu trabalho de detective) tem um caso pontual com a mulher do patrão! Mas apesar destas irreverências da juventude, Doinel sempre desagua ao pé de Christine. No final do filme, Doinel e Christine trocam votos de amor, tais adolescentes que interiormente ainda são, numa cena incrivelmente bela, e acabam o filme juntos.
Doinel é em ‘Baisers Voles’ um jovem inseguro em relação ao seu futuro e que não tem medo de experimentar, no amor, no trabalho. Muda de trabalho como quem muda de camisa. Amanhã poderá ter um trabalho diferente e fa-lo-á com exactamente a mesma dedicação. Salta de uma rapariga para outra, vai às prostitutas e tem casos de uma noite. Mas isso para ele não é o (verdadeiro) amor, nem o amor real. É apenas uma necessidade corporal (é só ver a forma como ele corre directo da cadeia para o bordel), e é algo completamente distinto do amor que um dia pretenderá encontrar, embora talvez ainda não saiba isso. Tal como outrora achava que amava Colette loucamente e é agora completamente indiferente quando se cruza com ela na rua, também agora acha que ama Christine com exactamente a mesma intensidade, com o mesmo grau de paixão, e volta a ter um dos seus amuos quando ela não responde imediatamente aos seus avanços. Há nele, subjacente, uma necessidade de ser amado, um medo secreto de ficar só, bem como um receio de estar a percorrer o mesmo caminho que percorreu com Colette. Não é por acaso que logo após o encontro com Colette e o seu marido na rua, Doinel rapidamente procura a cabine telefónica mais próxima, somente para telefonar a Christine. E nestes pequenos pormenores parecem estar as pistas para os sentimentos escondidos de Doinel, que nunca os explica a ninguém (nem ao público), pelo menos em voz alta nem directamente para a câmara.
A vida? Pouco se importa ele com a vida. Ainda é jovem, é livre para fazer o que lhe apetece. Mas já em relação ao amor… isso é diferente. O amor é uma demanda, e ele precisa de o encontrar e de se agarrar a ele. E isso é bem diferente do mero acto sexual, que tem com as prostitutas ou com a mulher do patrão. Christine para ele não é sexo, é amor. Sem ela não poderá estar saciado nem completo, embora, tal como lhe tinha acontecido com Colette, para Doinel gostar de uma mulher e amar uma mulher é estar ligado fisicamente. Necessita sempre de uma manifestação física, de um abraço, de uma festa, de dar as mãos, de roubar um beijo. Ele necessita da presença física do amor, da sua constante confirmação no calor do toque humano. Sem isso, é como se não o tivesse.
Dedicado a Henri Langlois, o mítico director da Cinemateca Francesa e mentor de Truffaut bem como de tantos outros autores da Nouvelle Vague, ‘Baisers voles’ é um filme simples, ligeiro, muitas vezes engraçado, que não tem um argumento muito forte, e que visto isoladamente não possuirá grandes motivos de interesse. Mas se o pensarmos como uma parte integrante e indissociável da saga de Doinel, bem… aí sim, então torna-se algo completamente diferente. Torna-se uma obra-prima, um hino à juventude; à liberdade da vida, à incerteza do futuro, à ausência de seriedade em relação aos eventos do dia-a-dia, em relação ao ter que ganhar a vida, e à força que está subjacente a tudo isto. Em suma constitui o amago de ter 20 anos e viver: a força do amor, de o precisar, de o querer, de o encontrar. ‘Baisers voles’ dá isto, dá tudo isto. Há uma cena brilhante em que Doinel se coloca ao espelho durante 2 ou 3 minutos a repetir incessantemente o seu nome e o das mulheres da sua vida, numa espiral obsessiva. Incerteza, amor e juventude. ‘Baisers voles’ é sobre isto.
Na realidade, poderá ser considerado a comédia romântica suprema, mas cuidado, o termo ‘comédia romântica’ nos dias de hoje significa algo completamente diferente. ‘Baisers volés’ é sobre a juventude, é sobre o amor, mas não é parvo nem trata os jovens como meros produtos. É verdadeiro e tem carisma, apesar da sua leveza. Doinel termina ‘Baisers volés’ com Christine, caminhando ao lado dela num parque. Para uma vida juntos? Talvez…
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