Realizador: Frank Capra
Actores principais: Spencer Tracy, Katharine Hepburn, Van Johnson
Duração: 124 min
Crítica: Não há dúvida alguma que Frank Capra é um dos melhores realizadores que alguma vez existiu. O pico do seu sucesso ocorreu na década de 1930, onde não só ganhou 3 Óscares de Melhor Realizador, (por ‘It Happened One Night’, 1934, ‘Mr. Deeds Goes to Town’, 1936 e ‘You Can't Take It with You, 1938’ – o primeiro e o terceiro tendo ganho também o Óscar de Melhor Filme), como realizou igualmente obras como ‘The Bitter Tea of General Yen’ (1933), ‘Lady for a Day’ (1933), ‘Lost Horizon’ (1937) e, claro, a terminar a década, ‘Mr. Smith Goes to Washington’ (1939), e, a começar a seguinte, ‘Meet Jonh Doe’ (1941), que é como quem diz, uma obra-prima atrás da outra.
Mas com a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial em 1941, o período prolífero de Capra terminou. Passou os anos da guerra a fazer vários documentários propagandistas, e quando regressou ao cinema, apesar de ainda ter ainda feito duas excelentes obras-primas (como são reconhecidas hoje), os seus filmes tornaram-se muito menos populares e a sua carreira começou a entrar num claro declínio, até que a sua chama se apagou. As fábulas esperançosas de Capra claramente não tinham lugar num mundo saído de uma guerra e num universo cinematográfico dominado pelo ‘noir’.
Felizmente, uma horda de cinéfilos redescobriu estas obras décadas mais tarde e retêm hoje um lugar especial no coração de todos os que adoram o cinema. Estou a falar claro, não só das obras da década de 1930 que listei em cima, como de ‘Arsenic and Old Lace’ (1944), o seu único filme no período da guerra, e que é uma das melhores comédias alguma vez realizadas, como claro, do inolvidável filme de Natal ‘It’s a Wonderfull Life’ (1946). Este filme, o primeiro que Capra fez depois de a guerra ter terminado, foi um fiasco de bilheteira e foi literalmente esquecido até ser redescoberto quase 30 anos mais tarde. Hoje não há cinéfilo que não o ame com todas as forças do seu corpo.
‘It’s a Wonderful Life’ foi seguido por ‘State of the Union’ (1948), provavelmente o último filme relevante de Capra. Inicialmente foi pensado como um veículo para o par Clark Gable e Claudette Colbert (que fizera furor no maior sucesso de Capra, ‘It Happened One Night’, 14 anos antes) mas quando esta tentativa fracassou, acabou por ser dado a outro par popular do momento: Spencer Tracy e Katherine Hepburn.
Baseado numa peça que ganhou o Prémio Pulitzer em 1946, ‘State of the Union’ acaba por ser moldado ao clássico estilo de Capra. O seu argumento, talvez não por acaso, é muito similar à fórmula que tornou Capra famoso. No princípio, nota-se que o filme tem a aura de um ‘Mr. Smith Goes to Washington’, e depois se vai desenvolvendo com twists de um ‘Meet John Doe’.
A divina Angela Lansbury (que novinha aqui, 40 anos antes, por exemplo, da série televisiva ‘Murder she Wrote’!) interpreta uma jornalista com poder que, juntamente com Adolphe Menjou, que interpreta um político influente, tentam convencer um empresário honesto e famoso (Tracy) a candidatar-se à presidência dos Estados Unidos. Tracy inicialmente está relutante, mas acaba por se deixar convencer por Lansbury (que conspira como uma víbora nos bastidores) e começa a acreditar que realmente pode ser útil e mudar as coisas, e que tem uma boa hipótese de ganhar. Inicialmente, como sempre acontece nestas histórias, ele é humilde e fiel aos seus princípios, mas quando se embrenha no mundo sujo da política e quando se apercebe que para conseguir ganhar (para fazer o bem) tem que fazer o mal, então cede. Por mais um voto, sempre com aquele objectivo nobre de actuar pelo bem ao país, Tracy acaba por ficar emaranhado no mundo do tráfego de influências, da corrupção, dos jogos de poder, alienando a sua mulher (Hepburn) e os seus filhos. Para obter mais um voto, dos sindicatos, do eleitorado de algum político corrupto, Tracy acaba por se tornar naquilo que sempre detestara. E ao aceitar o sistema para tentar fazer o bem comum, Tracy acaba por se desmoronar, e o conflito dentro dele leva-o primeiro à queda emocional, mas depois à redenção. Porque, como em todas as grandes alegorias de Capra, perto do final, quando o lugar de presidente está quase no papo, há o arrependimento, há o reconhecer que os meios não justificam os fins, e finalmente, a salvação, pelo menos da consciência.
Apesar desta história à la Capra, já não há aqui a magia que havia em filmes anteriores. Há muitas coisas em ‘State of the Union’ que são desequilibradas, e a história e o ritmo do filme não conseguem ser assim tão cativantes. O filme perde muito tempo, por exemplo, na construção da personagem de Lansbury, insistindo no facto, entre outros, de que ela outrora teve um caso amoroso com Tracy, enquanto que nenhuma construção é dada à personagem de Hepburn, que é simplesmente tida como “a mulher do político”. Mas à medida que o filme evolui, Lansbury, após cumprir a sua função para a história, praticamente desaparece, e até à última cena é completamente ofuscada, em termos de personagens femininas, por Hepburn, sobre a qual pouco ou nada soubemos no início, e portanto não podemos seguir o seu arco emocional. Por um lado o centro do filme é sempre Tracy, e as outras personagens giram à volta dele como mais convém ao filme. Por outro, se era para ter o par Tracy-Hepburn num filme, então era obrigatório capitalizá-los, ou seja, promover as suas cenas em conjunto, mesmo que isso não seja adequado na estrutura da história.
Mesmo assim, esta é a fábula mais acutilante de Capra, e aquela que mais directamente ataca o sistema. A corrupção é exibida nua e crua, sem (muitos) embelezamentos cinematográficos. Recorda-me do tom que também existe num filme feito um ano depois, ‘All the King’s Man’ (1949), que ganharia o Óscar de Melhor Filme. O cinema americano começava a virar-se contra o sistema político. Mas se em ‘All the King’s Man’ o desenlace é muito mais pungente, Capra parece não ter estofo para isso. A sua visão, que está presente em todos os seus filmes, principalmente no seu mais bem-amado ‘It’s a Wonderful Life’, é sempre uma de esperança na humanidade, na paz e na felicidade. Tracy, mesmo quando está a ceder à corrupção do sistema, não deixa de ser, no fundo, a boa pessoa que sempre foi, e o público nunca tem dúvidas que mais cedo ou mais tarde ele vai aperceber-se do que está a fazer e redimir-se. De novo, o filme divide-se entre tentar fazer uma forte crítica social, e ser um produto típico de Capra, uma dicotomia que acaba por não se articular em pleno.
Felizmente, durante toda esta caminhada, quando Lansbury sai de cena e Hepburn entra, podemos assistir à maravilhosa química existente, mesmo que por vezes forçada como disse, entre dois portentos da actuação, Hepburn e Tracy (um casal na vida real até à morte prematura de Tracy), que já vinha de uma série de filmes na década de 1940 e que se manteve, mágica e inolvidável, incrivelmente natural como não podia deixar de ser, até ao seu derradeiro filme juntos, ‘Guess Who’s Comming to Dinner’ (1967). Salientaria também a performance excelente de Van Johnson (um actor que em geral não aprecio muito) no papel de um cínico jornalista que se torna o gestor da campanha.
Apesar de ter falecido apenas em 1991, Capra terminou a sua carreia no inicio dos anos 1960, tendo apenas feito, nos 15 anos após ‘State of the Union’, somente mais 4 filmes. ‘State of the Union’ não está na elite dos melhores filmes de Capra, e claramente delimita o seu período mágico dos seus filmes menores de final de carreira. Mesmo assim, ‘State of the Union’ consegue ainda ter alguns pontos pelas suas actuações (que são excelentes), pelo seu ataque violento (mas não de uma forma cega) ao sistema político e por alguns escapes cómicos, ao mais belo estilo de Capra. É uma pena contudo que este estilo de história já tenha sido visto, e bem melhor, nos filmes do período de ouro de Capra, e que o argumento se arraste muito lentamente na primeira hora do filme, desprovendo-o de interesse. Memorável, e a grande coisa a reter do filme, é o discurso hipnotizante que Tracy faz na última cena – a sua redenção. Este trademark de Tracy, discursos fabulosos nas cenas climáticas dos filmes, manter-se ia ao longo da sua carreira, (‘Inherint the Wind’ por exemplo), até mesmo à sua última cena do seu último filme (‘Guess Who’s Coming to Dinner’). Morreria nem 1 mês depois de a ter filmado, mas para sempre fica registado na mente e no coração do espectador a sua capacidade oratória, e a forma como nos fazia agarrar às cadeiras e sorver toda as suas palavras, todas as suas entoações, todas as suas vírgulas, todas as suas pausas. E no discurso final de ‘State of the Union’ é precisamente isso que acontece. Tracy discursa. O público ouve maravilhado. Resta apenas lamentar que Hepburn e Tracy não tenham feito um filme com Capra na década de 1930…
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