Meus caros senhores, há algumas (várias) coisas que não estão certas nesta vida. Não está certo as criancinhas em África não terem que comer (e quiçá alguns adultos, não sei, ninguém fala deles). Não está certo o chamado ‘Programa de Retorno Voluntário’ pagar as viagens mais um tal de ‘subsídio de integração’ aos imigrantes que estão fartos deste país e querem regressar às suas terras de origem (true story), e a mim ninguém me pagar viagens ao Brasil mais despesas várias de alojamento se eu quiser regressar às terras de origem dos outros. Não está certo eu não ter uma casa em Malibu. Não está certo eu, até hoje, ainda não ter ganho o euromilhões. E por fim, mais importante que tudo, não está certo o estado da crítica cinematográfica em Portugal.
Um filme é algo extremamente complexo. Possui mais camadas que uma cebola, mais expressões faciais que o Jim Carrey, mais vertentes emocionais que uma telenovela mexicana, mais interpretações que um quadro, qualquer quadro, do Kandinsky. Isto claro, se o filme não tiver no seu ‘caste’ a Miley Cyrus, ou se for dos irmãos Farrelly. Aí terá tanta profundidade emocional como uma beterraba, e isto sendo insultuoso para com as plantas herbáceas.
Exteriormente um filme caracteriza-se pelos seus actores, pelo seu argumento, pelo seu estilo visual, e pela maneira como é conduzido de cena para cena, aquilo que se poderá denominar como o seu ritmo. Mas atrás destas características que mais facilmente são captadas pela tela e pelo espectador, existe um grande número de características intrínsecas, que vão desde aquelas mais etéreas, como o seu significado subliminar, o seu paralelismo existencialista, a outras mais técnicas e facilmente esquecidas, como os efeitos sonoros, o guarda-roupa, a direcção artística, ou o enquadramento de cada ‘shot’. Um filme não é uma ou outra destas coisas. É todas. Mas mais que isso. Um filme é um resultado final, não de um produto técnico, mas de uma obra de arte, que vai gerar uma reacção, uma reacção no espectador. O objectivo do filme é essa reacção, qualquer que ela seja, quer seja uma de entretenimento, uma filosófica, uma de risada barata. Como qualquer obra de arte, é uma acção, que gera uma reacção. Se não gerar nenhuma, então é esterco… esterco cinematográfico.
Embora nos dias de hoje qualquer pessoa com um portátil consiga criar um filme, compreender os filmes a larga escala é compreender todas estas dimensões. Como consequência directa, criticar um filme é criticar todas estas dimensões. Mas duas coisas são imediatamente óbvias. Primeiro que é impossível compreender todas as dimensões do ‘filmmaking’. Nem os próprios que o fazem conseguem, daí haver departamentos distintos para o guarda-roupa, para os efeitos visuais, para a montagem. O realizador e o produtor são o elo de ligação entre todas estas vertentes, mas tirando eles, os restantes mortais apenas podem aprender algumas coisinhas vendo os extras dos DVDs. Segundo, toda a crítica, por definição, é subjectiva, e a subjectividade é algo condicionado à vivência do sujeito, aos seus interesses, às suas experiências, aos seus gostos, à sua educação, à sua devoção.
Portanto não há um crítico que tenha o ‘inside knowledge’ do cinema, senão fá-lo-ia em vez de ser crítico. Quanto muito aspirou a isso e não conseguiu. Ou se era bom crítico, acabou mais cedo ou mais tarde por fazer a transição. Truffaut é o exemplo máximo desta evolução. O mesmo se passa no mundo literário. 90% dos críticos/professores de literatura são eles próprios escritores falhados, o que tem como consequência as suas críticas serem alimentadas ou pela acidez da inveja ou, no extremo oposto, pela devoção cega aos mestres aos quais prestam vassalagem. A isto se alia a subjectividade, que se traduz em paixões, e estas paixões condicionam o trabalho crítico, quer para o bem, quer para o mal.
Estas duas características: conhecimento e subjectividade, são focais no trabalho de qualquer crítica, ainda mais na cinematográfica, e delas depende o seu sucesso ou insucesso.
O mais conhecido crítico de cinema actual, infelizmente recentemente falecido, Roger Ebert, tinha um estilo literário muito próprio, pelo qual ganhou um prémio Pulitzer, bastião da literatura americana. Não há dúvida que as críticas do sr. Ebert são uma delícia de ler, a maior parte com toques humorísticos hilariantes, e um grande olho clínico derivado da vasta experiência. Contudo, as críticas do sr. Ebert têm um grande problema: referem-se única e exclusivamente ao argumento, à história do filme. Para o sr. Ebert, os filmes são bons ou maus dependendo dos seus argumentos serem bons ou maus. Quando critica severamente os filmes, fá-lo criticando a sua história, a sua lógica, a sua verosimilhança, as suas incongruências. De quando em quando fala das actuações. Raramente da realização. Quase nunca do resto. O sr. Ebert parece esquecer-se de que há um resto. Contudo ninguém é mais conceituado do que ele nesta área. Porquê? A resposta: porque sabe escrever, e porque já viu tudo o que há para ver. Como diria o Meat Loaf ‘two out of three ain’t bad’.
Mas agora se nos voltarmos para o cenário português, talvez seja melhor fugir como um ‘bat out of hell’. O crítico cinematográfico português tem uma, e uma característica apenas: sabe (ou pensa que sabe) escrever. Mas isto não implica que o seu talento resida na escrita cinematográfica. É numa escrita certamente. Mas não cinematográfica. Acima de tudo, o crítico cinematográfico português é um poeta. De novo, isto não implica que esta poesia esteja minimamente relacionada com o filme ao qual supostamente se refere. O sr. Ebert pode só discutir o argumento do filme. Mas discute-o. Aquilo que o crítico cinematográfico português discute é algum estado de ser filosófico, um universo paralelo crivado de adjectivos, uma epopeia poética de algum sentimento sub-reptício que certamente está embutido na celulóide, e só alguns iluminados, tal rei-vai-nú, o conseguem ver, e mais ainda, entender.
A crítica efectuada por um crítico cinematográfico português desconsidera, sem dúvida por ser mesquinho, qualquer atributo relacionado com o filme propriamente dito. Tal tarefa supõe-se que seja deixada a cargo dos leigos. Os iluminados, esses, não podem falar do filme em si. Falar do filme em si é rebaixar-se. Falar do filme directamente, dos seus actores, do seu argumento, da sua realização deve ser algo tão simples e banal que não pode merecer o mínimo de consideração, o mínimo de atenção. Porque se há-de querer falar da prestação dos actores? Porque se há-de querer discutir se as escolhas visuais do director de fotografia são ou não adequadas? Porque se há-de querer reflectir sobre o estilo de orientação do realizador? Porque se há-de falar sobre o ritmo do filme, se é ou não exequível de entreter e/ou enriquecer o seu público-alvo? Porque se há-de querer esmiuçar as particularidades do argumento, e expor os seus pontos mais ridículos? Porque se há-de querer falar do moral do ‘travelling’, ou do ‘travelling’ de moral? Porque se há-de querer explicitar directamente, de acordo com a opinião do opinador, se o filme merece ou não ser visto, e em que circunstâncias? Deduz-se que tudo isto o público português não precisa de saber.
E porquê? Porque nós somos o povo de Pessoa e Camões. Pior, somos o povo de Saramago. Então o que resta? A crítica do crítico cinematográfico português é um texto poético subjectivo e reflexivo, no qual o escritor/artista pretende criar um poema egocêntrico no qual use o filme apenas como pretexto para dar asas à sua veia criadora. As frases são belas e cativantes, possuem trocadilhos, palavras caras e recursos de estilo aos montes (do inglês ‘galore’). O filme não possui uma fotografia belíssima (fruto da dedicação do DOP), nem um trabalho delicado do operador de câmara e do realizador, que escolheram filmar colocando câmara no interior das cenas, e não ‘de frente’ para elas como é habitual, fazendo-a bailar por entre as personagens. Em vez disso, o filme "é um retrato sublime, sedoso e solarengo, de uma juventude perdida aguardando redenção, um bailado de odores e chamuças, que traz à memória fantasmas de searas de trigo e paisagens Dostoyevskianas a um ritmo desacelerado da decomposição de valores tradicionais, que faz um contraponto com um crescendo emocional revelando auspícios de uma vindoura esperança, à luz das técnicas do Dogma 95".
Bem ao estilo de outra casta que por aí anda, os tradutores dos títulos de filmes [pode ler tudo sobre estes senhores aqui], os críticos cinematográficos portugueses, não só pegam na matéria-prima, como dão-lhe um bocadinho mais de forma, bons artistas que são. Os tradutores dos títulos dos filmes gostam sempre de apaparicar, ou explicar um bocadinho da história, não vá o público não ir ver o filme por o título original ser deveras desinteressante. Por seu lado, os críticos cinematográficos portugueses adoram elevar os filmes a obras de arte imortais, que são entendidas à luz de conhecimentos de estética aguçados, de valores clássicos argutos até dizer basta, de refinados pormenores literários que certamente demoraram anos a ser absorvidos. O mais banal documentário é transformado num ensaio. O mais banal drama numa "representação arrebatadora da vida em estado puro" (não inventei isto, estou a citar), ou num "filme pleno de credibilidade humana, emocional e narrativa". Ok, o filme é credível, sim senhora. Mas é bom? O filme tem uma estética fabulosa. Ok, mas é uma seca? Tem as mais belas paisagens do mundo? Sim senhora, mas tem uma história que não anda nem desanda? O argumento é brilhante. Ok, mas os actores fazem jus ao material, ou deviam estar nos Morangos?
Acho muito bem que cada um se exprima como bem entender. Eu próprio estou aqui a dar largas ao meu gosto pelas letrinhas, que se vão agrupando em palavrinhas, e não estou nada enfadado com o som da minha própria voz (escrita). Mas como diria alguém mais sábio do que eu, ‘já basta o que basta’. E disto, já basta. Eu até consigo admitir que o crítico cinematográfico português abomine o sistema de estúdio, a máquina de fazer dinheiro de Hollywood, e seja mais dedicado às produções financiadas a fundo perdido por ministérios de cultura e televisões públicas por essa Europa fora, cerejinhas e bolos que vão parar às mãos dos amiguinhos que têm amiguinhos, que depois mandam bobinas para Cannes todos sorridentes, enquanto os restantes elementos da classe cultural dos respectivos países morrem à fome. Eu consigo admitir que de quando em quando um desses críticos cinematográficos portugueses vá para a televisão desbobinar o que não sabe sobre os filmes novos que viu à pála, com o único objectivo de os promover e nunca os maldizer. "Se está a estrear, ide ver porque é bom", parece ser o seu lema. E eu até consigo admitir que ano após ano esses indivíduos se dediquem a fazer concursos de calinadas aquando da cerimónia dos Óscares, mostrando conhecimentos muito superficiais sobre a história do cinema e da Academia, mas invariavelmente felizes com as suas buscas-rápidas-no-imdb-para-debitar-informação-aos-espectadores-e-fingir-que-é-minha (muito usado também nos jogos de futebol, substituindo-se imdb por zerozero), e com o facto de saberem tudo sobre os mais recentes filmes do Tom Cruise, ou, numa linha mais intelectual, de um realizador iraniano ou da Quirguízia, cujos filmes passam só em Lisboa e para os quais receberam sempre passes VIP. Mas o que eu não consigo admitir é que não falem dos filmes quando os estão a criticar.
Critiquem-nos bem. Critiquem-nos mal. Façam toda a analogia que quiserem desde Abel Gance a Godard, desde Antonioni a Fuller, desde Brett Ratner a Penny Marshall. Transformem o novo filme do Adam Sandler numa epopeia de Homero. Utilizem a palete toda de adjectivos e recursos de estilo que aprenderam na escola. Mostrem que sabem o que é uma sílaba métrica, uma palavra esdrúxula ou a cacofonia. A crítica é vossa e é subjectiva. A vossa opinião pode não ser a minha opinião, mas isso ninguém discute. O que se discute aqui é cinema. Não é poesia, nem literatura. É cinema. Então discuti cinema faz favor. Ninguém se interessa se os estimados críticos cinematográficos portugueses sabem escrever muito bem ou não. O que interessa é o que acharam do filme, de todo o filme, do filme como um todo. Não apenas da forma como o interpretam como um conceito, como um ente que tem de ser explicado literáriamente. Mas sim como um ente que tem de ser esmiuçado através das suas características intrínsecas, um ente que se consegue decompor e julgar, um ente que existe não só como uma forma de arte, mas para gerar um impacto, o que eu em cima chamei reacção. O impacto sentimental é muito bonito, sim senhora. Mas não pode sugar todo o espaço da crítica. Porque o produto que se julga não se limita só a isso. Numa primeira camada esse impacto é importante. Mas para o compreender, é preciso penetrar nas outras camadas, de natureza chamemos-lhe técnica, que continuamente, constantemente, invariavelmente, são renegadas, negligenciadas pelas mentes iluminadas deste país.
Senhores, eu prezo muito a poesia, a arte da palavra. Senhores, por outro lado, eu prezo muito o cinema. Não existe pecado algum em criar pontes de ligação entre ambas as áreas. Contudo, uma não poderá sugar completamente a outra. Quando uma obra de cinema ataca a obra literária (e fá-lo constantemente!), o livro não é destruído. Aliás até vende mais, mas essa não é a questão. O livro permanece, é tido como um ente isolado. Mas aqui, agora, neste país, o inverso está a ocorrer. A literatura está a afundar o cinema, o falar sobre cinema, o escrever sobre cinema. Os críticos cinematográficos portugueses estão a impedir o cinema de chegar às páginas, porque entre o filme e os olhos do leitor está uma barreira literária egocêntrica, e esta barreira tem de ser deitada a baixo.
Senhores, o meu nome é Miguel Saraiva e este é o meu manifesto. Não tenho dúvidas que terão visto muito mais filmes do que eu, que ainda não vivi 27 primaveras [agora já vou quase nas 29, mas continuo a pensar o mesmo!], e não tenho uma profissão que me remunere por estar no sofá a deliciar-me com a sétima arte. Não tenho dúvidas que as vossas colecções pessoais excedem largamente a minha, uns míseros 1500 títulos. Não tenho dúvidas que o vosso estatuto e localização central vos permita o acesso a obras que nós, rude gente do Norte, apenas ouviu falar um dia. Não tenho dúvidas que terão lido muitos mais livros da especialidade do que eu. Não tenho dúvidas que os vosso conhecimento de causa exceda largamente o meu, que nunca pus os meus pés delicados num plateau, que nunca troquei risinhos com o Harrison Ford, nem nunca publiquei algo que jeito tivesse. Não tenho dúvidas que o talento que vos move é tão grande que não o possam conter, e que se sintam obrigados a exprimi-lo, para o bem das gerações futuras, sempre que têm uma coluna para escrever. Mas, por amor da santa, não o façam.
Obrigado. Não é o cinema que agradece. Sou eu.
Parabéns. Fiquei fã .
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