Realizador: Jerry Lewis
Actores principais: Jerry Lewis, Alex Gerry, Bob Clayton
Duração: 72 min
Crítica: Há filmes que são concebidos, filmados, promovidos e lançados nas salas como grandes obras-primas quando na realidade, feitas as contas, não o são. Por outro lado, há filmes feitos com a maior das humildades mas com um enorme coração que, lançados sem qualquer pretensão ou egocentrismo, encontram um lugar de carinho e afecto no público e tornam-se, por mérito próprio, obras cinematográficas eternas. ‘The Bellboy’ (em português ‘Jerry no Grande Hotel’) o filme de 1960 escrito, realizado e protagonizado pelo imortal Jerry Lewis é um desses filmes. Não só é uma das melhores comédias alguma vez feitas, como é também um forte candidato a ser um dos melhores filmes que alguma vez foram produzidos.
Acho uma vergonha e um desperdício enorme o nome de Jerry Lewis ser praticamente desconhecido nos dias de hoje. Os seus DVDs raramente estão à venda, os seus filmes nunca passam na televisão, não existe qualquer menção de que os seus filmes existiram nas reposições das cinematecas ou nos livros e revistas da especialidade. Eu próprio só há um par de anos é que vi o meu primeiro Lewis (embora desde então já tenha recuperado, com orgulho, todo o tempo perdido), por influência da minha então namorada, agora esposa (também com orgulho!), que tinha excelentes memórias de ver estes filmes na sua infância. Os filmes de Lewis seriam perfeitos para passar na televisão ao sábado de manhã para as crianças verem, ou então no domingo à tarde, como entretenimento familiar. Seria uma alternativa ao mesmo tempo hilariante, enternecedora, educativa e cinematograficamente bela, características estas que carecem aos programas de, dizem eles, ‘entretenimento’ português.
Mas note o leitor que esta minha adulação de Lewis não é apenas um capricho de um cinéfilo a tentar ser iluminado. Verdade que os críticos franceses já na década de 1960 aclamavam Lewis como um grandessíssimo cineastra (como de costume, os franceses estão sempre 20 anos à frente dos americanos a reconhecer talento – vejam-se os casos de Hitchcock e Clint Eastwood), mas mesmo para o resto do mundo Lewis sempre foi um fenómeno de massas, um entretainer para todas as idades, dos 8 aos 80. Entre 1950 e 1956, em parceria com Dean Martin, com quem fez a sua primeira quinzena de filmes, e depois em 1957, 1959, 1961 e 1964, a solo, Jerry Lewis foi o líder da box office mundial, ou seja, foi constantemente o actor cujos filmes em que entrou em cada ano renderam, no total, mais dinheiro à escala global. Nenhum actor na história ocupou esta posição cimeira tantos anos. Ou seja, isto não é fruto de uma moda, nem de um acaso. É fruto de um inacreditável talento cómico, em primeiro lugar, ao qual se aliou um extraordinária visão cinematográfica, que se iniciou, quase por acaso, com ‘The Bellboy’.
Embora Lewis estivesse cada vez mais a ganhar controlo dos seus filmes e a ficar mais focado e artístico na sua comédia, o seu grande mentor, Frank Tashlin, ainda realizava a maior parte dos seus filmes. No início de 1960, Lewis terminou ‘Cinderfella’ (realizado por Tashlin), um filme igualmente mágico que tem uma das cenas mais extraordinárias alguma vez feitas: a ‘dança’ que Lewis faz ao som de Count Basei enquanto a máquina lava a loiça. Terminado no início do ano, a Paramount (o estúdio em que Lewis fez as suas maiores obras) estava a apontar para mais um sucesso de bilheteira de Verão. Mas Lewis bateu com o pé. ‘Cinderfella’ era um conto de fadas para a família, por isso só poderia ser lançado no Natal. Mas a Paramount não queria esperar até ao Natal para lançar um filme da sua maior estrela, por isso insistia no lançamento antecipado. Então Lewis teve uma ideia. Propôs à Paramount fazer um segundo filme, praticamente de graça, a tempo de ser lançado no Verão, se eles esperassem até ao Natal para lançar ‘Cinderfella’. Seduzidos por dois filmes de Lewis no mesmo ano ao preço de um, a Paramount não hesitou. Esse filme, claro, foi ‘The Bellboy’.
Todo o processo foi frenético. Lewis escreveu o argumento numa semana. Depois não conseguiu encontrar ninguém que aceitasse realizar o filme tão em cima da hora. Reza a lenda que chegou a propor o lugar a Billy Wilder (seu amigo e que lhe havia oferecido no ano anterior o papel de Jack Lemmon em ‘Some Like it Hot’, que Lewis recusou por não se querer vestir de mulher), mas Wilder recusou e fez a sugestão que o próprio Lewis o deveria realizar. Lewis gostou da ideia. Aproveitando o contrato que tinha para actuar durante os serões ao longo de 4 semanas no Fontainbleau Hotel em Miami, Lewis levou a sua equipa consigo, conseguiu permissão do hotel, e passou as manhãs e as tardes dessa estadia a filmar o seu filme em todos os cantos do hotel e nas áreas envolventes. Ou seja, ‘The Bellboy’ é um filme feito à pressa, conceptualmente simples, de situações e emoções de curta duração e com uma ostensiva superficialidade. Mas ao mesmo tempo, escarafunchando a superfície, apercebemo-nos que a dedicação com que Lewis produziu esta obra, a honestidade que ela possui, e a comédia abertamente surreal que não foi pensada nem trabalhada, mas que surgiu instintivamente com paixão, tornam este filme num produto muito, mas muito especial.
A própria introdução do filme, feita por um suposto produtor da Paramount (um artifício para dar mais uns minutos a um produto com pouco mais de uma hora, e para justificar a falta de história) admite que o espectador está prestes a ver algo que não é nada mais que uma “série de sequências parvas” que retratam o dia-a-dia de um “doido varrido”. Esse doido, claro, é Lewis, e a Paramount parece estar a dizer: “Isto não é bem um filme. Isto é parvoíce pura executada pelo vosso comediante favorito”. Ao mesmo tempo, numa altura em que a comédia de sketches era uma coisa apenas da TV, esta sequência inicial acomoda o público para algo que nunca tinham visto antes no grande ecrã.
‘The Bellboy’ é, pura e simplesmente, uma série de sketches de comédia e piadas non-stop, algumas de apenas poucos segundos (mas nenhuma que possa ser apelidada de ‘fácil’), e outras com uma construção mais elaborada, mas nunca excedendo 5 minutos. O elemento central é Stanley (Lewis), um paquete desastrado que semeia o caos sempre que é chamado a levar malas, ao serviço de quartos ou a qualquer outra função como trabalhador do hotel. Este resumo constitui a superfície do filme, e pode muito bem ser visto como tal pelo espectador menos atento. Mas vê-lo desta maneira é passar ao lado algo muito mais substancial.
Para começar, Lewis, na sua estreia na realização, refugia-se no tipo de comédia em que era mais forte, ou seja, na comédia visual e coreografada. Como Stanley, Lewis diz apenas uma frase, e é no final do filme. Embora as pessoas falem à volta dele, e embora haja uma voz off de vez em quando (desnecessária na minha opinião, provavelmente usada para atenuar a dependência do visual), a maior parte da comédia desenrola-se como se de um filme mudo se tratasse, ao som de uma banda sonora jazzística e de elementos humorísticos extraídos do som ambiente e da técnica do ‘mickey-mousing’ (associar som a acções). Não é por acaso que a sua personagem se chama Stanley, uma homenagem clara a Stanley Laurel (o ‘Estica’), ídolo de Lewis, que se torna ainda mais clara quando o ‘próprio’ Estica faz uma breve aparição (interpretado por Bill Richmond, co-argumentista de muitos filmes de Lewis), uma presença igualmente muda que apenas acresce ao surrealismo desta peça (como diz um colega paquete “só há um único Stanley no mundo!”).
Todos estes elementos, associados à fotografia a preto e branco, tornam ‘The Bellboy’ um produto nostálgico da era de ouro da comédia, nas décadas de 1910 e 1920. Para além do mais, há ainda o aspecto técnico que trás à memória as peripécias elaboradas de Buster Keaton. Lewis usa a câmara como mais um elemento cómico, o que é surpreendente visto ser a sua estreia a dirigir. Nesse sentido, ‘The Bellboy’ introduziu algo que muitas vezes é esquecido mas que foi fulcral para a evolução do cinema. Antes de ‘The Bellboy’ o que era filmado no plateau era apenas revisto ao final do dia no estúdio – a famosa revista às rushes. Lewis precisava de saber se tinha captado a essência da cena no momento, pois como ele próprio era o actor não se podia ver de fora. Então, Lewis inventou o que hoje todos os realizadores dão por adquirido: o sistema de ‘video assist’, ou seja, a capacidade de rever a cena num monitor logo após esta ter sido filmada, sistema para o qual registou uma patente. Visto que o filme foi filmado em apenas 4 semanas, este feito histórico é ainda mais extraordinário.
Deste modo, Lewis conseguiu coreografar na perfeição cenas como a entrada inicial dos paquetes (ao estilo bailado militar) ou a magnífica chegada do hóspede de honra do hotel: o próprio comediante Jerry Lewis! Nesta pequena aparição de Lewis como ele próprio (hilariante no uso de duas palavras: ‘hold it!’) há dois momentos a reter. A sua chegada de carro usa o truque clássico dos palhaços de um número infinito de pessoas saíram da parte de trás de um carro. Visto que a câmara só está a mostrar uma porta, o público obviamente pensa ‘está tudo a entrar por uma porta e a sair pela outra’. É aí que a câmara de repente se desloca e nos mostra a outra porta fechada e as últimas quatro pessoas (o último Lewis) sentados calmamente e a sair do carro. Do mesmo modo, esta carrada de gente entra num elevador (Lewis em primeiro lugar), que parece ter lotação infinita. Quando a última pessoa entra no elevador, Lewis (desta vez como Stanley) sai. Quer um momento quer o outro são feitos num único plano sem cortes e sem qualquer artifício. E ambos são brilhantes. Outras técnicas de realização, algumas avançadas, outras menos, como a da ‘Noite americana’, também chamada ‘Day for Night’ (a de filmar cenas nocturnas durante o dia através do uso de filtros), são utilizadas por Lewis para efeitos cómicos.
Mas para mim a comédia mais bem conseguida não está na técnica. Está na surreal, uma característica que ganhou cada vez mais relevo nos filmes de Lewis. Quando alia estas duas vertentes, o surrealismo com a técnica cinematográfica/amor pelo cinema, então Lewis fica perfeito. Nem irmãos Marx, nem Mel Brooks conseguiram chegar a este nível. Provavelmente, só Chaplin consegue ser superior. A cena das cadeiras é inacreditavelmente simples, mas é capaz de ser o momento alto do filme. O sketch sobre a hóspede gorda que fica magra (usando duas actrizes), que volta a ficar gorda porque quando ela faz check-out Stanley oferece-lhe uma caixa de chocolate, poder-se-á dizer que é ‘parva’ mas ao mesmo tempo é terna. Quando Stanley come o seu almoço no restaurante onde se vê o fundo da piscina é a oportunidade para coisas muito engraçadas e estranhas passarem pela janela. Não haverá uma única criança que não terá o seu coração aquecido nem mostrará um sorriso nos lábios ao ver a cena das maças inexistentes. Do mesmo modo, a magia é perfeita quando Lewis dirige uma orquestra invisível. Tal como o seu bailado em ‘Cinderfella’, ou a dança dos fantoches em ‘The Errand Boy’ (1961), ou quando dirige uma reunião invisível ao som mais uma vez de Count Basie neste mesmo filme de 1961, Lewis consegue unir numa única cena marcante, ao mesmo tempo comovente, hilariante e infinitamente bela, o seu amor duplo pela comédia visual e pela música, roçando deste modo a perfeição e a divindade cinematográfica. Desde Chaplin e Keaton que a pantomina cinematográfica não era tão bem executada e Lewis é, claramente, o último grande artista que o conseguiu fazer.
E de resto, Lewis é Lewis. Uma alma simples e terna, uma criancinha presa num corpo grande, sempre bem intencionada mas que tem o azar de ser extremamente desastrada, causando o pandemónio. Pedem-lhe para levar tudo o que está na mala para o quarto. Mas esquecem-se de lhe dizer que é um dos carros cuja mala é à frente e o motor está atrás… Encera o chão da recepção e por causa disso o noivo de um casal recém-casado que esperou 7 anos pela noite de núpcias e que está mortinho para ir para o quarto cai e tem que ir para o hospital. Depois lembra-se de ir assistir a uma partida de golfe. Depois há a convenção de top models no hotel. Depois tenta transportar uma mala pesada mas que carece de alças… ‘The Bellboy’ não dá descanso ao espectador. Bombardeia-o com comédia, da boa, e o ritmo nunca se quebra. E, pelo meio deste pandemónio interminável, muitos músicos e outras estrelas (como Milton Berle) fazem pequenas aparições, dando alguns pontos de interesse adicionais, mas que, há que admitir, são elementos mais de ‘enchimento’ do que outra coisa.
Tudo somado ‘The Bellboy’ é uma salgalhada coerente de comédia de situação surreal, formalmente balética, e terna, comovente e hilariante. É a epítome do trabalho de Lewis, por ser honesto, instintivo e feito com muito, muito coração. Poderá ser criticado por ser pouco ‘filme’ mas eu defendo que está aqui uma estrutura conceptual cinematográfica digna de fazer inveja a muitos filmes dos chamados grandes artistas. A comédia não tem um rumo, existe por existir, pelo prazer de existir, pelo prazer de entreter, mas por outro lado os sketches não são ocos, e por detrás de cada risada está uma mensagem. O próprio filme acaba com uma lição de moral, quando Stanley, mudo todo o filme, explica numa frase porque é que nunca falou até esse momento, com a inocência pura que Jerry Lewis conseguia conceder às suas personagens cinematográficas.
Se alguns adultos não conseguirão entender ‘The Bellboy’ estou seguro que nenhuma criança deixará de gostar dele. Não amam Lewis nos dias de hoje por um único motivo: não o conhecem. Cada vez que penso em ‘The Bellboy’ dá-me vontade de sorrir. Apela ao meu duplo gosto. O gosto da comédia honesta e verdadeira, sem qualquer pinga de artificialidade ou degradação de conteúdos para a risada fácil; e o gosto pelo cinema. Um grande surrealista de direito próprio, um amante do cinema mudo, de Chaplin, Lloyd, Keaton e Laurel, e um grande coreografo de comédia, Lewis fez em ‘The Bellboy’ a perfeita transição de comediante para artista/cineasta. De ‘The Bellboy’ em diante, Lewis iria passar a realizar a maior parte dos seus filmes. E embora a sua carreira no topo da comédia duraria apenas até ao final da década de 1960, e apesar de, a meu ver, nunca mais ter repetido o extraordinário feito de ‘The Bellboy’, Lewis manteve-se fiel ao seu instinto, ao seu gosto de apelar ao coração das crianças e de realizar o melhor entretenimento familiar possível, e ainda teve tempo de legar ao mundo obras como ‘The Ladies Man’ (1961), ‘The Errand Boy’ (1961), ‘The Nutty Professor’ (1963, um dos seus maiores sucessos de bilheteira, cujo remake ‘Professor Chanfrado’ com Eddie Murphy poderá ser conhecido do leitor), ‘The Patsy’ (1964) ou ‘The Family Jewels’ (1965, onde Lewis interpreta meia dezena de papeis).
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