Home » » A profissão do outro lado do sonho – um olhar prazenteiro sobre a ‘indústria’ de tradução de títulos de filmes em Portugal

A profissão do outro lado do sonho – um olhar prazenteiro sobre a ‘indústria’ de tradução de títulos de filmes em Portugal

Nota Prévia: Esta crónica foi originalmente escrita a 4 de Junho de 2010. Não foi assim há tanto tempo, mas foi tempo suficiente para ganhar alguma maturidade em termos de escrita crítica. Nessa altura, estava a começar a escrever sobre cinema, mais para recriação minha do que outra coisa. A folia da juventude e a facilidade de criticar numa plataforma online (um anterior blog) com todas as liberdades de expressão e o distanciamento e o anonimato que isso acarreta, fizeram com que os meus primeiros escritos fossem, digamos, um pouco incisivos de mais, um pouco rudes, vá, mesmo que atenuados por uma vertente mais humorística. Contudo, ao prepará-la agora para republicação, não alterei muito da sua forma original. Mantive a sua estrutura e conteúdo. Substitui apenas um ou outro comentário mais forte, aclarei algumas ideias e actualizei um pouco as referências. Apesar de ter evoluído nestes três anos na minha forma de escrita em geral, e naquela sobre cinema em particular, não posso deixar de notar que concordo com (quase) todas as afirmações que o meu eu passado tão apaixonadamente escreveu, noite dentro, noite essa que me lembro como se fosse hoje… 

Como muitos dos meus amigos (que até deviam ser muitos mas não são) já me ouviram dizer repetidas vezes, tenho uma profissão de sonho. Claro que não pretendo mostrar nenhum desrespeito à arte da Engenharia Civil (sim, porque é uma arte), nem à imodesta disciplina do planeamento urbano a que chamo casa [peço desculpa pela pior piada da história das críticas], nem à graciosa e delicada arte literária, nem à gloriosa, sublime e perfeita sétima arte, nem mesmo aos devaneios teatrais a que me dedico amadoramente. Todas estas têm, claro, o seu lugar no meu gigantesco coração, mas nenhuma ocupa um espaço tão extenso no meu portfolio emocional como a que seguidamente apresento.

Estou a falar, obviamente, da insuperável profissão de tradutor de títulos de filmes. Não, não estou a gozar. Peço ao leitor que imagine comigo. O trabalho consiste em ver à borla todos os novos filmes que estão a estrear e dar-lhes, basicamente, o título que apetece ao tradutor, de acordo com a disposição emocional e a inspiração que sente na altura. Ver filmes, liberdade poética, e receber ao fim do mês! Pode haver alguma coisa melhor que isso? 

O desenvolvimento desta nobre profissão nos meandros portugueses encontra-se, a meu ver, delimitada por duas vertentes.

A primeira vertente é a chamada (ou melhor, sou eu que a chamo assim) ‘fase espanhola’, que reinou até meados da década de 1980. Se se reparar com atenção, um grande número de filmes que têm títulos assim, digamos, mais para o esquisito, ou seja, títulos que não são exactamente uma tradução literal nem uma suficientemente parecida com o título original, são semelhantes ao dito título esquisito na versão espanhola. A teoria por detrás desta fase é simples: ou se traduz literalmente o título original, ou se estuda atentamente a tradução de ‘nuestros hermanos’ e aportuguesa-se. Fantástico. Seguem-se maravilhosos exemplos que me vêm de repente à cabeça. 

Temos o grande filme de Preston Sturges de 1942 chamado ‘The Palm Beach Story’, ao qual os espanhóis tiveram a delicadeza de chamar ‘Un marido rico’ e ao qual nós chamamos… ‘Um Marido Rico’. Só mudamos um “n” por um “m”. Genial. Creio que a “Estória de Palm Beach” nunca passou pela cabeça de ninguém.

Também temos o filme de 1976 de Mel Brooks chamado ‘Silent Movie’ ao qual os espanhóis chamaram ‘La última locura’. Nós, sempre à coca de não só copiar, mas também bater os espanhóis em tudo, inovamos e chamamos ao dito ‘A última loucura de Mel Brooks’, só para que não haja dúvidas sobre quem é o realizador. Na verdade, estão a fazer um serviço ao público. Não só oferecem o nome do filme, como introduzem o nome do realizador, para que o espectador não tenha que perder tempo a ir procurá-lo. Assim recebe o pacote completo, de um só fôlego. De novo, ‘Filme Mudo’ não passou pela cabeça de ninguém.

Há outro Sturges, John Sturges, que em 1955 fez um filme fabuloso com Spencer Tracy intitulado ‘Bad Day at Black Rock’. Os espanhóis chamaram-lhe ‘Conspiración de silencio’ e nós… (tambores)… ‘A Conspiração do Silêncio’. Foi ao aperceber-me desta tradução que comecei a desconfiar que havia, efectivamente, uma conspiração silenciosa a actuar em Portugal. Mas é uma conspiração com falhas. Um dos filmes mais populares dos famosos estúdios Ealing chama-se ‘The Ladikillers’ (1955). Espanhol: ‘El Quinteto de la Muerte’. Português: ‘O quinteto era de cordas’. Incrível. Nem do espanhol conseguimos traduzir direito!

Os exemplos sucedem-se eternamente. Busquemos a tradução de ‘Mildred Pierce’ (1945), uma obra-prima, para mim um dos 20 melhores filmes de sempre, realizado por Michael Curtiz dois anos após ‘Casablanca’. Em espanhol: ‘Alma en suplicio’. Em português ‘Alma em suplício’. De novo a táctica de alteração do “n” pelo “m”. Deve ter sido uma sub-fase da fase espanhola. Muito me espanta não terem dado à personagem de Joan Crawford (que ganhou Óscar de Melhor Actriz por este papel) o nome de Nildred Pierce nas legendas! No ano seguinte, John Ford apresentou ‘My Darling Clementine’. Nuestros hermanos dizem ‘Pasion de los fuertes’, nós dizemos ‘Paixão dos Fortes’. A Clementina devia ser uma rapariga bem-constituída, coitadinha. E saltando 50 anos, podemos analisar a tradução do título de ‘Far and Away’, o filme de Ron Howard com a dupla Cruise/Kidman. Em espanhol chama-se ‘Un horizonte muy lejano’ e nós, macaquinhos de imitação, chamamos-lhe ‘Horizonte longínquo’. Eu posso ser meio escaganifobético, mas não ouvi ninguém em inglês a referir-se a um horizonte. É distante? É sim senhora. É longínquo? Com certeza. Mas quem é que fala em horizontes?

Suponho que deva haver exemplos mais engraçados, mas dêem-me um desconto, não vou vasculhar nos 1.200 filmes que tenho aqui em casa [agora já são uns 1.900!] em prol de uma crónica que ninguém lê. Desgraçados! Mesmo assim, ainda consigo simpatizar minimamente com a causa espanhola. Os marmanjos traduzem tudo, não só os títulos mas literalmente todo o filme. Os pobres coitados nunca ouviram a voz verdadeira nem a entoação de um único actor portanto, já que também só estão a ver o filme à metade, se não lerem o título original é o menor dos seus problemas. Agora não consigo coadunar com esta pouca vergonha que se passa em Portugal. Como é que é possível que nós, portugas, de um país abençoado na Europa a par da Holanda por termos a legendagem, continuemos a tratar assim os títulos originais?! Não entendo.

E muito menos entendo esta seita secreta que foi criada com este propósito. Não sei quem são, se andam entre nós, comendo a nossa comida, andando no metro connosco, se são da nossa família, se são nossos amigos. Nunca ouvi falar de tais pessoas. Nunca ouvi ninguém dizer “O que faço da vida, perguntas tu? Eu traduzo títulos de filmes, pá!”. Já conheci pessoas que fazem legendagem. Já conheci pessoas que fazem dobragem. Mas nunca conheci pessoas que fazem tradução de títulos. Onde andam elas? Existem realmente? Vão às reuniões encapuçados e fazem rituais pagãos ao som de cantigas maçónicas? Carregam num botão às cegas e um programa informático faz brotar uma tradução? Esta gente acorda de manhã, veste-se e vai para o emprego como os demais? Sai à noite, casa, tem filhos, vai ver a bola? E como é o seu dia-a-dia? Sentam-se numa sala envidraçada do último andar do edifício-sede da Lusomundo ou da Castelo Lopes e, debruçados sobre uma mesa, fazem um brainstorming, mostrando gráficos e usando aquelas canetinhas dos chineses que dão luzinhas vermelhas? Perco horas de sono a pensar nestas coisas.

A segunda vertente encontra-se marcada por um afastamento da literatura dos nossos vizinhos geográficos, dos nossos irmãos ibéricos. Nesta fase, a independência, a maior rebeldia na tradução dos filmes mais modernos alia-se a uma herança deixada por meia dúzia de anciãos que, certamente há rebeldia dos espanhóis, traduziram os filmes do passado há medida que foram chegando e deixaram pastas bafientas e poeirentas numa cave com esta informação que foram reivindicadas, de alguma forma obscura, pelo sangue novo. Digo isto porque há títulos de filmes bem antiguinhos cuja tradução espanhola é literal e a nossa disparata para tudo o que é lado.

Comecemos por ‘White Heat’ de 1949. Os espanhóis esmeraram-se com ‘Al rojo vivo’, embora haja uma estranha mudança cromática. Nós enveredamos pelo apelativo ‘Fúria Sanguinária’. 

Segue-se ‘To Kill a Mockingbird’, que valeu o Óscar de Melhor Actor a Gregory Peck em 1962. Espanhol: ‘Matar um ruisenor’. Sim senhora, fico surpreendido. Português: ‘Na sombra e no silêncio’. Paradoxalmente, também fico surpreendido. Provavelmente o tradutor estava numa sala de cinema a ver Fellini quando teve esta brilhante ideia… 

Ao glorioso ‘Yankee Doodle Dandy’ de 1942 os espanhóis chamaram ‘Yanqui Dandy’ porque já não tinham fôlego para traduzir três palavras literalmente. Duas foi o máximo que conseguiram. Mas nós somos o povo de Camões e Pessoa, pelo que nada menos que ‘Canção triunfal’ consegue satisfazer a nossa alma poética. Qual o problema do nome do filme ser o nome da canção? É preciso traduzir? Os portugueses não conseguem perceber nomes de canções a não ser que seja aquela brejeirice que passa nas tardes de domingo na televisão? Avançando.

Em 1948 Bob Hope foi o dentista mais azarado do Velho Oeste em ‘The Paleface’. Os espanhóis, miraculosamente, conseguem uma tradução literal. Mas nós vamos para o Guiness com o título mais azarado do Novo Oeste da Península Ibérica: ‘O Valentão das Dúzias’. Nestas alturas, não sei se hei-de rir ou de chorar. Não faço ideia qual destas coisas está o leitor a fazer agora.

O maior filme de Natal de todos os tempos ‘It’s a Wonderful Life’, filmado em 1946 por Frank Capra e com Jimmy Stewart no papel principal, também foi vítima de uma partida. Deve ter sido o Jack, o rei das abóboras, que a pregou, porque pensou que ainda estava no Halloween. Os espanhóis usam o duplo ponto de exclamação “¡Qué bello es vivir!”, mas nós optamos pelo cósmico “Do céu caiu uma estrela”. Acredito perfeitamente que tenha caído qualquer coisa do céu, mas aterrou direitinha na cabeça de alguém…

Em 1947, os Aqueiros realizaram ‘Black Narcisus’. Os espanhóis fazem a tradução literal, nós dizemos, como quem não quer a coisa, ‘Quando os Sinos dobram’. Para mim, o que é mais estúpido é que três anos antes houve realmente um filme, com Ingrid Bergman, chamado ‘For Whom the Bell Tolls’, que nós traduzimos bem: ‘Por Quem os sinos dobram’ (só pode ter sido um milagre de Igreja associado aos sinos). Já sabíamos por quem dobravam. Agora ficamos a saber a hora. Muito me surpreende não haver um ‘Onde os Sinos dobram’, para ficarmos também a saber o local.

‘Sulivan’s Travels’, de novo de Preston Sturges (o homem era perseguido cá em Portugal, só pode), foi traduzido como ‘Quimera do Riso’. ‘Duck Soup’ dos irmãos Marx chama-se em português ‘Os grandes aldrabões’. Quem foi aldrabado fui eu! ‘The Maltese Falcon’ com Humphrey Bogart dá pelo nome de ‘Relíquia Macabra’. E até o grande, considerado por muitos o filme mais perfeito alguma vez feito, ‘Citizen Kane’ de Orson Wells, que os espanhóis tratam afectuosamente por ‘Ciudadano Kane’, chama-se neste nosso país ‘O Mundo a seus Pés’. Eu sei muito bem quem é que cheira mal dos pés, ou quem merece levar com os pés…

Continuando. ‘Chariots of Fire’, o famoso filme de 1981 sobre as olimpíadas, é chamado pelos nossos queridos vizinhos pelo nome de ‘Carros de Fuego’. Nada contra. Mas nós optamos por uma abordagem mais subtil: ‘Momentos de Glória’, só mesmo para exibir. Um nome épico, sim senhor, mas perde-se o grande significado do título. Para quem não sabe, o filme chama-se assim porque vai retirar três palavras ao famoso poema ‘Jerusalém’ de William Blake, que foi transformado em música no século XIX e que se tornou numa espécie de hino não oficial da nação britânica. Reza o poema “Bring me my bow of burning gold! Bring me my arrows of desire! Bring me my spear! O clouds, unfold! Bring me my chariot of fire!”. Mas que interessa esta inspiração poética quando podemos erguer os braços para o ar e gritar em plenos pulmões ‘Momentos de Glória’?!

Em 1955 Mann fez ‘The Man from Laramie’. Os espanhóis optam pela tradução literal. Nós dizemos ‘O Homem que veio de longe’. Será que nos inspiramos no francês? Não, já que em francês é ‘L'homme de la plaine’. Vá lá, se Laramie for numa planície ainda se desculpa. Mas agora porquê entrar com noções de distância? Eu compreendo perfeitamente que o povo português não saiba onde fica Laramie. Eu próprio não sei, mas não sei até que ponto a dica de que é longe será relevante. Laramie é longe. Ok. E depois? E se o filme se chamar ‘The Man from New Zeland’? Será traduzido por ‘O Homem que veio de ainda mais longe’?

Quando Howard Hawks fez o clássico ‘The Big Sleep’ em 1946 com Humphrey Bogart e Lauren Bacall, mal sabia ele o que se iria passar por estes lados. Senão teria dormido ainda mais tempo. Os espanhóis variam com ‘El sueno eterno’. Só para esclarecer o quão grande é a dormida. Mas nós não somos uma cambada de maricas. É logo à bruta. ‘À beira do abismo’, e é se queres. Como quem diz, se sonhas, é para caíres. 

E deixo o melhor desta fase para o fim. Recorrendo de novo a Mel Brooks, queria informar o leitor da tradução do título do filme ‘The Producers’ de 1968. O remake recente, de 2005, teve a tradução de ‘Os Produtores’. Mas quem andava a fazer traduções em 1968 tinha muito mais talento do que estes coitados que fazem traduções agora e do que os espanhóis que fizeram, pobrezinhos, a tradução literal. Nós batemos todos os recordes, entramos para o Guiness e ficamos registados como a tradução mais original da história do cinema. Tradução? Peço desculpa, eu queria dizer ‘traduções’. Sim, porque não demos um, mas sim dois nomes ao filme. O primeiro nome, aquando do lançamento do filme, deve ter sido tão vaiado que a seita secreta se sentiu compelida a puxar pelo cérebro e desencantar um segundo nome para as exibições na TV e o lançamento em VHS. ‘Os Produtores’? Não, isso é muito démodé. Leitor, por favor agarre-se à sua cadeira, ou aperte a mão a um amigo. O filme ‘The Producers’ de 1968 de Mel Brooks teve como tradução original para português… ‘Por favor não mexam nas velhinhas’!!!! Lamento, mas não vou comentar. E acho que o leitor percebe porquê. Só queria referenciar que, este não servindo, a segunda solução foi ‘O falhado amoroso’.

Vou ser sincero. Não sei o que se passou antes e o que se passa agora com esta gente. Acharão eles o público português tão burgesso e estúpido ao ponto de não perceber títulos? Estão a insultar-nos? Estão a ser condescendentes? Estão a tentar ajudar-nos tornando o filme mais compreensível? Ou é uma manobra de marketing, uma imposição das salas de cinema portuguesas, que pensam que terão mais saída se os títulos forem apimentados um bocadinho? Será que ninguém vai ver um filme chamado ‘Dear John’ (que eu, de mente sã e corpo são, traduziria por Querido John)? Na América vão, porque não em Portugal? Qual a necessidade de alterar o título para ‘Juntos ao Luar’? Terá isso realmente alguma influência no número de bilhetes vendidos? Dar aos filmes do James Bond títulos tão genéricos como ‘Agente Secreto’ (no original ‘Dr. No’), ‘Missão ultra-secreta’ (‘For Your Eyes Only’), ‘Ordem para Matar’ (‘From Russia With Love’) ou ‘Risco Imediato’ (‘The Living Daylights’), vai fazer com que os portugueses corram em magote para as salas de cinema? “Eh pá, desta vez o James é um agente secreto, numa missão de alto risco e tem ordem para matar! Deve ser o melhor Bond de sempre!”. Até fiquei sem fôlego. O meu cérebro não aguenta tanta eloquência e originalidade.

Estudando este fenómeno a fundo (bem a fundo, como o leitor já pôde comprovar, se conseguiu chegar até este ponto), chego à conclusão que nos dias de hoje imperam três grandes escolas de pensamento em Portugal.

A primeira escola é a ‘lei do menor esforço’. As directivas desta escola são claras. Consiste em não realizar qualquer tipo de tradução ao título. Ou seja, como vem é como vai, sem tirar nem pôr. Creio que aqui se adequa perfeitamente o exemplo clássico de atirar as folhas ao ar e definir um critério. Os títulos que estão nas folhas que caem em cima do sofá, por exemplo, ficam inalterados.

Na realidade creio que isto até poderá resultar para nomes, coisas que não significam nada, ou palavras inventadas. Mas infelizmente já vimos em cima que John passa a ser Luar, Laramie passa a ser Longe, portanto não é uma coisa fidedigna. Digamos que às vezes calha bem. ‘Stalker’ a obra-prima de Tarkovsky de 1979, chama-se em português ‘Stalker’. ‘Frankenstein’, ou mais recentemente ‘Tsotsi’, por exemplo, mantêm os mesmos nomes. E é assim que deve ser. Agora, por alma de quem é que ‘Big’, o filme de 1988 com Tom Hanks, se chama em português nada mais nada menos do que ‘Big’? Faltou a inspiração para traduzir uma palavra assim tão complicada?

Porque é que ‘Dancer in the Dark’, de Lars von Trier com Bjork, se chama em português ‘Dancer in the Dark’? Motivos de copyright? ‘Apocalypse Now’ chama-se em português ‘Apolcalypse Now’. ‘Sideways’ chama-se em português ‘Sideways’. ‘Memento’ chama-se em português ‘Memento’. Houve greve no sindicato? Ou foi um iluminado, que entretanto já foi despedido, que teve a ideia inovadora de que o título original é que deveria ser o correcto, como fazem lá pelas Franças e afins, onde colocam a tradução em letras pequeninas em baixo, dando o destaque todo ao título original? ‘Shutter Island’ em português é ‘Shutter Island’. O mesmo se passa com o ‘Shinning’ de Kubrick. Até os espanhóis optaram por ‘El resplandor’!

A minha única interpretação é que as traduções não são feitas porque as palavras em inglês tem algum estilo, e tornam-se ‘cool’ e ‘in’ ao serem pronunciadas pelas nossas línguas lusas. “Eh pá, ontem vi o Shinning”! “O Memento é mesmo fixe, não é”? “E o Apocalypse Now?!”. Para mim o exemplo extremo (e quem é meu amigo já me ouviu a dizer isto várias vezes) é a tradução sublime do filme ‘Armageddon’. Em português tem o título surpreendente de, claro está, ‘Armageddon’. Não sei se estes senhores sabem que existe uma palavra portuguesa tida como 'Armagedão' (passível de ser encontrada em qualquer dicionário), que tem o mesmo significado, por incrível que possa parecer, que a palavra inglesa ‘Armageddon’. Mas convenhamos, dizer "pessoal, vamos ao cinema ver o Armagedão" não soa assim tão bem. O leitor pode experimentar em voz alta. E agora experimente dizer, dando ênfase na última palavra: “pessoal, vamos ao cinema ver o Armageddon”. Saiu-lhe com muito mais estilo, não saiu? Ui, até sinto a glória nos lábios ao pronunciá-lo. Armageddon, Armageddon. Até me dá calafrios.

A segunda escola existente consiste em manter o mesmo título mas colocar um traço seguido de um pequeno acrescento à frente. Esta escola mantém o estilo cool da palavra original, mas permite também dar asas à imaginação. É a chamada escola meio-termo, que consegue captar o melhor de dois mundos. ‘Traffic’ transforma-se em ‘Traffic – ninguém sai ileso’ (incluindo o espectador que atura estas coisas). ‘Frenzy’ de Hitchcock traduz-se por ‘Frenzy – Perigo na noite’. Uuhhh, ME-DO! O clássico negro ‘Shaft’ de 1971 ganha o cognome de ‘Shaft – Mafia em Nova Iorque’. Claro que o Shaft é o polícia que salva o dia lutando precisamente contra a máfia, mas este tipo de confusões parecem-me perfeitamente aceitáveis. Criam conflito emocional e interesse pelas personagens.

‘Sacrface’ de Brian dePalma, realizado em 1983, é para nós ‘Scarface – A força do Poder’. O fabuloso ‘Blade Runner’ de Ridley Scott fica para a posteridade com o nome de ‘Blade Runner – Perigo Iminente’. E nem o clássico de 1931 ‘M’ de Fritz Lang se salva. Tem um acréscimo de precisamente quatro letras: ‘Matou’. As referências à letra M que é marcada nas costas do pedófilo homicida diluem-se mas nem tudo é más notícias. Os tradutores são simpáticos o suficiente para logo à cabeça clarificarem a história e avisarem sobre os perigos e os horrores que o filme poderá conter. É algo que sem dúvida resulta muito melhor do que a restrição ‘maiores de 16 anos’. Põe-se a ameaça no título e já está. O ‘Brockeback Mountain’ é outro exemplo. Só que em vez do apêndice acrescentaram um prefixo: ‘O Segredo de Brockeback Mountain’. Mas aqui foram injustos, deviam ter avisado que o filme não presta: ‘A porcaria de Borckeback Mountain’ ou ‘A história enfadonha de Brockeback Mountain’. Mas se calhar o ‘segredo’ era esse. “Pode vir ver o filme, mas o filme terá um segredo… não presta, foi apenas badalado na comunicação social graças a uma gigantesca estratégia de marketing derivada do seu tema controverso. Cinematograficamente falando, é bem fraquinho”…

Mais recentemente, ‘Shine’ (1996) transformou-se em ‘Shine – Simplesmente Genial’. ‘Toy Story’ passou a ser ‘Toy Story – Os Rivais’ (embora as sequelas ficaram estranhamente só com o Toy Story – 2 e 3). E até Mel Gibson viu o seu menino tornar-se ‘Braveheart – O Desafio do Guerreiro’. E isto para não falar de todos os filmes do Alien… Até o ‘Brazil’ de 1985, realizado pelo ex-Monty Python Terry Guilliam, é vítima deste fenómeno! Sinceramente, título mais simples que este para traduzir não há! Especialmente para os Portugueses. Aqui não há desculpas de que o público não iria entender o título! Ou será que há portugueses que não sabem o que é o Brasil? É preciso mesmo clarificar? Não fosse o público achar que iria ver um filme sobre Samba? Portanto o filme passa a chamar-se ‘Brasil – o outro lado do sonho’. O outro lado do sonho?! Eu só posso estar a sonhar. E estes senhores precisam é de acordar para a vida.

Por fim, o mais importante estilo moderno de tradução, completamente livre das amarras espanholas, completamente livre da herança do título original, e que dá valor à vida incipiente destas abéculas, é o chamado estilo livre. Imagino como anseiam pelo dúbio título em inglês, ou pelo título que o comité de avaliação decida que o público português, estúpido como é, não irá compreender. Imagino como anseiam a chegada dessa hora divinal para darem asas à sua veia poética e criarem pequenos versos inspirados que perdurarão para sempre nos corações do povo lusitano. Camões pode viver uma eternidade em nós, mas ‘O Amor é um lugar estranho’ como tradução do filme de Sofia Coppola ‘Lost in Translation’ (a ironia...) vai viver uma eternidade mais um dia. Sempre sonhei em fazer um filme em Hollywood. E se alcançar esse sonho o título que lhe darei será ‘Love is a Strange Place’, só para saber como é que estas mentes iluminadas o irão traduzir para português. Gostaria de propor eu próprio, com todo o respeito, um conjunto de sugestões. Estou indeciso entre ‘A porca e a alavanca’, ‘Um Natal genial’ ou ‘O pai está nú porque a mãe está na cozinha’.

Dou dois exemplos deste tipo de tradução, um mais antigo e outro mais moderno. O filme ‘McCabe e Mrs Miller’ de 1971 (que já agora afirmo em público que detestei), foi traduzido pelos espanhóis como ‘Los Vividores’. Mas os seguidores desta escola não ligam nem a espanhóis nem a ingleses nem a nada que os valha. Só ligam aos seus próprios egos poéticos. Portanto o filme chama-se ‘A Noite fez-se para Amar’, e é se queres. Se não quisermos eles arranjam outro título como por exemplo ‘Por favor não mexam nas velhinhas’ (não, espera, esse já está tomado…). Já ‘Rushmore’ o filme independente de Wes Anderson realizado em 1998 (que os espanhóis traduziram literalmente por ‘Academia Rushmore’) tem o fabuloso título em português de ‘Gostam Todos da Mesma’. Todos estes tradutores gostam da mesma, é certo. Gostam todos da mesma palermice. Da palermice que paira à roda das suas cabeças.

E para não ser acusado de ir buscar só os exemplos que me convinham, na altura em que escrevi esta crónica pela primeira vez, abri o jornal (leia-se a internet) e comecei a olhar para as estreias recentes. Isto foi o que escrevi:

“Para além do ‘Dear John’ já referido, alegro-me em dizer que ‘Edge of Darkness’ foi traduzido para ‘Fora de Controlo’ (o descontrolo desta gente afecta-me). ‘The Blind Side’ passa a ser ‘Um Sonho Possível’ (eu tenho um sonho de dar uma tareia a estes indivíduos, será possível?). ‘It’s Complicated’ é tido como ‘Amar… é complicado’ (é complicado não acrescentarem uma palavra que seja!). ‘The Imaginarium of Doctor Parnassus’ agora dá pelo nome de “Parnassus - O Homem que queria enganar o Diabo” (alguém me está a enganar mas é). ‘John Rabe’ é um de cerca de 30 filmes que foi traduzido para ‘O Negociador’ (qual é o problema com os nomes de pessoas? Acharão os tradutores que o público não saberá que todas as pessoas têm um nome?). ‘The Backup Plan’ com Jennifer Lopez agora só responde por ‘Plano B…ébé’ (um bom trocadilho mas como no original ninguém pensou nisso não é válido. Se a indústria portuguesa quer ser assim tão esperta que faça filmes bons e não títulos bons!). ‘The Fourth Kind’ é ‘Encontros Imediatos de 4º Grau’ (mais uma tentativa de serem espertos). ‘The Bounty Hunter’ é ‘Ex-mulher procura-se’ (isto porque o Boba Fett é um rapaz extremamente solitário - piada para StarWars nerds). ‘Shrink’, uma palavra complicada que, que eu saiba, significa psiquiatra, transforma-se, por artes mágicas, em ‘A mente dos famosos’. E ‘The Answer Man’ passa a ser ‘Eu e Deus’… algo que se deveu certamente à visita do Papa. 

E quando Herzog finalmente faz um filme com um título à portuguesa: ‘The Bad Lieutenant – Port of Call: New Orleans’, com hifens e tudo, o que é que estes marmelos fazem? Optam por um título bombástico? Utilizam o traço para esticar o prazer da descrição e revelar um pouco mais do filme? Ou escrevem, como quem não quer a coisa ‘Polícia sem Lei’, com toda a tristeza e insipiência que pode haver? Digam-me que houve greve do sindicato nesse dia. Senão não acredito. Se fosse algo como ‘Polícia sem Lei – o massacre de Nova Orleães’ ou ‘Polícia sem Lei – Chamada para a Vingança’ eu compreenderia e aplaudiria. Mas só assim?... E por falar em vingança, estava-me a esquecer de todos os filmes do Stallone e do Chuck Norris. Essas obras-primas que de ‘Delta Force’ passaram a ‘Desaparecido em Combate’ e de ‘Rambo’ passaram a ‘A Fúria do Herói’…"

E agora, em Setembro de 2013, posso fazer exactamente o mesmo exercício. Abro o site e vejo que em exibição esta semana estão filmes cujos títulos se traduzem através dos ensinamentos de todos os tipos de escolas que vos falei.

‘Blue Jasmin’ de Woody Allen manteve-se na escola ‘lei do menor esforço’, e chama-se ‘Blue Jasmin’ em português. ‘Kon-Tiki’ ganhou apêndice: ‘Kon-Tiki: A Viagem Impossível’. ‘Dark Horse’ também: ‘Dark Horse – Diário de um Falhado’. ‘White House Down’ era muito difícil de traduzir não fosse algum novato chamar àquilo ‘Casa Branca de Baixo’, como uma daquelas terras dos anúncios ao Fary. Portanto ‘Ataque ao Poder’ soa sempre bem. Mas se o leitor pensar bem lembrar-se-á de há um ou dois meses estrear um filme chamado ‘Olympus has Fallen’ que foi traduzido por ‘Assalto à Casa Branca’. Não cairia este título como uma luva em ‘White House Down’? Isto de ser precipitado tem destas coisas… Já estou a ver as confusões que se vão gerar daqui. Aqueles senhores que vão à Fnac comprar um filme e que se viram para o funcionário e dizem “estou à procura daquele filme… sabe… com aquele actor… o alto… não me sabe dizer qual é?” vão ter um dia em cheio se quiserem comprar ‘Olympus has Fallen’ ou ‘White House Down’. Se calhar mais vale comprarem logo os dois, para terem a certeza que trazem o certo.

Continuando. ‘The Look of Love’ transformou-se em ‘O império do amor’ porque como toda a gente sabe a palavra ‘Look’ significa ‘império’ em português. Aliás, o nosso Quinto Império é traduzido nos livros estrangeiros como ‘The Fifth Look’. ‘Pain & Gain’ de Michael Bay é agora ‘Dá e Leva’. Qual das palavras significa ‘dá’ e qual significa ‘leva’ cabe ao leitor decidir. Não mostrem isto é a uma criança que está a aprender inglês, porque ela pode ficar confusa. ‘The To Do List’ passa a ser ‘A Lista dos Prazeres’. Mais um título que explica a história. Há uma lista. Mas calma, não é enfadonha, portanto vinde ao cinema, petizes excitados de liceu. É de prazeres! ‘The Heat’ chama-se neste país ‘Armadas e Perigosas’. Começa-me a dar os calores. ‘Two Guns’ passou a ser ‘Dois Tiros’ porque os tradutores souberam de fonte segura que os polícias estavam a disparar armas de 1790, ou seja, armas que só podem ser recarregadas com uma única bala! E até a reposição de ‘Tokyo Story’ nos relembra que ‘Viagem a Tokyo’ é mais uma excelente tradução que se faz por cá. Curiosamente ‘The Butler’ chama-se em português ‘O Mordomo’. Só pode ter sido o Rodrigo Leão a dar uma ajuda na tradução…

Bem, podia ficar aqui para sempre, mas isto já vai longo. Estes senhores são os meus heróis, pois juntaram duas artes que adoro: a escrita, criando todo um novo estilo literário, e o cinema. O sonho da minha vida é um dia poder ser como eles. Ver filmes, escrever, e depois brindar as audiências com motivos alargados de discussão para além do filme e das personagens. O ‘Lost in Translation’ já tem mais de 10 anos, mas toda a gente ainda se refere a ele imediatamente mal se tem uma discussão sobre más traduções de títulos de filmes. Mais gente leu ‘O Amor é um Lugar Estranho’ e lembra-se desse verso, do que leu Saramago. Quantas pessoas conseguem citar António Lobo Antunes? Mas pedindo a qualquer pessoa para citar Afonsinho das Couves (quem? O tipo que traduziu ‘Lost in Translation’), logo gritam em plenos pulmões ‘O AMOR É UM LUGAR ESTRANHO’. 

Contudo, por vezes fico desapontado com estes heróis e boquiaberto perante algumas das suas escolhas. Na altura em que escrevi a primeira versão desta cronica, o então novo filme de Tom Cruise ‘Knight and Day’, com um título contendo um bem conseguido trocadilho, estava prestes a estrear. E estes artistas da palavra, estes magos da prosa, que tantas alegrias nos dão, o máximo que conseguiram produzir desta vez foi ‘Dia e Noite’? Então o título original tem um trocadilho e o português não tem? Como é possível? Será da crise? Estou pesaroso. Preciso de entrar eu na seita para espevitar a coisa um bocadinho.

Profissão de sonho sem dúvida, e aceitarei qualquer oferta que me seja proposta. Faço tudo menos arrancar olhos para conseguir essa posição. Mas só em Portugal. Creio que não me daria bem noutros países de língua portuguesa. Não me daria nada bem no Brasil. Recuso-me a trabalhar num país que traduz ‘The Godfather’ por ‘O Poderoso Chefão’. Uma coisa é inventar com poesia, outra coisa é inventar com brejeirice. Bem me lembro de estar lá numa loja e ver o VHS (sim, já foi há uns anitos) do ‘Sound of Music’. Podemos ficar aqui a discutir a tradução portuguesa ‘Música no Coração’ (não sei quem se foi lembrar da palavra ‘coração’, mas adiante) ou a inacreditável tradução espanhola ‘Sonrisas y lágrimas’, mas mesmo estas traduções empalidecem perante a beldade produzida pelos membros da seita canarinha. O leitor provavelmente não irá acreditar em mim, mas o filme de família ‘Música no Coração’ tem como título no Brasil ‘A Noviça Rebelde’. Só posso deduzir que muito cliente insuspeito já tenha levado o filme para casa a pensar num serão com um bom pedaço de pornografia, e tenha sido apanhado de surpresa com as cantorias de Julie Andrews e da família von Trapp.

Portanto no Brasil não. Se é para traduzir para Português, que seja no país onde a arte já atingiu um patamar sublime de criação. Só não conseguimos baixar o défice nem ganhar uma competição internacional de futebol. Mas conseguimos dar ao grande vencedor dos Óscares de 1945 ‘The Lost Weekend’ o grandioso nome de ‘Farrapo Humano’. Eu sei que é assim que todos nós nos sentimos após um lost weekend, especialmente se for de Queima, mas enfim, esta mudança de nome não vai contribuir muito para a felicidade do país, dos empresários de cinema, dos espectadores e muito menos para a minha… a não ser que seja EU a fazê-la, e a receber por isso!

Fico à espera de um convite.

0 comentários:

Enviar um comentário

Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).

Vídeo do dia

Citação do dia

Top 10 Posts mais lidos de sempre

Com tecnologia do Blogger.

Read in your language

No facebook

Quem escreve

Quem escreve
Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

Visualizações

Seguidores Blogger

 
Copyright © 2015 Eu Sou Cinema. Blogger Templates