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Sobre bons filmes


Há três tipos de bons filmes. Os bons filmes das massas, os bons filmes dos pseudo-intelectuais e os bons filmes.

Por muito que se possa debater esta questão, o cinema é um fenómeno de massas, para o bem ou para o mal. Foi criado como uma fonte de entretenimento (e consequentemente de riquezas), e o público-alvo desse entretenimento (e consequentemente o principal gerador dessa riqueza), não é o artista intelectual filantropo. Nem é o crítico de cinema. Nem é o amador bem intencionado com sensibilidade para a arte. O público-alvo é constituído por massas e massas de pessoas que não amam o cinema, que não o respiram a cada segundo, que não o consomem com cada batida do seu coração, que não têm um vasto conhecimento de géneros, técnicas e estilos, e que se estão marimbando para o estilo visual, para o fluir do argumento, para o facto de o filme já ter sido ou não feito há 50 anos (e melhor), e que só pretendem uma boa dose de entretenimento durante 2 horas. E ainda bem para eles. São eles que dão de comer (e as casas nas Hills) àquela gente toda lá na Califórnia.

Portanto, quem produz filmes, por muita ambição artística que possa ter, quer comer ao fim do mês (e ter a tal casa nas Hills). Ao contrário da crença geral, a maior parte dos filmes não faz (muito) dinheiro. Anda ela por ela na relação custo-receita. Contudo, um filme de grande sucesso pode, com esse lucro, não só providenciar as respectivas casas nas Hills, como igualmente financiar uma série de outros filmes, e compensar o desaire financeiro dos restantes. Com os biliões que o Cameron recebeu das receitas do ‘Titanic’ e do ‘Avatar’, pode, muito honestamente, fazer fiascos de bilheteira até ao fim da vida, sem deixar de ser multimilionário.

E é precisamente aqui que entram os bons filmes das massas. Se eu consigo atrair uma quantidade inusitada de indivíduos crentes a uma sala de cinema, então ainda bem para mim, porque assim sendo o meu filme só pode ser bom… bem, pelo menos para o propósito a que me proponho, que é, sejamos sinceros, fazer dinheiro. E até pode ser que o dito até tenha (alguma) qualidade cinematográfica. Quando tem, todos ficam contentes. O público fica contente, os críticos ficam contentes, os tipos que querem a casa nas Hills ficam contentes, e eu fico contente. É uma festa!

Mas se não tiver, não há problema. A partir do momento em que se compra um bilhete, o negócio está feito. A qualidade é irrelevante. O estimado comprador desse bilhete pode nem gostar do filme. Não interessa, já comprou o bilhete. O estimado comprador pode até nem entrar na sala, pode ter uma crise intestinal e ir para casa. Não interessa, já comprou o bilhete. Antigamente (como quem diz, até ao final dos anos 1980), um filme podia ficar mais de 6 meses nas salas do cinema. Clássicos recentes como o “Regresso ao Futuro” ou “O Silêncio dos Inocentes” ou "Os Condenados de Shawshank" estiveram meses nas salas até serem notados e ganharem momento. Agora, os filmes estão nas salas 3 semanas, e todo o seu futuro rege-se à volta do fim de semana da abertura. Três dias definem o sucesso ou o insucesso de um projecto que demorou 3 anos a conceber. Já não há o descobrir de um filme pelo público. Já não há a palavra de boca. Não, tudo se desenvolve à priori. Deste modo, um filme já é lançado como sendo bom ou mau. Já é lançado um fiasco ou um estrondoso sucesso de bilheteira. Voltando ao exemplo dos bicharocos azuis do Avatar, é fidedigno dizer que antes do filme estrear já o burburinho à volta do filme era colossal, já era obrigatório ir vê-lo, já era o maior e mais espectacular filme de todos os tempos, e quem não fosse vê-lo ia viver uma vida infeliz e miserável. 

Então, a opinião do público em geral (e de muitos críticos infelizmente) fica totalmente condicionada ‘em antes’ (como diz o povo) de ver o filme propriamente dito. Como? Se se mostrar um filme a alguém e se disser, ‘este filme não presta, não ganhou prémio nenhum e eu não gostei nem tu vais gostar’, uma pessoa vê-o sem expectativas  pode ser surpreendida por um ou outro pormenor, mas não os retém, porque só se vai fixar nos aspectos maus de que ouviu falar. Por outro lado se mostrar o mesmo filme e disser ‘este filme é muito bom, é uma obra prima, vai ganhar os Óscares’, uma pessoa vai vê-lo cheia de expectativas e vai-se agarrar ao tal um ou outro pormenor para corroborar a ideia pré-concebida, e não se vai fixar nos aspectos maus, de que nunca ouviu falar, mesmo que este os tenha em demasia.

Mesmo assim, há certamente bons filmes de massas. Servem o seu propósito e divertem. E fazer muitos milhões não é sinónimo de ser mau. O ‘Avatar’ era um filme com fabulosos efeitos especiais, mas cujo argumento era mais batido que uma mousse de chocolate estragado. Mas isso não o impediu de quase ganhar os Óscares. Porquê? Porque era um bom filme das massas, isso não haja dúvidas, e porque foi distribuído como um filme vencedor. E viva o entretenimento.

Do mesmo modo, ‘O Discurso do Rei’, um filme banalíssimo, foi distribuído como a nona maravilha do mundo moderno nestes tempos de crise (a oitava dos tempos de crise foi o ‘Slumdog Millionaire’). Filmes como ‘O Discurso do Rei’ são feitos três ou quatro vezes por ano há cerca de 80 anos (um terço deles com o Geoffrey Rush como mentor). Desde nadadores deficientes a chegarem a medalhistas olímpicos, a pessoas disfuncionais a encontrarem a felicidade, a soldados amputados a arranjarem forças para ir a público falar dos horrores da guerra, a reis gagos a aprenderem a falar, este tipo de filme de inspiração é um dos géneros chave da história do cinema. O que distingue esta obra de 2010 das restantes? Talvez o facto de as pessoas não verem filmes antigos e desconhecerem o género? Talvez o seu set-design, que era fabuloso? Talvez os seus actores, que eram dos melhores ‘in the business’? Poderia ser, mas ‘O Discurso do Rei’ ganhou Óscar de melhor argumento! Argumento! Um argumento que, para além de ser mais batido que uma mousse de chocolate estragado, é compartimentado em 4 cenas que se repetem em círculo: 1) rei chateia-se com professor, 2) cena histórica/revista cor-de-rosa-bastidores-dos-famosos para encher, 3) rei perde perdão a professor, 4) cena a exibir a actual rainha em criança; e volta a 1). No fim do tal filme oscarizado, um Rei gago, nascido num berço de ouro, faz um discurso banal à sua nação (algo que não é mais que a sua obrigação note-se – não é como se fosse um zé ninguém a tentar inspirar um povo, um William Wallace ou um Michael Collins; ele é o rei, e tinha de o fazer, mesmo que não quisesse, tal como se outro qualquer fosse o rei teria de o fazer na mesma, gago ou não, e provavelmente com as mesmas frases, visto que há assessores de imprensa que escrevem estes discursos) – faz um discurso banal à nação, dizia eu, e o filme leva-nos a crer que tudo está bem. Hitler vai conquistar a Europa, Hitler vai matar 6 milhões de judeus?! Não há crise, está tudo bem, estamos salvos, o Rei fez o discurso sem gaguejar…. Patético!

Mas ‘O Discurso do Rei’ foi aclamado em todo o lado como a melhor coisa desde que o homem pisou a Lua. Porquê? Porque, mais uma vez, era um bom filme das massas, mesmo sem ter os bonequinhos azuis.

Um bom filme dos pseudo-intelectuais é um daqueles filmes que são feitos no reverso da medalha dos anteriores. Os das massas têm como objectivos o lucro e o entretenimento. Os dos pseudo-intelectuais não. São animais de festivais, de reputação artística, de expressão egocêntrica. Mesmo assim, não há crime nisso. Cada um expressa-se como quiser. E o cinema é uma forma de arte como qualquer outra. Demy, Fellini, Mizogushi criaram os seus próprios universos e não se saíram nada mal, diga-se de passagem. O crime está quando o filme não é bom e é impingido a um público como uma obra-prima só porque não é convencional. Isso é que eu já não suporto.

A maioria dos filmes não convencionais americanos é independente. Esses não devem nada a ninguém e servem como uma plataforma de partida para actores e realizadores. Como ninguém é conhecido, o filme, por consequência, também não pode ser. E se é bom, é ‘surpreendente’, e não uma ‘obra-prima’. Os filmes não convencionais que são feitos em Hollywood servem para dar reputação aos actores, para que quando entrem nos das massas, a massa a entrar seja maior. E os que resultam são descartados como ‘um bom esforço’ e nada mais, embora muitos deles sejam até muito (mas mesmo muito) bons. Mas quando falamos dos filmes não convencionais europeus… bem, isso é bem diferente. Qualquer estudo visual e de argumento desconexo que surja de Israel, Turquia ou Kosovo já é um ‘exercício belíssimo de união entre o ser e o etéreo’. O filme é julgado por o realizador ser um animal de festivais, por viver num país em guerra, por fazer o filme sem um orçamento estupidamente elevado, e por ter um burro a pastar. Na realidade é julgado por tudo menos pelo filme em si. E isso não está bem.

Há aqui um pequeno pormenor que escapa à maior parte das pessoas. Na América, os estúdios têm que se auto-financiar. Portanto, os filmes das massas têm que fazer dinheiro para que possam subsidiar os filmes artísticos que se possam fazer eventualmente. Mesmo assim, nenhum produtor vai querer injectar dinheiro num filme arriscado, mesmo que esteja concebido como uma belíssima obra, que perdurará para sempre nos anais do cinema. Geralmente, os famosos, quando pretendem fazer estes ‘filmes-fora’, usam o seu nome ou influência para realizar os seus projectos do coração, e muitas vezes fazem acordos com os estúdios para conseguirem levar a sua avante. Já nos anos 1950, John Ford fez ‘Rio Grande’ contra sua vontade para o estúdio lhe financiar a obra-prima ‘The Quiet Man’ de 1952. Mel Gibson usou os infindáveis lucros da ‘Paixão de Cristo’ para fazer ‘Apocalypto’. Até a Selma Hayek e o Kevin Spacey pedincharam a todas as portas e cobraram todos os favores que podiam para fazerem, respectivamente a ‘Frida’ e o ‘Beyond the Sea’.

Contudo, na Europa não há sistema de estúdios. A maior parte dos filmes é realizado a fundo perdido, e o realizador está-se a marimbar se o filme é um sucesso financeiro ou não. O patrocínio dos governos, dos fundos europeus e das televisões estatais que todos os anos são dados aos amiguinhos degeneraram a qualidade de apelo às massas que os filmes poderiam ter. Claro que fizeram aumentar o seu foro artístico, como é óbvio, mas anos e anos deste vício, sem controlo (visto que os fundos aos amiguinhos permanecem sempre, inclusive cá em Portugal), levou progressivamente a estudos cada vez mais egocêntricos de arte que em Hollywood nunca seriam permitidos. O que começou como uma excelente atitude de dar liberdade artística e visual e criar obras de arte cinematográfica chegou ao topo da sua distribuição normal, e agora é sempre a descer, porque embrenhados, desdenharam o mais importante… desdenharam o público. Se eu posso gastar X num filme com total liberdade, sem me preocupar se vou vender 1 ou 100 mil bilhetes, porque o dinheiro gasto não é meu, então eu vou fazer o que me apetece. E os realizadores europeus (e portugueses) estão há demasiado tempo a fazer o que lhes apetece.

E depois, estes filmes morosos, incompreensíveis, visualmente interessantes são sempre uma obra de arte para o crítico. Então se for ‘cinema verité’ (ou um suposto ‘cinema verité’, que nunca é), então… ui, nem se fala! Esquece o argumento, a coerência ou os actores. Qualquer um destes pode ser execrável. Só a atmosfera – sim, é esta a palavra correcta – a atmosfera do filme é que conta, para um filme ser um bom filme dos pseudo-intelectuais. E como adoram arranjar paralelismos filosóficos que o realizador nunca imaginou! E ele, bom menino que é, abana a cabeça em assentamento quando o confrontam com a sua própria magnificência.

Pior, a maior parte dos filmes bons dos pseudo-intelectuais tem um tema. Se é sobre o aborto, é uma obra-prima. Se tem drogados pedófilos é imortal. Se uma mãe adolescente tem SIDA é magnífico. Se tem dois cowboys gays é do caneco. Reitero… PATÉTICO. Um tema não faz um filme, tanto como um actor não o faz, nem um director de fotografia. Se o filme tem dois cowboys gays, mas é mais moroso que um burro perneta, e tem um argumento mais forçado que uma telenovela brasileira de dia de semana à tarde, então não é o facto do tratamento da homossexualidade, nem os momentos em que o filme pausa para mostrar paisagem ao som da guitarrinha do Santaolala que lhe dão a sua qualidade. Salta à vista? Não, não salta! Pois o público em geral (e muitos críticos, infelizmente) só têm atenção para metade das coisas (consequência destes tempos modernos, sem dúvida) e geralmente o tema ofusca qualquer compreensão do resto.

Por fim, há os bons filmes. E não me interpretam mal, os bons filmes podem surgir de qualquer dos meios anteriormente citados. Não é como é feito, nem quando, nem onde, nem por quem, que faz de um bom filme um bom filme. É o que ele é! Pode ser um blockbuster de Hollywood ou um estudo de burros pernetas feito na Pérsia. Se é bom, é bom! Mas não é bom mediante a condição geográfica, o tema ou o nome associado. É bom porque é bom, e o resto é conversa, ou como quem diz….treta.

Quando eu vejo um filme, vejo-o sempre como um ente isolado (sequelas, prequelas e remakes exclusive). E faço o meu julgamento livre de qualquer preconceito, bom ou mau. Não me interessa que não goste de um determinado actor. Não me interessa que o realizador só tenha feito maus filmes até então. Não me interessa que o filme tenha ganho Óscar de Melhor Filme ou a Palma D’Ouro. Não me interessa se o filme foi feito durante a guerra do Kosovo, ou se é o primeiro filme do Afeganistão livre. Não me interessa o que diz o Mourinha ou o Augusto. Eu sou o melhor crítico daquilo que eu gosto. Porque é que o primeiro filme do Afeganistão livre tem que ser uma obra prima, só porque é o primeiro filme do Afeganistão livre. O que é que vão fazer a um crítico se ele admitir ‘desculpem, meus caros amigos, isto pode ser o primeiro filme do Afeganistão livre, mas é uma seca do caneco, e a minha filha de 10 anos com a handycam da minha mulher fazia um filme melhor e mais humano’. Vão-lhe bater? E se ele disser ’desculpem, meus caros amigos, lamento imenso que o filme com os bicharocos azuis tenha ganho 3 biliões de dólares na bilheteira, mas foi apenas uma manobra de marketing muito bem feita, porque o filme, como filme, é tão bom como o “Verdade da Mentira”’? O mais provável é ele deixar de fazer parte do clube dos ‘bons’. E quem é o crítico que, após estar bem aninhado no seu tacho, quer deixar de fazer parte do clube dos ‘bons’? Os críticos que o fazem geralmente acabam em realizadores, ou então morrem de fome debaixo da ponte, ostracizados e esquecidos. E um deles ganhou o Pulitzer. Os restantes só posso deduzir que tenham medo de deixar o poleiro.

Creio que o maior problema deles é verem demasiados filmes modernos. Todas as semanas lá têm que ir ver montes e montes de tralhas que estreiam e que estão a anos-luz da produção cinematográfica de há 50 anos. Portanto, até posso compreender que o que vem do Irão seja uma lufada de ar fresco quando comparada com o remake do ‘Conan o Bárbaro’. E depois aparecem os da Empire com a edição dos seus 500 filmes 5 estrelas e ainda têm a lata de dizer que as décadas de 1990 e 2000 são as que têm mais filmes 5 estrelas. Simplesmente porque a revista tem 20 anos! Mas é óbvio! É mais fácil dar 5 estrelas a outsiders contemporâneos com alguma qualidade que daqui a 10 anos ninguém se lembra que existiram, e que eles só viram porque foram ao cinema em magote com uma resma de convites, do que dar 5 estrelas a um filme mil vezes melhor feito há 60 anos, mas que, como não é daqueles que vem nos livros e foi, por muitos, esquecido, não o viram... Se vissem todos os bons filmes dos anos 1940, davam 5 estrelas a todos sem dúvida. Para informação, há filmes nos anos 1940 para além do ‘Citizen Kane’ e do ‘Casablanca’. Para informação, os menosprezados filmes do Orson Wells (que não têm 5 estrelas na Empire), ou o ‘Rashomon’ do Kurosawa (que, escandalosamente, não tem 5 estrelas na Empire, ou pelo menos não aparece na sua edição dos Filmes 5 estrelas) estão a cazigliões de anos-luz do ‘Discurso do Rei’ (que tem 5 estrelas na Empire).

Eu não vi tudo destas últimas duas décadas, e só vou ao cinema uma vez por semana ou de 15 em 15 dias, porque não me pagam nem me arranjam passes à borla. Mas há duas coisas que eu sei. Primeiro que o meu conhecimento sobre filmes é superior ao de qualquer um desses marmelos. Posso não ter visto os filmes do Irão ou do Afeganistão, mas sei, por exemplo, quem é o Sam Wood (e esse 'gaijo' fazia filmes do caneco). E segundo, sei que um filme é bom porque é bom, e não porque alguém diz que ele é bom. 

Gostava de poder mostrar o ‘O Discurso do Rei’ a alguém que nunca tenha ouvido falar dele, para saber o que realmente pensa, sem ser condicionada. Mas infelizmente não posso.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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