Realizador: Tom Ford
Actores principais: Colin Firth, Julianne Moore, Matthew Goode
Duração: 99 min
Crítica: (Crítica baseada nas minhas notas originais de 16 de Fevereiro de 2010)
Quando um filme é mau, mas a sua temática é importante, isso faz com que o filme se torne bom? É uma pergunta que já fiz várias vezes nestas páginas. A resposta parece-me evidente, mas não parece ser essa a opinião de quem dá prémios e decide, lá nos meandros de Hollywood, o que é bom e o que não é bom. Senão vejamos. Um mau filme de acção é um mau filme. Uma má comédia é um mau filme. Um mau musical é um mau filme. Um mau romance é um mau filme. Até aqui tudo bem. Mas um mau drama social não é considerado um mau filme se o seu tema for socialmente relevante. Parece um paradoxo. Era como se dessem Grammys a todas as músicas cuja letra se referisse a um tema social da moda, mesmo que a música fosse inaudível, fora de ritmo, sem qualquer melodia e ferisse todos os ouvidos. Mas é precisamente isso que acontece no cinema, o que é uma grande parvoíce. Talvez por o cinema ser um meio de propagação de mensagens poderoso e influente. Ou talvez o motivo é mais simples. O choque cómodo, a tragédia cor-de-rosa, a indignação de trazer por casa, vende. Apenas isso, vende bilhetes. ‘O Discurso do Rei’ ganhou o Óscar de Melhor Filme num ano que tinha ‘Inception’ e ‘Black Swan’. É preciso dizer mais?
Uma destas causas que o cinema abraçou na década de 2000 foi a tolerância para com os homossexuais. Até parece que nunca se tinham feito filmes com homossexuais ou sobre a homossexualidade anteriormente. Até no período clássico, dos anos 1930 a 1950, fizeram-se inúmeros filmes com inuendos homossexuais. Claro que não se podia mostrar a homossexualidade no ecrã, pelo menos em Hollywood, mas isso não importava muito. Porque o que importava eram as personagens, e a homossexualidade é apenas uma parte delas. Se o público o entende sem que o filme o mostre abertamente então OK, a dimensão da personagem é percepcionada. De Pasolini até um dos meus realizadores preferidos, Gus Van Sant, personagens homossexuais sempre existiram, dando dimensão aos filmes e reflectindo sobre temas pertinentes, sem contudo se perder a visão daquilo que é importante – a história e as personagens – e sem que estes filmes tenham ganho prémios, grande aceitação ou sido aclamados como os salvadores da humanidade.
Mas mais cedo ou mais tarde, todos os assuntos controversos acabam por ser aceites pela sociedade (chama-se a isso ‘evolução’), e defendê-los passa a estar na moda, o que os torna presa fácil do comercialismo. ‘Brokeback Mountain’ (2005) era um filme péssimo em termos de argumento e construção das personagens, e o seu estilo cinematográfico era digno de uma novela. Mas a divisa "é sobre cowboys gays" garantiu a sua aceitação, ridícula, como grande filme. Uns anos depois ‘Milk’ (2008) de Gus Van Sant tinha muito mais qualidade cinematográfica, mas era vítima dos mesmos clichés e embelezamentos da cultura gay, e por isso falhava. Van Sant tinha sido muito mais subtil, por exemplo, em ‘My Own Private Idaho’ (1991) e até em ‘Elephant’ (2003), mas nenhum destes filmes foi um êxito comercial e nos Óscares. Subscrevo totalmente o que o grande crítico Roger Ebert escreveu na crítica ao filme ‘The Next Best Thing’ (2000). Ebert critica o facto de agora os filmes com personagens homossexuais tratarem sempre a temática da homossexualidade, e prossegue dando o bom exemplo do filme ‘Wonder Boys’ (2000), onde a personagem de Robert Downey Jr. é gay mas isso não condiciona o rumo nem a mensagem do filme. É uma questão da personalidade, mais ou menos complexa, desta personagem. E é tudo, como deveria ser.
‘The Single Man’ surge muito convenientemente na onda de ‘Brokeback Mountain’ e ‘Milk’, como se um conjunto de produtores se tivesse sentado a uma mesa após a cerimónia dos Óscares de 2008 e decidido que era preciso ganhar dinheiro com esta moda, de qualquer maneira. Tanto que, como de costume, assumem que o tema é suficiente para a aceitação do filme, e tudo o resto pode ser descartado. Tanto que as rédeas da realização (e do argumento e produção) foram dadas ao famoso estilista Tom Ford, um homem sem qualquer experiência anterior com o cinema, e muito menos com a realização, e que se preocupa muito mais com a fachada do que com o conteúdo. Na verdade seria injusto da minha parte dizer que ‘The Single Man’ é um mau filme. Não é. Não opta pela arrogância pedagógica preto no branco de ‘Brokeback Mountain’ e portanto tem mais profundidade, mas ao mesmo tempo é um filme que não passa da média e falha por dois grandes motivos. Primeiro porque cai na teia, mais uma vez, de todos os clichés dos filmes comerciais sobre a homossexualidade. Sendo Ford um assumido homossexual isto é estranhíssimo. Ele, de todas as pessoas, deveria saber como evitar essa teia. E segundo porque Ford demonstra grande ambição, mas muita inexperiência visual. O filme não tem a arrogância pedagógica sobre a temática, mas tem uma arrogância pretensiosa em todos, ou quase todos, os planos.
Quando os créditos finais rolaram naquela noite em Fevereiro de 2010, no dia em que fui ver a ante-estreia deste filme acompanhado por uma amiga americana (não é uma referência a Wenders, fui mesmo com uma amiga americana!), ambos partilhamos o sentimento de que se se tivesse filmado exactamente a mesma história, exactamente com os mesmos artifícios, mas focada numa personagem heterossexual, então todos achariam, como nós achamos, o filme banal. Portanto o filme só se torna bom, supostamente, porque é sobre uma personagem homossexual. É isso? Se lutamos pela igualdade entre preferências sexuais, se ser gay é igual a ser straight, então porque é que um filme sobre um homossexual é melhor que um filme análogo sobre um heterossexual? Não é isto uma forma de descriminação positiva, algo que não deixa de ser, como o próprio nome indica, uma descriminação?
‘A Single Man’ conta a história de George (Colin Firth) um professor universitário que perdeu, uns meses antes, o seu companheiro dos últimos 16 anos num trágico desastre de automóvel. O filme retrata apenas os eventos de um único dia (exceptuando os tradicionais flashbacks para dar mais força à história de amor, mostrando-nos o casal); o dia em que decide que se irá suicidar. A primeira metade do filme (a manhã) é claramente a melhor. George reflecte sobre a sua vida passada e metodicamente faz os preparativos para a sua morte, desde organizar os seus papéis a dizer adeus às pessoas de quem gosta. Aqui, muito inteligentemente, os diálogos da rotina do dia-a-dia são reduzidos ao mínimo, e o filme começa a contar a sua história visualmente, através de planos artísticos que demonstram que a melhor característica de Tom Ford, o realizador, é o seu olho apurado para a composição cénica.
Mas como escrevi em cima a sua inexperiência visual faz com que estas cenas tenham uma enorme arrogância pretensiosa. Ou então não é arrogância, é apenas uma exagerada ambição artística. Seja qual for o motivo, não creio que estas cenas, que se assemelham a anúncios de perfume, funcionem. Cada vez que o filme quer ser profundo e intimo acontece sempre a mesma coisa. Todos os sons ambiente são abafados. A velocidade da imagem é reduzida (desde ‘In the Mood for Love’ que não via um drama usar tanto slow motion). Ocorre o zoom in à personagem, ao seu rosto, ao seu andar. E a banda sonora, baseada na secção de cordas (principalmente nos violinos) de uma orquestra, explode como se tivéssemos no terceiro acto de um bailado. Wong Kar Wai utiliza estes artifícios nos seus filmes parca e inteligentemente, para traçar a evolução emocional das suas personagens. Já Tom Ford parece usá-los como os usaria nos seus anúncios de 30 segundos, e com toda a artificialidade inerente. Cena após cena, sem qualquer tipo de critério, Ford usa e abusa deles nas mais variadas situações. Tanto que o espectador já não aguenta quando volta e meia entra mais um ‘plano artístico’. Outra vez? Outra vez slow motion? Outra vez violinos? A fachada é muito bonita, não digo que não, mas onde está o conteúdo, e onde está o equilíbrio? Ford está a pensar na beleza contida da cena em particular e não no todo.
A segunda parte do filme prova o que eu estou a dizer completamente. Depois de uma hora a introduzir a condição da personagem, e a inserir estes planos artísticos de cinco em cinco minutos, a segunda hora não tem um único. A meio, o filme decide que vai começar a usar outras tácticas para ser ‘artístico’ e reflectir a alma da personagem. Quando o ‘drama’ se torna mais sério, quando o dia se aproxima do final e Gorge continua a debater-se relativamente à sua decisão de suicídio, à medida que o espectador tem um olhar mais profundo das suas relações pessoais (a potencial nova paixão sob a forma de um aluno interpretado por Nicholas Hoult, o desejo reflectido pelo gigolo Jon Kortajarena, e a melhor amiga Julianne Moore), o filme deixa de ser lírico e estagna completamente. Porquê? Porque como toda a gente sabe dramas sérios têm de ser ponderados, e Ford segue, ou tenta seguir, esse cliché, algo que quase mata o filme.
Mas há outro cliché pior que infelizmente dá a machadada final. O filme transforma-se num produto banal e mediano, não tanto porque o seu estilo visual é artificial, mas porque abandona a perspectiva íntima de George e decide focar-se quase exclusivamente no facto de ele ser homossexual. Tanto que quase parece justificar a sua depressão não pela sua tragédia pessoal (a perda do grande amor) mas pela estrutura social retrógrada dos anos 1960. Por muito bonito que isto seja em papel e em termos de crítica e activismo social, para mim é aí que o interesse do filme se desvanece. Deixa de ser sobre uma personagem e passa a ser sobre uma causa. Isto não só não se adequa nada ao estilo intimista que Ford tenta dar desde o início como acaba por não conseguir oferecer, por causa disso, absolutamente nada de novo relativamente a outros filmes contemporâneos sobre o ‘activismo gay’. Porque a mensagem de todos é sempre mesma. O que os permitiria distinguir-se uns dos outros seria a força das suas personagens. Quando a sua luta íntima é abafada e substituída pela causa universal, então é como se estivéssemos sempre a ver o mesmo filme…
Colin Firth, munido de uns óculos super fashion, oferece-nos, dentro dos seus moldes costumeiros que não costumo apreciar, uma interpretação suficientemente subtil para até ser apelativa (mereceria talvez mais o Óscar por este filme do que por ‘The King’s Speech’, mas já tinham dado ao ‘homossexual’ Sean Penn no ano anterior por ‘Milk’…). Só detestei que tenham repetido vezes sem conta que George é inglês (juro, é em quase todas as cenas!). É para o espectador americano não estranhar o sotaque de Firth? É para insinuar que os americanos não são gays? Não sei… Já Julianne Moore está irrepreensível como a ex-amante de George (antes de este sair do armário), agora sua melhor amiga, e é o melhor que o filme tem para oferecer. Contudo, confesso que as outras personagens não me convencem. O estudante que troca olhares com George e que mais tarde se encontra com ele e o homem que o tenta engatar na rua, por exemplo, representam uma visão redutora e, digo eu, extremamente preconceituosa da homossexualidade. Quem vê o filme fica a crer que os homossexuais têm uma espécie de radar inato. Um olhar pela rua e George sabe logo quais dos homens vê são gays e portanto quais deve abordar. Um olhar e dois gays sabem que ambos são gays, sabem que querem ir para a cama e, até, que se amam. Sinceramente, isto era a visão hetero dos filmes dos anos 1930! Mas ainda bem que esse ‘radar’ funciona sempre no filme. Se George tentasse engatar um homem straight nesta altura iria preso, ou pior.
No final, o filme mais uma vez demonstra a falta de experiência do seu realizador, em termos de fluidez da narrativa cinematográfica. As imagens satisfazem (como aliás ao longo de todo o filme – grande trabalho de fotografia), mas o conteúdo carece de substância. Consciente da sua superficialidade (apesar do final lírico) o filme parece tentar compensar com mais um lugar comum: a voz off. O filme começa a contar a sua história emocional através de imagens, mas termina dependente da voz off. Mal jogado. Tal como muitas cenas supérfluas ou desnecessárias ao longo de todo o filme (o telefonema que George recebe a dizer que o seu companheiro está morto, por exemplo), a voz off das cenas finais não está ali a fazer nada. Por qualquer motivo fez-me lembrar da versão original de ‘Blade Runner’. Quando o filme tem visuais de cortar a respiração, e as personagens se misturam perfeitamente nesses enquadramentos, para quê ter diálogos? Ao revelar sentimentos que nunca deveriam ser revelados, o filme impede que cada espectador tire as suas próprias conclusões, em vez disso impondo-nos apenas uma: a de Ford.
Tom Ford dá-nos um vislumbre daquilo que poderá atingir quando começar a dominar as artes cinematografias. O seu olho é perspicaz, o seu sentido estético excelente e o design de produção sixties pode ter saído de um catálogo mas é mais que lascivo, é credível. Mas há uma coisa que não resulta nem nunca irá resultar; o retrato do homem homossexual como um herói trágico engrandecido. Sim, ele viveu num contexto em que a homossexualidade era condenável pelo sociedade e até pela lei, mas o filme não deveria ser sobre isso, ou melhor, não deveria depender tanto disso para existir e para contar a sua história. É o que acaba por acontecer, por exemplo, no recente ‘The Imitation Game’. ‘A Single Man’ é um filme sobre a perda de um ente querido. Muito bem. E isso não tem nada a ver com a orientação sexual. A dor é igual quer amemos homens ou mulheres. ‘La stanza del figlio’ (2001), ‘Ordinary People’ (1980), eram grandes filmes sobre a perda centrados na dor daqueles que ficavam. ‘A Single Man’ esteve quase, quase a chegar a esse patamar, mas não consegue, simplesmente porque não quer. Retomo as palavras de Ebert. Pode-se fazer um filme sobre homossexuais sem se estar a martelar o filme todo na tecla de que eles são homossexuais. Dêem aos gays uma hipótese de ter um filme que mostre os seus sentimentos como pessoas normais (que são!), não como uma ‘classe estereotipada’. O desgraçado do George é um ser humano. Perdeu um ente querido. Trabalhem a partir daí.
Mike, gostei bastante do filme. Acabei de o ver e achei "que se se tivesse filmado exactamente a mesma história, exactamente com os mesmos artifícios, mas focada numa personagem heterossexual" o filme funcionaria igualmente. Conta a historia de um luto. Do sofrimento pela ausência do amor. Bem interpretado e com uma estética divinal. Apenas não gostei dos slow motions. Mas gostei bastante.
ResponderEliminarAcredito que sim. Não voltei a rever o filme, portanto não tirei as teimas com uma segunda visualização. Não é desculpa, mas é apenas para lhe dizer que poderá ter razão. Esta crítica é uma fotografia no tempo, neste caso do meu tempo. Em 2010, com 24 ou 25 anos de idade, foi isto que achei do filme e dá para perceber aquilo a que dei importância na altura. Posso rever hoje e ter uma opinião diferente, mais madura. Ou não. Fica a nota mental para o rever.
EliminarÉ bem verdade. Aconteceu-me isso com o "Lost in translation" e com "Eyes wide shut". Com os vi passados a minha opinião foi totalmente diferente. A primeira vez que os vi achei-os fraquíssimos, hoje adoro-os. Faz parte! Abraço
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