Second Life

Ano: 2009

Realizador: Miguel Gaudêncio, Alexandre Valente

Actores principais: Piotr Adamczyk, Lúcia Moniz, Paulo Pires

Duração: 85 min

Crítica: Confesso que, para cinéfilo tão dedicado, devia ter vergonha na cara por saber tão pouco sobre cinema português. Na realidade, o meu conhecimento praticamente termina em 1955, no desfecho da época de ouro do cinema português, onde brilharam actores como António Silva (o supremo), Vasco Santana ou Ribeirinho, e realizadores como Arthur Duarte. A partir daí, é raro o filme português que vi. Ou melhor, já vi alguns, mas nenhum deles me deu vontade de procurar mais, e de me enterrar a fundo nas filmografias dos realizadores. Por essa razão ainda não cheguei lá (não ponho de parte lá chegar um dia) – lá às filmografias de Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Joaquim Leitão ou João Botelho, filmografias essas que me passam quase completamente ao lado.

Isso não significa contudo que ache os seus filmes maus. Se não os vi, não os posso julgar. Mas não me apela, sem dúvida, o pouco que vi e a forma como esses filmes são feitos e promovidos, como já me queixei nestas páginas. Filmes feitos não para o público português, mas para uma elite de espectadores, de críticos e de festivais. Filmes feitos a fundo perdido com subsídios estaduais, e que se venderem 1 bilhete ou 10.000 não fará diferença, pois o realizador, se tiver os contactos certos, receberá o subsidio no ano seguinte para fazer outra obra. Filmes que correm festivais pelo mundo, mas para se ver numa sala de cinema que não seja de Lisboa é complicado, e só são mediatizados se já tiveram sucesso lá fora. Filmes que são só arte e se esquecem que o cinema também tem uma componente de entretenimento. Isto não é crime, obviamente, estou apenas a falar do que me apela ou não apela, pessoalmente.

Mas de vez em quando aparece a outra vertente do cinema português; o cinema completamente vendido, completamente comercial, esse sim que é mediatizado loucamente nos meios de comunicação social – paradas de estrelas sem talento intentas em fazer algum dinheiro jeitoso e sem intenção alguma de ser reconhecidos pela elite e de ganhar prémios em festivais. Este extremo oposto (para quando um cinema português no meio termo?!), teve um pico de popularidade na década de 2000 após o estrondoso sucesso de bilheteira de ‘O Crime do Padre Amaro’ (2005). Fazer todo um filme à volta do corpo de Soraia Chaves é obra. O problema foi a completa e total falta de qualidade do resto. De repente surgiram coisas como ‘Call Girl’ (2007, uma surpresa agradável onde, curiosamente, é Soraia Chaves e o enfoque nela que está a mais), ‘Contrato’ (2009, péssimo, Nicolau Breyner devia ser proíbido de realizar) ou ‘Second Life’, mais uma gigantesca aberração. E antes que o espectador fique a duvidar do meu gosto, a achar que não vejo Manoel de Oliveira para ver isto, eu garanto: vi estes três filmes desta fase, mas absolutamente mais nenhum. Acho que depois de ‘Second Life’, bem que preciso de uma longa pausa do cinema comercial português. Uma longa pausa de várias décadas. Talvez seja esta a altura ideal para explorar o cinema ‘de festival’, ‘artístico’ português.

Eu vi ‘Second Life’ uma única vez (já me bastou), algures em 2009, e é baseado nas minhas notas desse dia que re-escrevo esta crítica. A primeira frase que rabisquei não posso reproduzir, porque contém um palavrão. Digamos, em vez disso, que fiquei bastante zangado. Não por o filme ser mau, disso já estava mais ou menos à espera. Fiquei completamente doente, isso sim, precisamente porque o filme até tinha tudo para ser bom, na ideia de base, na história, na concepção e na realização, mas foi incrivelmente arruinado, digno de ser abandonado num caixote do lixo, porque se vendeu ao comercialismo, e porque as pessoas que o produziram e promoveram não devem fazer ideia (só pode!) do que é cinema, e de como se o faz.

Só um pequeno conjunto de pessoas é que pode andar de cabeça erguida, sem vergonha, depois de fazer um filme destes. Primeiro a dupla de realizadores Miguel Gaudêncio e Alexandre Valente (mas não, há que notar, Alexandre Valente como o argumentista solitário do filme), ambos no seu primeiro e único filme até hoje, que não curtas, documentários ou filmes para a TV. O filme está filmado de uma forma belíssima e com incríveis composições (excepto quando decidem ir de handycam atrás dos actores, quebrando a harmonia e deixando-me um pouco tonto).

Segundo, o compositor, Bernardo Sassetti. Rodrigo Leão é geralmente tido como o melhor compositor português, mas em ‘Second Life’ Sassetti compõe uma das melhores bandas sonoras que alguma vez ouvi num filme português. Quando as coisas são más é fácil criticar. Mas quando são boas, mesmo que inseridas num filme mau, há que referi-las e elogiar.

Terceiro, o actor principal, que, curiosamente (ou não), nem sequer é português (aliás é o único actor estrangeiro do filme); Piotr Adamczyk, o actor polaco que fez de Karol Wojtyla em ‘Karol, the Man who Became Pope’ (2005). Não faço ideia como é que ele veio aqui parar, mas ainda bem que veio. Ou não. O fosso em relação a quem está à sua volta é tão grande que chama mais à atenção do que se fossem todos maus.

E quarto, por incrível que possa parecer, a actriz Cláudia Vieira. Sim, é verdade. Por esta altura era a menina bonita das passereles, das novelas e de alguns filmes comerciais portugueses. Mas se alguma vez ela foi mais do que uma cara bonita, bem, foi aqui. O resto das pessoas, basicamente, não deviam andar a fazer filmes. Ou melhor, quem sou eu para dizer uma coisa destas? São livres para fazerem os filmes que quiserem. Mas para o fazerem não devem, em circunstância alguma, gastar o meu dinheiro como contribuinte português, nem devem esperar que aplauda a sua decisão.

Como disse, o conceito da história até é bom, tal como a realização, a música e dois dos actores principais. Portanto, o leitor que não viu o filme está certamente a perguntar-se como é que se consegue estragar uma premissa destas para criar um filme que é muito, muito fraquinho. A resposta é simples e óbvia: cinema comercial português. O filme está sempre a enganar o público de forma injusta, não se construindo logicamente rumo ao final, mas acrescentando, ao invés, elementos à amálgama como lhe convém, para além de ter os problemas costumeiros do cinema mainstream deste belo pais. E até estes problemas serem resolvidos os filmes vão continuar a ser mais fracos até que os filmes de Rob Schneider (isto é um grande insulto, pelo menos para mim). Então, que problemas são estes? Vejamos.

O mais crasso é a despreocupada venda da alma ao comercialismo, que surge de várias formas. Para começar, o filme é quase todo falado em inglês, um artifício que parece bastante desnecessário tendo em conta a trama, as personagens e os actores. Claro que Piotr Adamczyk não sabe falar português e está a fazer de estrangeiro, pelo que é lógico que falem inglês com ele. Mas não quando outras personagens falam entre si. Estariam à espera de vender o filme lá fora?! Boa sorte com isso. Com alguns destes sotaques, mais valiam estar a falar russo. A questão é que a maior parte dos actores portugueses já tem problemas que chegue para dar expressão às suas falas em português, quando mais em inglês. E a maior parte não domina assim tanto a língua, por isso é notória, cena após cena, a artificialidade, a luta e os erros, só para deitar as frases cá para fora. E infelizmente, muitos destes problemas também atormentam o próprio argumento, escrito por um português (terá recorrido a algum tradutor?). A maior parte dos diálogos são traduções literais do português. Não há erros gramaticais e todas as palavras estão correctas, note-se, mas nenhum inglês falaria desta forma, com esta construção frásica, nem com estas palavras. Isto é inglês de escolinha, não inglês de vida real… Ao menos há aqui uma vantagem. As frases em inglês acabam por ser simples e directas, contrastando claramente com o lixo semi-poético que debitam quando falam português, na boa tradição do nosso cinema moderno. 

O segundo grande problema está no casting. Em Portugal a maior parte dos verdadeiros actores estão esquecidos em pequenas companhias teatrais, lutando por sobreviver. Os actores “de elite” são actores de televisão, ou de peças dos amigos dos amigos, muitas vezes escolhidos pela sua carinha laroca e pelos seus connects e não por qualquer talento intrínseco que possuam. Alguns safam-se e vão demonstrando de vez em quando o que poderiam atingir se não estivessem perdidos em novelas e séries de má qualidade (como Lúcia Moniz - quem viu a naturalidade e à vontade que demonstrou em ‘Love Actually’ nas séries ‘Maternidade’ ou ‘Bem Vindos a Beirais’!?). Mas o resto tem tanto talento como o tipo que vai contar a luz lá a casa. Contudo o pior não esta aí. Ao menos estes actores esforçam-se e não têm culpa dos maus argumentos. O pior destas produções é acharem que vão vender e fazer dinheiro se se encheram de celebridades, figuras públicas portuguesas que estão lá para o show e que obviamente não sabem actuar, estragando qualquer pretensão de qualidade que o filme pretenda ter. Porque o leitor certamente está com pressa de chegar ao fim desta longa crítica, vou dar apenas dois exemplos. Fátima Lopes, a apresentadora de talk shows da tarde, debita frases que nunca mais acabam e não consegue acertar, em termos de actuação, numa única. A sério. Nem uma. E se por essa altura o espectador ainda não saiu a correr da sala, espere até ver a aparição de Malato, o execrável, egoísta e egocêntrico apresentador de televisão, como um inspector da polícia. Eu achava-o mau e convencido como apresentador. Mas isso é porque nunca o tinha visto actuar… Ao menos, o ícone do futebol Luís Figo (sim, também entra, como, imagine-se, um realizador de cinema…) diz apenas uma frase. Graças a Deus. Com tudo isto, não admira que precisassem de ir à Polónia buscar um actor principal…

Outra estupidez pegada é a nudez. O nudismo, mesmo o desnecessário, sempre fez parte dos filmes europeus, e dos portugueses. Desde ‘O Crime do Padre Amaro’ tornou-se uma obrigatoriedade destes filmes comerciais. E ‘Second Life’ não é excepção, embora não haja uma única justificação para que tal aconteça. O que é mais uma vez incrível, já que sexo é sempre fácil de justificar. Duas actrizes lindíssimas (disso não há duvidas), Cláudia Vieira e Liliana Santos, tiram a roupa sem pudor em diferentes alturas do filme, só porque sim. O único motivo que parece existir é os enquadramentos provocantes constarem do trailer. Numa era de descarregamento de filmes pela internet, certamente não é a promessa de nudez num filme que vai levar alguém a comprar um bilhete… Sinceramente, não me importo de ver mulheres nuas num filme (digo isto com toda a honestidade), mas por amor de Deus, arranjem uma desculpa na história para o justificar, qualquer que ela seja.

Ah, a história, é verdade. Há uma história, por incrível que possa parecer, e que até é, como disse no inicio, interessante em conceito. A personagem de Adamczyk celebra o seu 40° aniversário e dá uma grande festa na sua belíssima casa. Temos algum desenvolvimento de personagem (péssimo) dos vários convidados, a caminho da festa e a socializarem lá, e poucos minutos depois o nosso anfitrião já está a boiar na piscina, sem vida. Até aqui bem que podia ser um livro da Agatha Christie, mas escrito pela Margarida Rebelo Pinto. E on cue uma voz off vai enumerando, longa e dengosamente, todas as personagens que estão na casa, oferecendo ao espectador um bocadinho de informação sobre todas elas. Parecia óbvio porque o filme estava a fazer isto (uma lista de suspeitos), mas quando a atenção logo em seguida se foca no morto e o filme praticamente não regressa a estas personagens, o espectador fica a pensar porque é que esta extensa enumeração existiu. A resposta, creio eu, é que assim mais 5 minutos passaram, e como se prova depois, este filme, com pouco mais de  75 minutos, tem imensa dificuldade em chegar à duração de uma longa metragem, e agradece qualquer coisa que o permita encher.  

Mais interessante que a apresentação dos suspeitos, a voz off também nos começa a falar de uma segunda vida (second life), de uma segunda oportunidade, que todas as vidas deviam ter; uma oportunidade de voltar atrás e mudar decisões passadas, de fazer novas escolhas de vida. E aí o filme mergulha num flashback e vamos ao passado conhecer a história de Adamczyk, antes de ele sequer conhecer a maioria das personagens que estavam na festa, e que poderão ter sido o seu assassino. Até aqui, porreiro, a história até fazia o mínimo de sentido e o filme parecia estar a revelar o seu significado. Aqui estava a oportunidade para começar de novo, para recontar uma vida, ou até para o filme levar Adamczyk por outros caminhos, mostrando escolhas diferentes que ele poderia fazer, que levariam a desfechos diferentes da sua vida. Mas não. Não era para ser. Boas ideias, em filmes portugueses geralmente duram pouco, e o filme reverte para a sua formula cliché e comercial.

O filme despacha esta linha argumental em literalmente cinco minutos, e o resto da película, até atingir a uma hora de duração, é composta por cenas “escondidas” na festa fatal. E aqui o filme prova que enganou, injustamente, o seu espectador. Há um sem número de filmes de suspense, mistério ou thrillers cheios de coisas que o espectador não sabe e que lentamente são reveladas. 'Wild Things’ (1998) é o exemplo perfeito do filme que no final vai revelando os segredos em redor de cenas que já vimos anteriormente. Mas há uma diferença fulcral entre aquilo que ‘Wild Things’ faz e aquilo que ‘Second Life’ faz.

Em ‘Wild Things’ vimos as cenas tal como ocorreram. O que não vimos foi o que se passou antes ou depois, ou o que se estava a passar noutra divisão da casa ao mesmo tempo. É um pouco injusto, mas não assim tanto, porque estávamos a assistir à história do ponto de vista de uma das personagens, que não sabia tudo. Agora em ‘Second Life’ vemos uma repetição quase integral das mesmas cenas que vimos no princípio, mas às quais é adicionado uma frase a mais de diálogo (mesmo que no meio de uma conversa a que já assistimos) ou um plano extra de câmara num enquadramento que já conhecemos. Ora isto é enganar o espectador, é esconder estes pormenores só para dar uma surpresazinha foleira. Nós vimos estas cenas no início! Iguaizinhas. A culpa não é nossa que o editor tenha decidido cortar, convenientemente, aquela frase ao jantar, quando nos mostrou todas as outras. Isto não e suspense. É roubo! E do mais mesquinho.

E assim é reconstituído tudo o que se passou nessa noite fatal, até que surge a revelação do segredo, da morte, revelação essa que é extremamente pobre e fraca, completamente desprovida de imaginação. Por esta altura, o filme já tinha usado todos os truques possíveis para conseguir chegar à uma hora de duração, repetindo cenas que adicionavam nada, ou quase nada, à história. Mesmo assim, ainda faz um esforço quase patético para ter mais 10 minutinhos. Estes 10 minutos, finalmente, seguem a história que o filme devia ter seguido desde o princípio. Paralelamente aos eventos da noite fatal, assistimos, de forma telegráfica, a uma vida alternativa que a personagem de Adamczyk poderia ter tido, se tivesse feito escolhas diferentes. Mas mesmo aqui senti-me enganado. Filmes como ‘Sliding Doors’ (1998) ou ‘Lola Rennt’ (1998), mostram diferentes cursos de vida para as personagens de, respectivamente, Gwyneth Paltrow e Franka Potente, de acordo com escolhas diferente que fazem ou acontecimentos fortuitos (por exemplo demorar mais três segundos a chegar à porta do metro e perdê-lo). Mas em ‘Second Life’ estes elementos chave de mudança não provêm do acaso, ou de decisões. Provém de ocorrências sinceramente estúpidas, que caem literalmente do céu, sem grande justificação (tal como a nudez). Dois ou três cursos alternativos são mostrados e o filme terminam semi nostalgicamente.

Depois deste paleio todo o que sobra? O filme é honestamente chato. Promete no inicio, é apimentado com sexo e enche-se de estrelas, mas a história perde logo o gás e a força, embrenha-se em coisas sem interesse e deixa as melhores oportunidades passarem-lhe ao lado. É com um enfado horrível que finalmente lá chega aos 75 minutos de duração. O twist é fraquíssimo, a montagem engana o publico e rouba-lhe todas as grandes emoções que um filme deste género poderia proporcionar, e as interpretações são de fugir, principalmente as das ‘celebridades’. A realização, música e história de base são boas mas infelizmente estes atributos por si só não são suficientes para fazer um filme, ou pelo menos um bom filme. Este filme precisava de actores de jeito, um pouco menos de perseguição desesperada do comercialismo, e mais auto-consciência. Nem todos os filmes almejam o Óscar, e muitos filme fracos têm a humildade para perceber as suas limitações, cingindo-se ao seu género e ao seu público alvo. Aqui, houve demasiada ambição e ficaram todos perdidos nas suas próprias, pseudo-inteligentes, filosofias. Mesmo assim. diz a Wikipedia que o filme teve 90.194 espectadores em Portugal. Já é qualquer coisinha. Mas não o suficiente, e ainda bem. Este foi o último filme da Utopia Filmes, a produtora cujo primeiro filme tinha sido precisamente 'O Crime do Padre Amaro', que tinha tido mais de 380.000 espectadores.

‘Second Life’ representa o pináculo de uma década do cinema comercial português para esquecer, o extremo oposto das habituais obras que o nosso pais vai produzindo. Reitero a minha pergunta inicial. Para quando um cinema português do meio termo?

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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