Realizador: Ron Clements, John Musker, Don Hall, Chris Williams
Actores principais (voz): Auli'i Cravalho, Dwayne Johnson, Rachel House
Duração: 107 min
Crítica: Os realizadores Ron Clements e John Musker são autêntica realeza dos estúdios Disney. Juntos foram instrumentais em transformar os anos negros do estúdio ao longo das décadas de 1970 e 1980 numa segunda idade de Ouro, onde os mais bem-amados clássicos modernos da Disney foram produzidos. O seu primeiro filme em conjunto foi ‘The Great Mouse Detective’ (1986) e seguiram-se ‘The Little Mermaid’ (1989), ‘Aladdin’ (1992), ‘Hercules’ (1992) e ‘Treasure Planet’ (2002). Quando a Disney fechou as portas do seu estúdio de animação tradicional após o injusto fiasco comercial do simpático ‘Home on the Range’ (2004) e se dedicou em exclusivo ao cinema de animação "por computador", foram eles que, com ousadia, as voltaram a abrir, com o último conto de fadas em animação “à mão” que a Disney produziu até hoje: ‘The Princess and the Frog’ (2009). A sua imerecida fraca prestação de bilheteira (pelo menos quando comparada com os blockbusters CGI) de novo levou a um fecho de portas, portanto, quando esta dupla anunciou há um par de anos um novo filme de animação tradicional, todos os fãs de animação em geral e da clássica Disney em particular sustiveram a respiração.
Mas não estava nas cartas que ‘Moana’ (em português, por motivos de copyright, ‘Vaiana’) fosse um filme de animação tradicional. Depois de ‘The Princess and the Frog’, e principalmente depois de ter comprado a Pixar, a Disney fez as pazes consigo própria, como já debati na minha crónica ‘30 de Junho de 2016 – O dia mais negro da história recente da Disney’. Basicamente, a Disney desistiu de tentar fazer filmes ao estilo dos outros estúdios de animação (o que levou a fiascos como ‘Chicken Little’ ou ‘Meet the Robinsons’ ao longo da década de 2000) para encontrar o equilíbrio perfeito entre a nova forma de fazer blockbusters de animação computadorizados e a velha magia fantasiosa do estúdio. ‘Tangled’ (2010) e 'Frozen' (2013) nasceram desta concepção híbrida: bem conseguidos, divertidos e didácticos contos de fadas com desenhos digitais tão exímios que a meio nos esquecemos que não foram feitos à mão. E ‘Big Hero 6’ (2014) e ‘Zootopia’ (2016) provaram que outros géneros de filme podiam ser transladados com o mesmo sucesso para o século XXI sem perder a magia, a qualidade e o humor da velha Disney. Disse e repito: se a morte completa da animação tradicional for inevitável, então que seja por filmes como estes.
"A grande questão que se impunha era se a manobra iria resultar, ou seja, se Clements e Musker teriam o que era preciso para trazer a magia das suas obras anteriores para um mundo de animação tão diferente daquele em que viveram o seu auge (...) Mas após os deliciosos 100 minutos de ‘Moana’ não há qualquer dúvida na resposta. É um estrondoso SIM."
Por isso mesmo seria difícil supor que a Disney deixaria que duas das suas velhas lendas travassem, com um “antiquado” estilo artístico, o estrondoso sucesso comercial (‘Frozen’ e ‘Zootopia’ ultrapassaram o bilião de dólares na bilheteira) e crítico (‘Frozen’ e ‘Big Hero 6’ ganharam o Óscar de Melhor Filme de Animação, e ‘Zootopia’ poderá repetir a façanha este ano) que o estúdio está a viver nos últimos anos. Assim sendo, não foi preciso esperar muito tempo para que uma nova notícia desse conta que ‘Moana’ afinal iria ser produzido em animação digital, e que Clements e Musker iriam ter a ajuda de dois co-realizadores, Don Hall e Chris Williams (realizadores de ‘Big Hero 6’), para a transição.
A grande questão que se impunha era se a manobra iria resultar, ou seja, se Clements e Musker teriam o que era preciso para trazer a magia das suas obras anteriores para um mundo de animação tão diferente daquele em que viveram o seu auge. Era essa mesma dúvida que me apoquentava quando me instalava numa sala de cinema e aguardava pelo início do filme. Mas após os deliciosos 100 minutos de ‘Moana’ não há qualquer dúvida na resposta. É um estrondoso SIM. ‘Moana’ é muito mais do que um filme-Disney. É um clássico instantâneo. É o filme que se coloca destramente no mesmo pote que o genial ‘Tangled’ e o mega-popular ‘Frozen’ (que não considero assim tão genial) para completar uma grande trilogia de contos de fadas de princesas ao estilo moderno, mas que não perderam nenhum do romanticismo, da vivacidade e da magia da Disney clássica. Apenas a transpuseram para as exigências (mais comerciais, menos artísticas) do mundo pós-moderno da animação.
Curiosamente, não foi nada essa a sensação com que fiquei no primeiro quarto de hora do filme. Inicialmente, ‘Moana’ desenrola-se de uma forma muito pouco original, com uma história de base mais do que batida. Após um pequeno prólogo sobre a lenda do semi-deus Maui, contada pela avó de Moana (voz de Rachel House), tida como a “louca” da aldeia, somos enquadrados numa pequena ilha do Pacífico (um cenário que a Disney nunca havia usado nos seus contos de fadas, e que só se vira em ‘Lilo & Stitch’, 2002), onde uma pequena tribo vive a vida despreocupadamente, colhendo os frutos da terra e do mar. Mas Moana (fofíssima em criança, fabulosamente animada), a filha do chefe (tinha que ser, para ser princesa) cresce inconformada com o status quo. A grande lei da ilha; nunca ir de barco para além do recife, conflitua com a sua paixão pelas ondas e pelo mar, suportada pela avó. E, como não podia deixar de ser, quer muito mais do que o destino que lhe foi traçado (nunca sair da ilha e um dia suceder ao pai como chefe da aldeia, numa infindável rotina monótona), e anseia mais aventura, mais emoção e seguir os desejos do seu coração rumo ao mar, e à felicidade.
"É muito mais do que um filme-Disney. É um clássico instantâneo. É o filme que se coloca destramente no mesmo pote que o genial ‘Tangled’ e o mega-popular ‘Frozen’ (que não considero assim tão genial) para completar uma grande trilogia de contos de fadas de princesas ao estilo moderno, mas que não perderam nenhum do romanticismo, da vivacidade e da magia da Disney clássica."
Enjoa que esta abordagem a Moana como personagem seja exactamente igual à da Pequena Sereia, de Bela (I want adventure in the great wide somewhere), de Pocahontas (incluindo a comunhão com a natureza), de Rapunzel ou de Elsa. Enjoa a conversa costumeira de “há mais para além desta vida do que as convenções te dizem”, embora tenha de admitir que é um mal necessário para o público a que se destina, continuamente jovem e que em boa verdade não terá visto os filmes da Disney de 2000 para trás. E por fim enjoa, e muito, que se opte pela preguiçosa temática do ‘escolhido’ que, como já mencionei noutras críticas, invadiu o cinema moderno. Pocahontas, Mulan, a Pequena Sereia, Bela, todas viveram as suas aventuras e demonstraram a sua força, pela perseverança do seu carácter, pela riqueza da sua alma. Nenhuma era a "escolhida", nenhuma obtinha sem esforço as coisas que tinha de alcançar. Mas, na deturpação do ideal de Luke Skywalker, uma gigantesca série de heróis modernos, de Harry Potter a Kung Fu Panda, são os “escolhidos” e portanto têm vantagens em relação aos demais, não porque lutam para isso, mas como uma pré-condição da sua existência. A forma como o mar decide literalmente proteger Moana (por exemplo levantando-a quando ela está em vias de se afogar) é um exemplo disso. "O mar escolheu-a", repete-se várias vezes ao longo do filme. Que moral é que isto dá às crianças e jovens que não têm esta predestinação divina?
Contudo, se a concepção da trama enjoa, a concretização visual do filme fascina. Logo desde o início, o toque de génio dos realizadores e o seu gigantesco background na animação tradicional vem ao de cima. ‘Moana’ possui uma brilhante animação digital, incrivelmente nítida, extremamente colorida e fabulosamente naturalista; tanto que, mais do que em ‘Tangled’ e ‘Frozen’ (provavelmente também pelo enquadramento cénico mais belo) muitas vezes mal se nota de que é, efectivamente, animação por computador. Outro grande motivo de destaque é o tom que o filme estabelece e que mantém até ao final. Primeiro há a forma humorística como apresenta a história, num singelo mas engraçado timbre que não procura a piada desesperadamente, mas que a vai tendo com à partes sublimes. Uma das criações mais inspiradas é o sidekick animal que é dado a Moana, uma espécie de galinha choné que vai oferecendo escapes cómicos ao longo de toda a trama com a mesma frescura de Scrat no primeiro ‘Ice Ace’, antes de se tornar uma paródia de si próprio.
E depois há que destacar a partitura musical. Clements e Musker trabalharam com o grande génio do estúdio, Alan Menken, em todas as suas grandes obras, e depois com Randy Newman em ‘The Princess and the Frog’, que ofereceu um tom mais jazzístico adequado ao ambiente de Nova Orleães. Em ‘Moana’, enriquecem o filme com as canções do samoano Opetaia Foa'i e de Lin-Manuel Miranda (um jovem prodígio da Broadway – é dele o show do ano ‘Hamilton’ – e que a Disney está a tentar fazer desabrochar como o novo Menken), e a banda sonora instrumental do veterano compositor disneyano Mark Mancina. O resultado é um sucesso evidente. Um glorioso e contagiante tom pop sinfónico com travos havaianos inunda o filme, e vai transitando de showstopper em showstopper até culminar no single ‘How Far I’ll Go’ (e respectivos reprises subsequentes); um hino de emancipação jovem nas pisadas de ‘Let It Go’ que é interpretado com um fulgor entusiasta pela jovem estreante Auli'i Cravalho (um achado após um longíssimo processo de casting).
"Se a concepção da trama enjoa, a concretização visual fascina. (...) ‘Moana’ possui uma brilhante animação digital, incrivelmente nítida, extremamente colorida e fabulosamente naturalista (...) Outro grande motivo de destaque é (...) a forma humorística como apresenta a história, num singelo mas engraçado timbre (...) E depois há que destacar a partitura musical (...) que vai transitando de showstopper em showstopper até culminar no single ‘How Far I’ll Go’ "
Assim embalado, o filme livra-se da sua pior parte, o enquadramento, e entra em plena força na aventura, onde tudo se conjuga na perfeição para oferecer uma fantástica experiência ao espectador jovem (e a todos os que no seu coração nunca deixaram de o ser). Quando as águas em redor da ilha deixam de dar peixe, e as árvores deixam de dar fruto, os habitantes da ilha percebem que a natureza está a morrer. As lendas referem se a uma jóia, um artefacto que dava vida à natureza, que contudo foi roubado de uma ilha mágica pelo semi-deus Maui. Reza a mesma lenda que um dia um ‘escolhido’ irá encontrar Maui e obrigá-lo a repor o artefacto roubado no seu devido local. Instigada pela avó, que a convence de que ela é a escolhida pelo mar e que lhe revela o passado de navegadores exploradores dos ilhéus que o pai lhe havia escondido, Moana toma a si essa tarefa. Fugindo num pequeno barco, lança-se à aventura oceano fora para encontrar Maui e o obrigar a repor a ordem na natureza (engraçado contudo que o filme não mostra mais os seus pais até que ela volta no final do filme; terão ficado preocupados, não? Coitados…).
Assim sendo, ‘Moana’ toma o surpreendente contorno de um ‘road movie’ aquático. Moana consegue descobrir o paradeiro de Maui (voz de Dwayne Johnson), que apresenta a sua personalidade egocêntrica (mas de uma forma simpática que portanto cedo se vai derreter) com a viciante música ‘You’re Welcome’, e após algumas atribulações consegue meio convencê-lo, meio chantageá-lo, a acompanhá-la nesta aventura. Mas o que é curioso é que essa aventura, se virmos bem, é totalmente linear, com apenas três pontos de paragem. Primeiro sofrem o ataque dos belicamente fofos e estranhamente hilariantes cocos piratas (sim, cocos piratas!). Segundo, viajam até ao reino dos monstros, onde Maui procura recuperar a sua foice mágica, roubada por um gigantesco lagostim dourado que lhes canta a melhor música do filme: a extremamente bem construída ‘Shiny’, que fica ainda melhor através da voz do glorioso Jemaine Clement (uma delícia reencontrar este músico/cómico que já não ouvia há alguns anos). E terceiro, finalmente, chegam à ilha mágica guardada pelo misterioso Monstro da Lava, que têm de ultrapassar para repor a jóia no seu devido lugar…
E esta aparente linearidade é curiosa porque primeiro está imbuída de uma incrível, mas enganadora simplicidade, e segundo porque é uma manobra tão distinta dos actuais filmes de animação, que geralmente enchem os seus argumentos de ramificações e mais ramificações, atirando tudo e mais alguma coisa para o olhar dos miúdos, não vão eles parar para pensar e descobrir que o filme é oco. Mas não é uma manobra tão atípica desta dupla de realizadores, nem aliás das grandes obras clássicas de animação desde ‘Snow White’ que, se o leitor se recorda, proliferava perfeitamente somente assente numa história que todos os miúdos e graúdos conseguem resumir em duas linhas. E de facto, em ‘Moana’ não há necessidade nenhuma do filme se perder com à partes, e por isso pura e simplesmente não perde. Num vasto oceano e no espaço confinado de um barco, esta odisseia aparentemente simples acaba por revelar ter, com incrível naturalidade, uma enorme profundidade. A trama tem ao mesmo tempo toda a excitação que é necessária (a luta contra as ondas, contra o tempo, contra as lendas, e contra si próprios) mas também todo o espaço para que as suas duas únicas personagens eventualmente se ajudem uma à outra a percorrer os respectivos arcos emocionais. Moana terá um ‘coming of age’ para encontrar o seu lugar na sua família e na sua tribo, e Maui redimir-se-á da sua má acção passada para reencontrar o seu lugar entre as lendas e os deuses…
"‘Moana’ toma o surpreendente contorno de um ‘road movie’ aquático (...) Num vasto oceano e no espaço confinado de um barco, esta odisseia aparentemente simples acaba por revelar ter (...) uma enorme profundidade. A trama tem ao mesmo tempo toda a excitação que é necessária (...) mas também todo o espaço para que as suas duas únicas personagens eventualmente se ajudem uma à outra a percorrer os respectivos arcos emocionais"
Claro que há coisas que talvez sejam excessivamente infantis e não resultam tão bem. A personalidade assertiva de Moana a que já aludi, sempre ciente de que é a escolhida de uma forma que chega a ser pedante, é um enervante sinal dos nossos tempos, e um triste recordar daquilo que são os valores da nossa actual juventude. As “visões” que Moana vai tendo, especialmente as relativas aos seus antepassados, e que ajudam a explicar o argumento quer a ela quer ao espectador, surgem convenientemente de forma algo incoerente. A “discussão” entre Moana e Maui antes do último acto, para criar o costumeiro atrito, é super-forçada e só quem nunca viu um filme na vida é que não deduz o que se vai passar no final. E por fim, a excessividade pixaresca da parte mais intensa do clímax (tal como o altamente desnecessário monstro da neve em ‘Frozen’) é totalmente descabida e só está ali para apelar ao jovem masculino que, pensam os produtores, se poderá enfadar de ver um filme de ‘princesas’.
Mas todos estes pontos menos conseguidos acabam por ser irrelevantes no cômputo geral. Embalado pelas grandes canções que todos os espectadores sairão da sala a cantarolar, e com um intenso e ritmado passo do primeiro ao último segundo, ‘Moana’ tem sempre alegria e (literalmente) animação de sobra, engraçadas personagens secundárias que nunca perturbam o fio condutor da história, e uma mensagem suficientemente interessante de amor à natureza e de girl power, que é dada mais com sobriedade do que com melosidade. É verdade que já não vivemos numa era em que os clássicos da Disney possam existir num mundo cor-de-rosa de princesas. Mas é verdade também que a Disney não vai lá se se aninhar no espectro oposto da escala, e apostar em aventuras digitais sem o sabor da mágica fantasia a que nos habituou desde sempre. Filmes como ‘Tangled’, ‘Frozen’ e agora ‘Moana’ são o meio-termo que, à falta de melhor (leia-se um regresso da animação “à mão”) era mais do que necessário.
"Há coisas que talvez sejam excessivamente infantis e não resultam tão bem (...) Mas acabam por ser irrelevantes no cômputo geral. Embalado pelas grandes canções (...) ‘Moana’ tem alegria e animação de sobra, engraçadas personagens (...) e uma mensagem suficientemente interessante de amor à natureza e de girl power, que é dada mais com sobriedade do que com melosidade. (...) É um filme divertido e dinâmico, mas acima de tudo é um filme Disney."
‘Moana’ é um filme divertido e dinâmico, mas acima de tudo é um filme Disney. Um filme da Disney moderna, por suposto, mas isso não implica que seja uma má Disney ou uma Disney que já não possamos amar tanto como anteriormente. Era preciso este toque dos velhos mestres, Ron Clements e John Musker, para nos recordar precisamente isso. Era preciso essa faísca para nos recordar que a chama da Disney clássica ainda está aqui, viva, intensa, em pleno século XXI. E essa é a maior dádiva que ‘Moana’ pode dar a esta geração de fãs da Disney, e é isso que mais temos de agradecer. Desfrutei muito de ‘Moana’, não por ser uma obra-prima da animação, mas por ter essa alegria contagiante, essa magia que no nosso coração sabemos que só pode vir de um único lugar: dos estúdios da Disney. Para desfrutar e viver, com miúdos e graúdos, por muitos anos que estão para vir.
0 comentários:
Enviar um comentário
Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).