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Wild

Ano: 2016

Realizador: Nicolette Krebitz

Actores principais: Lilith Stangenberg, Georg Friedrich, Nelson

Duração: 97 min

Crítica: Nos últimos dias tenho publicado freneticamente as críticas dos filmes do Projecto Scope 100, um projecto que deu a oportunidade a cem cinéfilos não profissionais portugueses de ver, criticar e discutir sete filmes em duas semanas, de forma a escolher aquele que irá ser lançado comercialmente em Portugal no próximo ano. Depois de ter passado pelo belga ‘Baden Baden’, o grego ‘Suntan’ (o melhor até agora) e o estónio ‘Ema’, chega a vez de viajarmos até à Alemanha e ‘Wild’, um dos filmes mais cotados, de acordo com a crítica internacional, desta selecção. 

‘Wild’ é realizado por Nicolette Krebitz (apenas ‘Suntan’ até agora foi de um realizador masculino, o que não deixa de ser uma constatação interessante), uma galardoada actriz alemã (por exemplo ganhou um prémio de Melhor Actriz Alemã em 2004) e que já havia realizado dois filmes: ‘Jeans’ (2001) e ‘Das Hertz ist ein dunkler Wald’ (2007), ambos vencedores de prémios em Festivais menores. Com ‘Wild’, Krebitz despertou ainda mais atenções, ao ser finalista dos festivais de Sundance e Roterdão. E sem dúvida alguma, há bons motivos para isso. ‘Wild’ é uma poderosa fantasia visual que vai lentamente desconcertando o espectador sem contudo ser desconcertante. Sobriamente filmado, pode não ser um marco da técnica cinematográfica, mas é um triunfo do princípio basilar do cinema como forma de pura expressão artística.

"‘Wild’ é uma poderosa fantasia visual que vai lentamente desconcertando o espectador sem contudo ser desconcertante. Sobriamente filmado, pode não ser um marco da técnica cinematográfica, mas é um triunfo do princípio basilar do cinema como forma de pura expressão artística."

‘Wild’ centra-se, tal como todos os filmes deste projecto que vi até agora, na odisseia emocional de uma única personagem à margem das convenções. A tímida Ania (Lilith Stangenberg numa interpretação forte assente maioritariamente na presença, visto que os seus diálogos são apenas balbuciados) tem uma existência apagada numa descaracterizada cidade alemã. A conversa com a muito mais vívida irmã no skype numa das primeiras cenas é notória para demarcar a diferença entre ambas, e no seu emprego numa empresa, onde é técnica de informática e serve cafés ao seu chefe Boris (Georg Friedrich), deixa-se estar à parte dos restantes trabalhadores. Na noite da festa da empresa, fica à margem dos engates alimentados pelo álcool, e no dia seguinte recusa os avanços do próprio chefe quando vão juntos visitar uma fábrica de roupa. 

Curiosamente, a sua ligação emocional mais forte, tal como em  ‘Baden Baden’, é um familiar hospitalizado, neste caso o pai. Ela recusa que a irmã mexa nas coisas do pai quando esta vai buscar os seus últimos pertences para ir viver com o namorado. Mas o que realmente a começa a fascinar mais é o lobo (fabulosamente filmado, sem CGI) que encontra no atalho pela floresta que percorre diariamente. A existência de Ania começa a ficar lentamente consumida pela obsessão pelo lobo e as velhas lendas de folclore que o rodeiam. Numa cena belíssima filmada à noite apenas com tochas como iluminação, Ania, com a ajuda do sedativo que rouba no hospital, de todas as suas roupas (que destrói para formar uma corda, abandonando assim simbolicamente os pertences materiais) e das trabalhadoras asiáticas da fábrica que havia visitado, consegue capturar o lobo, que arrasta para sua casa e fecha no antigo quarto da irmã.

É aí que toda a sua existência, bem com a sua relação com Boris e a forma como lida com a doença do pai, vão ser cada vez mais dominadas pelo elo de intimidade que forma com aquele perigoso ser que habita a sua casa e que aos pouco aprende a confiar nela. Numa descida para a insanidade soberbamente gerida, que inevitavelmente trás à memória a de Catherine Deneuve em ‘Repulsion’ (1965) de Polanski, essa influência vai alterar todo o seu comportamento, instigando as suas fantasias (principalmente as suas fantasias sexuais) e a sua definitiva emancipação interior, até que poderá (ou não) finalmente atingir uma latente sensação de liberdade, física e espiritual que, somos levados a crer, sempre desejou.

"'Wild’ é um filme de poucos diálogos que pouco interessam. Toda a riqueza desta obra se passa ao nível visual e emocional, e os elementos cinematográficos – a banda sonora (...), a montagem eficaz e principalmente o estilo visual; estão cuidadosamente trabalhados para intensificar, cena a cena, os sentidos e a reflexão do espectador."

‘Wild’ é um filme de poucos diálogos que pouco interessam. Toda a riqueza desta obra se passa ao nível visual e emocional, e os elementos cinematográficos – a banda sonora (ou na maior parte das cenas, o vazio provocado pela ausência dela), a montagem eficaz e principalmente o estilo visual; estão cuidadosamente trabalhados para intensificar, cena a cena, os sentidos e a reflexão do espectador. A câmara solta, que se agarra ao rosto ambíguo da beleza selvagem de Ania (tão próxima, obviamente, da do lobo), possui uma naturalidade intrínseca que fascina, mesmo que isso seja também consequência de algum amadorismo do baixo-orçamento da produção. Mas Krebitz consegue ser exímia em transformar essas desvantagens em vantagens.

A fotografia, por exemplo, parece estar claramente, com autoconsciência, a brincar com esses contrastes. Começa, nas cenas iniciais, por ter pormenores de algum amadorismo (serão propositados?) quando Ania ainda está agarrada à “realidade”. Numa das primeiras cenas, a título de exemplo, o reflexo da luz do vidro do seu gabinete incide-lhe tanto na cara, quando ela se mexe para um determinado sítio, que mal a conseguimos ver. Mas depois a imagem vai-se tornando cada vez mais definida e nítida, e a câmara cada vez mais assertiva, quando Ania mergulha na sua “fantasia”, tão gélida e tão realista. Continuamente, o espectador é levado para a fina linha que separa realidade e ficção, vida e sonho, conquista e desejo, até que lentamente as barreiras vão ruindo e ambos os extremos se confundem. 

O segredo para este filme ser tão profundamente intenso é precisamente a sobriedade e segurança que Krebitz demonstra na gestão das cenas. Todo o filme assenta na credibilidade do arco emocional de Ania, e essa credibilidade é atingida não porque acreditamos na dimensão metafórica ou na possibilidade real da ocorrência destes eventos (não é esse o objectivo), mas porque há uma enorme força na forma subtil como a história é narrada. Independentemente de algumas cenas mais ousadas (por exemplo quando Ania imagina um momento de intimidade com o lobo) nunca há a tentação de chocar por chocar, de provocar por provocar, nem nunca o filme se desvia do seu propósito, que é envolver o espectador nesse mudo grito gutural que parte de Ania e consome a sua existência. Podemos encontrar um sem número de interpretações alegóricas válidas para os eventos. Podemos falar da relação do homem com a natureza, do anonimato da sociedade, da banalização da sexualidade, do desejo tribal de voltar para a animalesca forma de vida de onde a humanidade proveio. Mas, paradoxalmente, isso, ou focar exclusivamente nas partes mais chocantes como a tal cena íntima, seria interpretar ‘Wild’ de uma forma totalmente redutora. Porque sinceramente, para mim, estas cenas diluem-se no verdadeiro conteúdo no filme, só lhe dão algum contexto e talvez uma ponta de desafio e ousadia que a realizadora provavelmente não se conseguiu conter de dar, mas não se comparam à profundidade emocional que de forma minimalista existe nesta obra.

"Todo o filme assenta na credibilidade do arco emocional de Ania, e essa credibilidade é atingida (...) porque há uma enorme força na forma subtil como a história é narrada. Independentemente de algumas cenas mais ousadas (...) nunca há a tentação de chocar por chocar (...) nem nunca o filme se desvia do seu propósito, que é envolver o espectador nesse mudo grito gutural que parte de Ania e consome a sua existência"

No fundo, o filme é uma tour de force emocional, extremamente bem filmada (senão tecnicamente, pelo menos do ponto de vista sensorial), que narra a odisseia fantasiosa de uma fortíssima personagem feminina cujas atitudes são vistas pela sociedade como dementes. Num mundo real não temos dúvidas que ela é demente, mas emocionalmente talvez não tenhamos tanta certeza e aí está a réstia de genialidade da mensagem desta obra. Da perspectiva de Ania, da sua deturpada perspectiva, as suas atitudes insanas (e cada vez mais chocantes quando nos aproximamos do final do filme) fazem todo o sentido, e são essenciais para que consiga ultrapassar as suas próprias barreiras, as suas próprias inibições. E não será isso tão válido num mundo cada vez mais descaracterizado? Há o risco de ir longe de mais, e Ania vai claramente longe de mais, quebrando todas as convenções, cedendo a todos os desejos, largando a humanidade pelo instinto animalesco. Mas isso não faz dela a mais sã de todos e do espectador o seu maior cúmplice? São apenas especulações do crítico. O filme, esse, mantém-se com a sua sobriedade até ao último segundo, nunca pedante, instigando emoções e reflexões com imagens inspiradas, como só a verdadeira arte consegue fazer.

Sinceramente, não estou muito seguro que ‘Wild’ seja uma obra-prima cinematográfica. Tem notórias falhas técnicas e é extremamente singelo na dimensão da sua narrativa. Mas é, sem sobra de dúvidas, o filme mais ‘artístico’ da selecção de filmes deste projecto (ou pelo menos dos quatro que vi até agora). E quando digo artístico não me estou a referir a uma qualidade egocêntrica ou artificial (como aquela que ‘Baden Baden’ desesperadamente quer ter). Estou-me a referir a uma qualidade intrínseca na obra, na visão da realizadora e na forma como a materializa. Estou-me a referir ao cinema como um meio de expressão emocional, muito além da sua mera qualidade de entretenimento ou de contar uma boa história. Estou-me a referir ao cinema como uma experiência sensorial, que é vivida e sentida de ambos os lados da tela, sem que necessariamente tenha um propósito para além desse sentimento, dessa capacidade de gerar emoções e reflexões no espectador. E isso é tão válido como qualquer outra forma de expressão cinematográfica, mas só resulta se for sincera, se não for forçada. Em ‘Baden Baden’ não resulta e o que sobra é um retrato egocêntrico e pedante. Já em ‘Wild’ resulta, porque apesar de não ser um filme directo, onde nem tudo tem necessariamente uma explicação (mesmo que seja uma explicação alegórica), possui uma pureza na forma como nos dá um vislumbre da odisseia desta personagem, na forma como entrecruza metaforicamente realidade e fantasia.

Por isso mesmo, ‘Wild’ é um filme com um enorme potencial de longevidade. O seu conteúdo, visual e emocional, não é estático no tempo, precisamente porque não é uma alegoria vincada pela actual conjuntura. É uma intemporal história de humanidade, porque os desejos, os medos e as fantasias dos homens são eles próprios intemporais. ‘Wild’ pode não ser uma pungente obra dramática, mas pica o iceberg da condição humana de uma forma extremamente intensa. O título diz tudo. Ania iniciou perante os nossos olhos o processo de retorno para o estado selvagem. Talvez esse processo não seja o melhor que a realizadora poderia ter escolhido, não tanto pela viagem de Ania em si, mas principalmente ao nível das suas relações com os que a rodeiam, que poderiam ser mais exploradas ou até totalmente diferentes (a irmã, o pai e o chefe podiam assumir outras personalidades mais interessante sem afectar o objectivo da obra). Mas para um filme independente de baixo orçamento destinado aos meios arthouse, a simples beleza poética que aqui existe, mesmo aquando dos momentos mais chocantes que mexem com o nosso status quo, aliada à forte realização e à subtil e eficaz cadência da montagem, mais do que compensam.

"Wild’ é um filme com um enorme potencial de longevidade. O seu conteúdo, visual e emocional, não é estático no tempo, precisamente porque não é uma alegoria vincada pela actual conjuntura. É uma intemporal história de humanidade, porque os desejos, os medos e as fantasias dos homens são eles próprios intemporais. Pode não ser uma pungente obra dramática, mas pica o iceberg da condição humana de uma forma extremamente intensa."

Se o filme fosse feito por um dos grandes mestres; um Godard, um Polanksi, um Felini, já teria ganho o seu cantinho de imortalidade. Se fosse contemporâneo de ‘Repulsion’, ainda hoje seria recordado. Eu disse há uns dias que ‘Suntan’ era o melhor filme que tinha visto datado de 2016. Bem, ‘Wild’ tira-lhe o pódio. Porque ‘Suntan’ é apenas um grande filme e um grande estudo de uma personagem. ‘Wild’ é um grande filme, um grande estudo de personagem, mas é mais uma coisa muito importante: também é arte, arte cinematográfica. E isso é ainda mais raro de encontrar nos dias de hoje.



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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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