Uma das coisas que menos gosto no cinema moderno é a constante necessidade dos editores cortarem continuamente os planos. O chamado Average Shot Lenght (ASL), ou seja, a duração de cada plano, tem diminuído a passos largos ao longo de toda a história do cinema. De acordo com o historiador James Cutting (um nome apropriado!) em 1930 a duração média de um plano era de cerca de 12 segundos. Agora é de 2,5 segundos, uma incrível redução.
É com enorme prazer que revejo, por exemplo, os antigos musicais de Hollywood, onde somos brindados com longos planos de corpo inteiro de Fred Astaire ou Gene Kelly a executar soberbas coreografias de dança. Os musicais de hoje, ou filmes como ‘Step Up’, mostram as suas cenas de dança no chamado estilo-de-montagem-MTV, com cortes e mais cortes em que vemos um braço a rodar, uma perna a mexer, meio corpo a rodopiar, e o cérebro fica com a ilusão de que se passou ali qualquer coisa, quando na realidade não vimos absolutamente nada. São estas pessoas realmente bons dançarinos, ou é tudo um truque de montagem?
Do mesmo modo, as cenas de acção agora são largamente, pelo menos na minha óptica, incompreensíveis. Um punho fechado, uma faca no ar, dois corpos a caírem ao chão, uma boca a arfar, mas nunca ser vê, efectivamente, um movimento em contínuo. Nunca se percebe quem bateu em quem, e de que forma. Passei ‘Bourne Ultimatum’ inteiro, por exemplo, sem compreender a fluidez de uma única cena de acção. Recordamos com saudosismo cenas brilhantes como a que Hitchcock filma em ‘Torn Curtain’ (1966), quando Paul Newman mata o agente inimigo e sentimos a dificuldade que é lutar e matar alguém. Recordamos o brilhantismo dos movimentos coreografados de Bruce Lee. E lamentamos que o cinema moderno tenha perdido isso só porque se decidiu que quanto mais cortes um filme tem, mais dinâmico, intenso e apelativo será. Não sei porquê. É só ver filmes com frequência para comprovar que isso não é verdade.
Mas depois temos o outro lado da moeda, o chamado plano longo, como uma paradoxal antítese. O dicionário cinematográfico define ‘plano longo’ como um plano sem cortes, geralmente obtido através de um ‘dolly shot’ (a câmara agarrada a uma grua ou deslizando sobre carris) ou de um ‘Steadicam shot’ (a câmara aos ombros de um operador seguindo a acção e os actores), que dura largos minutos e claramente se destaca do ritmo normal, ou do restante filme ou dos filmes em geral. Outrora, o cinema por norma mantinha planos por largos segundos, deixando os actores falar e actuar livremente e dando tempo ao espectador para sorver a cena, os ambientes, as interpretações. Quando se recorria ao (mais) longo plano era por motivos específicos; necessidade (cortar custos, tal como acontecia nos primórdios do cinema); acentuar a tensão de uma determinada cena, prendendo o espectador à cadeira (veja-se o que Orson Welles faz no início de ‘Touch of Evil’, 1958); ou acentuar o dramatismo real da história, aproximando o filme do espectador ao construir-se como uma peça de teatro (tal como Hitchcock faz em ‘Rope’, 1948).
Mesmo assim, havia um limite para o plano longo, estabelecido pela capacidade de filme que as câmaras conseguiam conter. Em ‘Rope’, Hitchcock tenta dar a ilusão de que o filme foi filmado num único take, mas como apenas podia filmar 10 minutos de cada vez, nota-se perfeitamente quando faz os cortes, por mais discreto que procure ser. Seis décadas depois, ‘Birdman’ (2014) oferece a mesma ilusão de um filme inteiro sem cortes com muito mais charme, graças à tecnologia digital. Se esta mesma tecnologia, aliada à diminuição do peso das câmaras (que tornam os steadycam shots bastante mais fáceis) e a massificação das filmagens fora de estúdios, podia fazer crer que o plano longo se tornaria algo mais comum no cinema, então a gigantesca evolução dos efeitos especiais ainda mais poderia contribuir, teoricamente, para isso. Veja-se o famoso longo plano de quase vinte minutos no início de ‘Gravity’ (2013). OK, é obtido através de bluescreen e uma carrada de efeitos especiais, mas é uma soberba ilusão de contínuo que há 20 anos seria impossível obter e que agora está à distância de um clique.
Por isso mesmo é algo paradoxal que o plano longo não se tenha propagado mais no cinema moderno. Ocorre uma acentuada antítese entre o estilo frenético de montagem que caracteriza a maior parte dos filmes e alguns súbitos planos longos que surgem de vez em quando, raríssimas vezes com o carisma e a descrição de outrora, quando criavam um determinado ambiente ou estimulavam uma determinada sensação no espectador. Em vez disso, o plano longo parece ser agora apenas uma prerrogativa de alguns conceituados realizadores (Scorsese, DePalma, Iñárritu, Cuarón) que parecem estar há décadas, na minha perspectiva, numa luta interna entre usá-lo com mestria, concebendo cenas icónicas em filmes que não lhes ficam atrás, ou usá-lo como uma artificial manobra artística, cheia de espalhafato, mais para chamar a atenção a si próprios e alimentar os seus egos do que propriamente para servir o filme em que se inserem.
Reconhece-se o aparato que é montar a intrincada estrutura que permite a filmagem do plano longo; o dispêndio de recursos (temporais, financeiros, humanos), a mestria técnica e a devoção a conceber uma cena que a maior parte dos espectadores nem vai notar que está concebida desta maneira (a não ser subconscientemente). Mas quando Paul Thomas Anderson, por exemplo, abre ‘Boogie Nights’ (1997) com um plano longo a seguir as personagens a entrar na discoteca, não está simplesmente a imitar o ambiente de época de Scorsese ou DePalma, que já se imitaram a si próprios uma dezena de vezes? Quando Iñárritu decide abrir ‘The Revenant’ (2015) com um plano longo, não se terá sentido compelido a fazê-lo, depois do que se falou sobre ‘Birdman’, já que o resto do filme é muito pouco criterioso em termos de quando usa ou não usa este artifício?
Independentemente desta discussão, qualquer cinéfilo tem de admitir; quando bem concebido, quando bem filmado, quando bem usado em prol do look e do ambiente do filme, o plano longo é uma extraordinária forma de verdadeiro cinema, que nos leva a rever as cenas uma e outra vez, que nos leva a recordar a cada segundo porque é que amamos cinema, porque é que somos cinema. Por necessidade ou por show off artístico, em tom experimental ou com um total domínio técnico, clássico ou contemporâneo, com um par de minutos ou com mais de uma hora, fica aqui uma lista de alguns dos meus planos longos preferidos da história do cinema, sem uma ordem particular, para o leitor descobrir ou rever. Boa viagem… cinematográfica.
É com enorme prazer que revejo, por exemplo, os antigos musicais de Hollywood, onde somos brindados com longos planos de corpo inteiro de Fred Astaire ou Gene Kelly a executar soberbas coreografias de dança. Os musicais de hoje, ou filmes como ‘Step Up’, mostram as suas cenas de dança no chamado estilo-de-montagem-MTV, com cortes e mais cortes em que vemos um braço a rodar, uma perna a mexer, meio corpo a rodopiar, e o cérebro fica com a ilusão de que se passou ali qualquer coisa, quando na realidade não vimos absolutamente nada. São estas pessoas realmente bons dançarinos, ou é tudo um truque de montagem?
Do mesmo modo, as cenas de acção agora são largamente, pelo menos na minha óptica, incompreensíveis. Um punho fechado, uma faca no ar, dois corpos a caírem ao chão, uma boca a arfar, mas nunca ser vê, efectivamente, um movimento em contínuo. Nunca se percebe quem bateu em quem, e de que forma. Passei ‘Bourne Ultimatum’ inteiro, por exemplo, sem compreender a fluidez de uma única cena de acção. Recordamos com saudosismo cenas brilhantes como a que Hitchcock filma em ‘Torn Curtain’ (1966), quando Paul Newman mata o agente inimigo e sentimos a dificuldade que é lutar e matar alguém. Recordamos o brilhantismo dos movimentos coreografados de Bruce Lee. E lamentamos que o cinema moderno tenha perdido isso só porque se decidiu que quanto mais cortes um filme tem, mais dinâmico, intenso e apelativo será. Não sei porquê. É só ver filmes com frequência para comprovar que isso não é verdade.
Mas depois temos o outro lado da moeda, o chamado plano longo, como uma paradoxal antítese. O dicionário cinematográfico define ‘plano longo’ como um plano sem cortes, geralmente obtido através de um ‘dolly shot’ (a câmara agarrada a uma grua ou deslizando sobre carris) ou de um ‘Steadicam shot’ (a câmara aos ombros de um operador seguindo a acção e os actores), que dura largos minutos e claramente se destaca do ritmo normal, ou do restante filme ou dos filmes em geral. Outrora, o cinema por norma mantinha planos por largos segundos, deixando os actores falar e actuar livremente e dando tempo ao espectador para sorver a cena, os ambientes, as interpretações. Quando se recorria ao (mais) longo plano era por motivos específicos; necessidade (cortar custos, tal como acontecia nos primórdios do cinema); acentuar a tensão de uma determinada cena, prendendo o espectador à cadeira (veja-se o que Orson Welles faz no início de ‘Touch of Evil’, 1958); ou acentuar o dramatismo real da história, aproximando o filme do espectador ao construir-se como uma peça de teatro (tal como Hitchcock faz em ‘Rope’, 1948).
Mesmo assim, havia um limite para o plano longo, estabelecido pela capacidade de filme que as câmaras conseguiam conter. Em ‘Rope’, Hitchcock tenta dar a ilusão de que o filme foi filmado num único take, mas como apenas podia filmar 10 minutos de cada vez, nota-se perfeitamente quando faz os cortes, por mais discreto que procure ser. Seis décadas depois, ‘Birdman’ (2014) oferece a mesma ilusão de um filme inteiro sem cortes com muito mais charme, graças à tecnologia digital. Se esta mesma tecnologia, aliada à diminuição do peso das câmaras (que tornam os steadycam shots bastante mais fáceis) e a massificação das filmagens fora de estúdios, podia fazer crer que o plano longo se tornaria algo mais comum no cinema, então a gigantesca evolução dos efeitos especiais ainda mais poderia contribuir, teoricamente, para isso. Veja-se o famoso longo plano de quase vinte minutos no início de ‘Gravity’ (2013). OK, é obtido através de bluescreen e uma carrada de efeitos especiais, mas é uma soberba ilusão de contínuo que há 20 anos seria impossível obter e que agora está à distância de um clique.
Por isso mesmo é algo paradoxal que o plano longo não se tenha propagado mais no cinema moderno. Ocorre uma acentuada antítese entre o estilo frenético de montagem que caracteriza a maior parte dos filmes e alguns súbitos planos longos que surgem de vez em quando, raríssimas vezes com o carisma e a descrição de outrora, quando criavam um determinado ambiente ou estimulavam uma determinada sensação no espectador. Em vez disso, o plano longo parece ser agora apenas uma prerrogativa de alguns conceituados realizadores (Scorsese, DePalma, Iñárritu, Cuarón) que parecem estar há décadas, na minha perspectiva, numa luta interna entre usá-lo com mestria, concebendo cenas icónicas em filmes que não lhes ficam atrás, ou usá-lo como uma artificial manobra artística, cheia de espalhafato, mais para chamar a atenção a si próprios e alimentar os seus egos do que propriamente para servir o filme em que se inserem.
Reconhece-se o aparato que é montar a intrincada estrutura que permite a filmagem do plano longo; o dispêndio de recursos (temporais, financeiros, humanos), a mestria técnica e a devoção a conceber uma cena que a maior parte dos espectadores nem vai notar que está concebida desta maneira (a não ser subconscientemente). Mas quando Paul Thomas Anderson, por exemplo, abre ‘Boogie Nights’ (1997) com um plano longo a seguir as personagens a entrar na discoteca, não está simplesmente a imitar o ambiente de época de Scorsese ou DePalma, que já se imitaram a si próprios uma dezena de vezes? Quando Iñárritu decide abrir ‘The Revenant’ (2015) com um plano longo, não se terá sentido compelido a fazê-lo, depois do que se falou sobre ‘Birdman’, já que o resto do filme é muito pouco criterioso em termos de quando usa ou não usa este artifício?
Independentemente desta discussão, qualquer cinéfilo tem de admitir; quando bem concebido, quando bem filmado, quando bem usado em prol do look e do ambiente do filme, o plano longo é uma extraordinária forma de verdadeiro cinema, que nos leva a rever as cenas uma e outra vez, que nos leva a recordar a cada segundo porque é que amamos cinema, porque é que somos cinema. Por necessidade ou por show off artístico, em tom experimental ou com um total domínio técnico, clássico ou contemporâneo, com um par de minutos ou com mais de uma hora, fica aqui uma lista de alguns dos meus planos longos preferidos da história do cinema, sem uma ordem particular, para o leitor descobrir ou rever. Boa viagem… cinematográfica.
A cena do carro em 'Children of Man' (2006) - 4'07 minutos
Alfonso Cuarón pode ter ganho o Óscar de Melhor Realizador por 'Gravity', mas o melhor filme que alguma vez realizou foi 'Children of Man', uma obra futurista com um incrível sentido de realismo, exacerbado pelo uso constante de planos longos. A cena do carro é a mais famosa, obtida através de uma soberba encenação e de uma câmara especial, construída para o propósito, que girava no centro da viatura. A encenação é incrível, a devoção dos actores imensa e o impacto no espectador incalculável. Não é contudo o meu plano longo preferido do filme (prefiro a cena mais para o fim na cidade em ruínas), mas não a encontrei no youtube...
A cena de abertura de 'Touch of Evil' (1958) - 3'20 minutos
Orson Welles não era propriamente um realizador qualquer e aqui, no início da sua obra prima noir, faz uma seminal sequência de abertura que inspiraria todos os grandes realizadores que alguma vez utilizaram um plano longo para abrir os seus filmes. Com um épico dolly shot, Welles cria um ambiente de tensão intenso, ao abrir com o close up de uma bomba que é colocada na mala de um carro, que passa os três minutos seguintes a aparecer e a desaparecer de cena à medida que seguimos o casal principal, composto por Charlton Heston e Janet Leigh, caminhando pelas ruas da fronteira entre o México e os Estados Unidos. Na nossa mente gira uma única pergunta: quando é que a bomba vai explodir? E agarramos a cadeira cada vez que o carro passa ao lado do casal. Uma cena fabulosa e tecnicamente imaculada.
A cena de abertura de 'The Player' (1992) - 8'08 minutos
'The Player' é um dos mais sarcásticos olhares de Hollywood sobre ela própria de que há memória no cinema. A abrir esta estilosa alegoria, Robert Altman decide-se por um épico plano longo que dura quase oito minutos, centrado no parque de estacionamento de um estúdio, com a câmara a acompanhar a chegada matinal de um conjunto de executivos e a espreitar várias conversas por portas e janelas. Os diálogos esventram as convenções de Hollywood de cima a baixo (vários argumentistas tentam vender argumentos hilariantes, tipo 'The Graduate 2', a Tim Robbins), e incluem uma conversa com Fred Ward sobre as grandes aberturas em plano longo do cinema. Irónico, sarcástico, mas com um tom de estranheza e mistério, esta soberba cena estabelece o tom para todo o filme. Fica aqui um pequeno excerto:
'Rope' (1948) - todo o filme (com cortes 'invisíveis')
Hitchcock já havia criado fantásticos, quebra-convenções, planos longos como a cena do restaurante em 'Young and Innocent' (1937) ou a cena da chave escondida em 'Notorious' (1946). Mas é em 'Rope' que decide executar, pela primeira vez no Cinema, um filme inteiro com a ilusão de um take contínuo. Como escrevi em cima, estava limitado pelos sensivelmente 10 minutos de filme que as câmaras conseguiam conter, mas foi bastante inteligente na forma como fez os cortes. 'Rope' pode não ser o melhor dos filmes de Hitchcock, mas a sua forma técnica é soberba, a sua dinâmica em contínuo é vibrante e hipnotizante e, também importante, marca o início da sua colaboração com Jimmy Stewart. Hitchcock teve a audácia de provar que esta forma de execução fílmica era possível, influenciando assim, como em inúmeros outros aspectos, a arte cinematográfica.
A cena inicial de 'Spectre' (2015) - 4'10 minutos
No último par de anos tem estado tudo muito preocupado em discutir os planos longos de Iñárritu e Cuarón que poucos se aperceberam que Sam Mendes abriu o último filme de James Bond com um extraordinário plano longo em plena Festa dos Mortos na Cidade do México. É uma cena que nos permite voltar a absorver a magnífica atmosfera local pelo qual os filmes de Bond eram famosos mas que, em anos recentes, com os estilos frenéticos de montagem, infelizmente há muito não sentíamos. Brilhantemente executada, e com um charmoso sentido de perigo, é um fantástico início para um fantástico filme.
A cena do assalto em 'Gun Crazy' (1950) - 3'30 minutos
Oito anos antes do largamente citado 'Touch of Evil', outro realizador (Joseph Lewis), noutro noir ('Gun Crazy') havia feito um fantástico plano longo, na parte de trás de um carro, de um assalto a um banco. A tensão criada é incrível, e se a naturalidade dos actores não é a melhor, a estética da cena, simplicíssima mas totalmente eficaz, largamente compensa. Um plano que seria repetido e repetido (não é Tarantino?!), e que tem aqui a sua inventiva génese.
O final da batalha de Agincourt em 'Henry V' (1989) - 3'46 minutos
Kenneth Branagh nunca foi tomado muito a sério como realizador, especialmente agora em que se conformou a realizar e actuar em blockbusters para financiar as suas experiências teatrais. Mas nem sempre foi assim (hey, o homem filmou um 'Hamlet' de 4 horas em 70 mm!) e especialmente no seu primeiro filme, a obra prima 'Henry V' (1989), Branagh demonstrou, na ousadia e virtuosismo dos seus 29 anos de idade, que não só era, com justiça, o novo rapaz-maravilha dos palcos shakespearianos, como também estava disposto a revolucionar a forma como o cinema filmava os clássicos. Após a mais extraordinária batalha de Agincourt alguma vez posta em filme (desculpa lá Laurence Olivier), Branagh culmina a sequência com um plano longo de quatro minutos que retrata, com uma intensidade trágica, num misto de esperança e depressão, o pós-batalha, enquanto o Rei (Branagh) carrega aos ombros um pobre pajem morto, interpretado por um jovem Christian Bale, A música de Patrick Doyle, que o próprio se encarrega de começar a cantar em cena, é o toque sublime que completa o quadro. Porque motivo esta cena magnífica não figura nas listas de grandes cenas em plano longo é algo que me ultrapassa.
A cena na praia de Dunkirk em 'Atonement' (2007) - 4'59 minutos
Diz-se que o realizador Joe Wright tinha concebido esta sequência como qualquer outra, mas a necessidade de completar a cena em dois dias e a gestão dos mais de mil extras obrigou-o a reconsiderar a forma de abordar a filmagem. A sua decisão de fazer a cena num único plano é inspirada (a necessidade é a mãe da invenção, certo?!) e esta é sem dúvida a melhor sequência do filme, um fantástico pedaço de cinema, que começa como uma espécie de 'Saving Private Ryan' mas depois desemboca numa intensa e artística reflexão sobre a insanidade e a inutilidade de qualquer guerra. Tal como no plano longo anterior, é a música (a Óscarizada composição de Dario Marianelli) que ajuda as emoções a florirem, mas são as imagens que, como não podia deixar de ser, valem mais que mil palavras.
O engarrafamento em 'Weekend' (1967) - 7'25 minutos
O maior engarrafamento alguma vez filmado não foi na China, nem nos Estados Unidos, nem em Angola. Foi numa pequena estradeca rural francesa, pela mão do mestre Jean Luc Godard. No seu ano chave de transição para o cinema não convencional, Godard mostra um plano (quase) ininterrupto de mais de sete minutos de carros e mais carros de todos os géneros, tipos e feitios, presos num épico engarrafamento. À medida que as personagens principais do filme surrealmente passam pelo engarrafamento pela faixa da esquerda como se nada fosse, vamos assistindo a um espectáculo por vezes fascinante, por vezes mórbido, que simboliza a mensagem de todo o filme - como um fim de semana idílico se transforma num ataque surrealista, incisivo e feroz às convenções da burguesia francesa. Godard. What else. No youtube, infelizmente, só encontro um pequeno clip...
A perseguição final na Grand Central Station em 'Carlito’s Way' (1993) - 3 minutos
Brian DePalma é um daqueles realizadores famosos pelos seus planos longos. A maior parte dos tops deste género figuram repetidamente a cena de 'Snake Eyes' (1998), por ter mais de 10 minutos, mas como eu tenho opiniões próprias prefiro destacar outras. O início de 'The Bonfire of Vanities' (1991), com a chegada de Bruce Willis ao World Trade Center é soberba, mas para mim a melhor sequência de todas é o clímax daquele que considero o melhor filme de DePalma: 'Carlito's Way' (1993). A perseguição na Grand Central Station de Nova Iorque é quase toda filmada num único plano (há porém alguns perceptíveis cortes), embalada pelo soberbo tema de Patrick Doyle. DePalma leva-nos literalmente para dentro da acção e vai alternando entre perspectivas (por vezes estamos do lado de Pacino, por vezes do lado dos 'maus'´, com uma excelente transição escada rolante abaixo). Como bónus, a cena tem pequenos pormenores escondidos, que só serão percebidos quando se sabe o final do filme e se revê a cena outra vez com muita, muita atenção.
'12 Angry Man' (1957) - várias cenas ao longo do filme
'12 Angry Man' é um dos mais poderosos filmes alguma vez filmados. Quase todo passado na mesma sala, tem a aura de uma peça de teatro, apimentada pelo virtuosismo cinematográfico e pelo gigantesco magnetismo das suas actuações. Sidney Lumet deixa por isso várias vezes a câmara a rolar por vários minutos. Não são planos longos intrincados nem movimentados, mas são planos longos clássicos que nos permitem saborear as actuações e ficar hipnotizados pela intensa trama. Tanto que, quando os planos se quebram, sentimos esse choque, num filme que nos dá pouco espaço para respirar mas muito espaço para suster a respiração. Esta cena de 3'20 é o exemplo perfeito daquilo que quero dizer.
A chegada ao clube nocturno em 'Goodfellas' (1989) - 2'27 minutos
Para muitos Scorsese é o mestre do plano longo, muito embora, como se vê por esta lista, não é o único a fazê-lo, e muito menos o único a fazê-lo bem. O que o distingue é que Scorsese deu outro sentido ao plano longo, ao enchê-lo de exuberância e sedução, em cenas bem orquestradas e muito bem preparadas, cujos ambientes estabelecem o tom dos filmes. O seu mais famoso plano longo, o de 'Goodfellas' (1990) já foi largamente analisado, sendo comparado à ascensão da personagem de Ray Liotta, para quem todas as portas estão abertas, e todos os atalhos são válidos e justificáveis para obter o que quer, sendo conseguidos com base numa fachada glamorosa erguida sob alicerces de corrupção. Interpretações à parte, Lorraine Bracco tem uma entrada bombástica no mundo sedutor da máfia, numa cena brilhantemente executada e que dá vontade de rever, uma e outra vez.
'Birdman' (2014) - todo o filme (com cortes 'invisíveis')
O grande vencedor dos Óscares de 2014, 'Birdman' é um triunfo em várias vertentes; argumento, actuação, realização. Mas tem outra característica distintiva, totalmente invulgar para um filme que para todos os efeitos é um filme comercial de Hollywood: está construído para dar a ilusão de que foi todo filmado num único take, com invisíveis cortes, tornados ainda mais invisíveis (ao contrário dos de 'Rope') pelo uso da tecnologia digital. Iñárritu, já habituado a fazer planos longos nos seus filmes anteriores, e talvez inspirado pelo sucesso do plano longo do seu amigo e conterrâneo Alfonso Cuarón em 'Gravity', tem aqui um épico trabalho de organização cénica que, para além de valer pela soberba ilusão que cria nos bastidores de uma peça de teatro, vale tanto pelo todo como pelas pequenas cenas individuais que o constituem. 'Birdman' é como um grande mosaico, em que cada peça contém a sua própria obra de arte, mas todas as peças juntas criam também elas uma imagem fascinante.
A cena da dança 360º em 'Royal Wedding' (1951) - 3 minutos
Ver Fred Astaire a dançar é um prazer. E é um prazer ainda maior quando o vemos de corpo inteiro e sem cortes, como em inúmeras cenas de dança em inúmeros filmes. Mas Stanley Donen eleva a fasquia em 'Royal Wedding' quando decide filmar em plano longo uma dança que leva Astaire literalmente às quatro paredes de uma divisão. O plano longo era essencial para manter a ilusão, obtida através de um cenário rotativo e uma câmara presa ao chão. O efeito, esse, é memorável.
'Russian Ark' (2002) - todo o filme (100 minutos)
Nos últimos vinte anos, graças aos desenvolvimentos da tecnologia digital e à diminuição do tamanho das câmaras, já surgiram alguns filmes experimentais que tentaram ser feitos verdadeiramente sem um único corte, como por exemplo 'Time Code' (2000). Mas nenhum bate o feito da 'Arca Russa', o filme de quase 100 minutos de Alexander Sokurov, O Hermitage em São Petersburgo é um museu soberbo num edifício soberbo (orgulho-me em dizer que já o visitei) e este filme leva-nos lá, sala a sala, e em cada sala dá-nos a conhecer um pouco dos 300 anos de história da cidade, através de brilhantes encenações. Não é bem um filme e não é bem um documentário. É uma experiência visual avassaladora e uma surreal celebração, que deve ser vista pelo menos uma vez.
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