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Ordinary People

Ano: 1980

Realizador: Robert Redford

Actores principais: Donald Sutherland, Mary Tyler Moore, Timothy Hutton

Duração: 124 min

Crítica: ‘Ordinary People’, em português ‘Gente Vulgar’ não é, nem de perto nem de longe, um filme vulgar. É um daqueles filmes simples mas extremamente eficazes, extremamente bem-feitos, extremamente pungentes e comoventes. Isto sem alguma vez ser artificial, excessivamente dramático ou estar sempre a puxar a brasa à sua sardinha. Ou seja, é um filme que prova que a vida – a vida real – é o drama supremo, e que não necessita de grandes embelezamentos cinematográficos para ser profundo, cativante ou sensibilizar o espectador. É um filme que facilmente poderia cair na tentação de um exacerbado dramatismo e de uma descabida teatralidade, e que portanto tem ainda mais qualidade por não cair, o que só pode ser obtido através de uma grande contenção do realizador, uma contenção que esconde uma incrível capacidade técnica. Por todas estas coisas ‘Ordinary People’ vai muito mais além daquilo que a sua fachada poderia deixar antever. Por todas estas coisas ‘Ordinary People’ é muito mais do que um drama familiar de puxar à lágrima. É muito mais do que um filme para comover, e devido ao seu tema social, conquistar prémios (que conquistou é certo, mas merecidamente). Por todas estas coisas ‘Ordinary People’ é, acima de tudo, um grande filme.

Dos vencedores do Óscar de Melhor Filme dos últimos 30 anos, ‘Ordinary People’ é, injustamente, um dos mais esquecidos, um dos menos recordados, um dos que menos passam na televisão. Em anos recentes tivemos entradas ainda mais descartáveis, como ‘Slumdog Millionaire’ ou ‘The King’s Speach’, que em meia década já toda a gente se esquecerá que ganhou o Óscar, mas ‘Ordinary People’ não deve estar neste pacote. Outros nomeados em 1980, como ‘Ragging Bull’ de Martin Scorsese ou ‘Elephant Man’ de David Lynch hoje ainda são populares e têm legiões de seguidores, enquanto que apenas um punhado de pessoas se recorda de ‘Ordinary People’. Mas o leitor poderá ficar surpreendido de eu achar que a vitória deste filme é completamente justa (a Academia acertou, parece incrível!). Tal como foram completamente justos os outros três Óscares que o filme recebeu, Melhor Realizador, Melhor Argumento Adaptado e, principalmente, Melhor Actor Secundário para um jovem, então quase estreante, Timothy Hutton (que, apesar do Óscar, nunca deu o salto para o cinema popular, mas mantém uma carreira digna até hoje).

Mas a maior surpresa de todas, para mim, quando há muitos anos vi o filme pela primeira vez, foi olhar para o nome do realizador e ler Robert Redford. Esta cara bonita, mas talentosa, da sétima arte, havia surgido na década de 1960 como actor e fizera história com filmes como ‘Barefoot on the Park’ (1957), ‘Butch Cassidy and the Sundance Kid’ (1969), ‘The Sting’ (1973, vencedor do Óscar de Melhor Filme), ‘The Way We Were’ (1973) ou ‘All the President’s Man’ (1976). Mas aparentemente, Redford também tinha ambições de realização. Aliás, pode-se dizer que Redford criou um precedente, pois foi o primeiro de um conjunto de actores populares que nunca ganharam Óscares por actuação, mas que ganharam por realização: Warren Beatty, Clint Eastwood, Kevin Costner, Mel Gibson. E, tal como estes, Redford decidiu estrear-se na realização com um filme longe do perfil típico dos seus trabalhos como actor, muito mais simples, muito menos ambicioso, muito mais íntimo. E é surpreendente ver como a sua abordagem ao tema e ao material foi incrivelmente bem-sucedida.

‘Ordinary People’ é uma história simples, humilde e sentida sobre como uma família; o pai, a mãe, e o filho mais novo, lida com a morte do filho mais velho, um rapaz extremamente popular no liceu e na comunidade, num acidente de barco. O pai é interpretado pelo fabuloso Donald Sutherland, um homem que tenta manter uma aparente calma, agradar a toda a gente e que se afasta de qualquer tipo de confronto e discussão, na esperança de assim conseguir ultrapassar a sua dor e resolver os problemas à sua volta. A mãe é interpretada por Mary Tyler Moore, uma então popular actriz de televisão, que aqui tem uma performance extraordinária como uma mulher algo possessiva e amargurada, que se importa mais com as aparências do que com os sentimentos, e que lida com a morte do seu primogénito privando-se de qualquer emoção, e escondendo-se na rotina, nos eventos sociais, e numa obsessiva lida da casa.

Mas o filme toma o ponto de vista do terceiro elemento desta família, o filho mais novo, que sobreviveu ao acidente de barco e cujo trauma da morte do irmão é muito mais profundo. O actor Timothy Hutton tinha apenas 20 anos de idade quando filmou este tão exigente papel, mas a sua actuação é a de um mestre consumado. Roubando todas as cenas em que aparece, mesmo perante actores de grande bagagem como Sutherland ou Tyler Moore, Hutton é a chama que alimenta o filme, a força motriz que o faz avançar. A sua interpretação é poderosa e intensa, mas ao mesmo tempo é delicada, e imbuída de uma invejável humanidade. Estamos a falar do actor que recusou o papel principal em ‘Risky Business’ (1983), que eventualmente lançaria a carreira de Tom Cruise, para poder trabalhar com Sideny Lumet em ‘Daniel’ (1983), passando assim provavelmente ao lado de uma carreira estelar. No papel de Conrad em ‘Ordinary People’ vê-se que Hutton não nasceu para ser uma estrela. Nasceu para ser um actor.

Ao longo do filme percebemos que, antes dos eventos que nos são mostrados, Conrad tinha-se tentado suicidar após a morte do irmão e que passou, depois disso, quatro meses num Hospital. O filme inicia-se pouco depois de ele regressar a casa, e vai-nos mostrando como procura readaptar-se, sem grande sucesso, à vida familiar e à escolar. Quer em casa quer na escola, Conrad sente-se assombrado pela sombra do irmão, melhor atleta, melhor filho, melhor aluno. Na equipa de natação, Conrad nunca será tao rápido como o irmão foi. Em casa, tem que enfrentar igualmente a dor dos pais, que, mesmo sem intenção, descarregam nele. Principalmente a mãe, que sempre gostou mais do filho que morreu e que agora não consegue transferir o afecto para aquele que ainda está vivo. E depois há ainda o próprio sentimento de culpa de Conrad, procurando encontrar-se, ligar-se aos pais, e afastar os seus pesadelos em que revive vezes sem conta aqueles minutos fatídicos no barco.

Os pais não conseguem lidar com a sua inadaptação, já que nem eles próprios conseguem ultrapassar o trauma da perda do filho, por isso Conrad vai ser salvo por duas novas relações na sua vida. A primeira é com um novo psicólogo, de métodos pouco ortodoxos, interpretado de forma convincente por Judd Hirsch. O público de hoje estará certamente muito mais familiarizado com a interpretação de Robin Williams em ‘Good Will Hunting’ (1997), como o psicólogo que ajuda Matt Damon. Pois bem, a personagem e a performance de Hirsch em ‘Ordinary People’ existe nos mesmos moldes; um homem também com amarguras próprias mas que trata, não com condescendência, mas estimulando e inspirando. A segunda grande relação nova na vida de Conrad surge pela bela actuação da então jovem Elizabeth McGovern, a actriz de olhos grandes, brilhantes e voz grave que pouco depois seria Deborah na derradeira obra-prima de Sergio Leone, ‘Once Upon a Time in America’ (1984), e que hoje em dia vive um novo surto de popularidade como a Condessa Cora de ‘Downton Abbey’. Em ‘Ordinary People’ McGovern é uma colega de liceu de Conrad, que se começa a interessar-se por ele, e que acaba por ser um apoio emocional que poderá desembocar em amor.

Pouco mais se pode contar em termos de história sobre este filme, a não ser que se comece a descrever os diálogos. Basicamente, centrado em Conrad, o filme oscila entre os vários estados emocionais e as várias discussões/ conversas/ revelações sentimentais que se processam entre estas cinco personagens principais: Conrad, os seus pais, o seu psicólogo e a sua namorada. Sendo que os dois últimos servem principalmente como desabafos emocionais para Conrad e catalisadores da sua catarse, é no seio da família que o filme mais se foca, e mais pontos ganha na sua brilhante exploração (como disse em cima nunca de uma forma artificial), das consequências emocionais da perda de um familiar. Cada um tem que lidar com os restantes e consigo próprio. Cada um tem que fazer as pazes com os restantes e consigo próprio. Cada um tem que aceitar os restantes e a si próprio. E só assim podem aceitar a morte, e seguir em frente com as suas vidas.

Destramente, o filme faz esta ponte emocional com o espectador. Há uma enorme contenção cinematográfica, mesmo nas cenas mais delicadas, mesmo nas cenas mais emocionalmente tensas. Raramente se ouve música. Raramente há berros, gritos, discussões, choradeira desenfreada, diálogos infinitos a explicar as emoções. Redford nega tudo isso. As emoções não precisam de ser explicadas, se a câmara as captar e os actores as transmitirem através das suas actuações. E neste filme, como poucos, tal acontece, o que é maravilhoso. É a câmara que descobre as emoções escondidas nas personagens, e os actores não estão a actuar para a câmara; estão a viver a sua história, credivelmente, com performances incrivelmente humanas com as quais nos conseguimos identificar.

Não há aqui aquela teatralidade poderosa dos grandes dramas familiares que o cinema dos anos 1960 e 1970 viu, como ‘Who’s Affraid of Virginia Wolf’ (1966), por exemplo. Não há aqui excessos de emoção, sentimentos mastigados e explicados um a um ao público, como em qualquer drama da Julia Roberts. Há sim um minimalismo abissal, sem twists, sem surpresas, sem cenas para a casa vir abaixo com aplausos ou choro. Aqui, temos (quase) a vida real, um conjunto de seres humanos a tentar seguir em frente, a tentar lidar com uma sensação de vazio, a tentar preencher esse vazio com qualquer coisa, com amor, com uma emoção, com qualquer sensação de vida que valha a pena. Redford extrai dos seus actores e do enquadramento de cada cena o estritamente necessário para conseguir obter este efeito. Nem mais, nem menos. Há filme melhor sobre a morte de um familiar? Poucos ou nenhuns na América (não será certamente 'Os Descendentes' (2011), já criticado neste blog). Pelo resto do mundo, ‘La stanza del figlio’ (2001) de Nanni Moretti, por exemplo, adopta o mesmo tipo de abordagem. De repente, não me vem mais nenhum melhor à cabeça.

E no epicentro de toda esta subtileza está a poderosa interpretação de Hutton. Ainda hoje detém o título do mais jovem vencedor do Óscar de Melhor Actor Secundário de sempre. Mas ao mesmo tempo é de espantar o prémio, não por uma questão de ele o merecer ou não (merece, e de que maneira) mas pelo prémio em si. Hutton é o actor principal do filme, então porquê a categoria de Actor Secundário? Bem, porque são os estúdios que inscrevem os filmes nas categorias e não a Academia. E neste caso a Paramount decidiu inscrever Hutton na categoria de Secundário. Provavelmente acharam que este jovem desconhecido, de 20 anos e no seu primeiro filme que não para a televisão, teria mais hipóteses de ser nomeado assim (o que traria publicidade ao filme) e, sendo-o, não teria hipótese nenhuma de ganhar se estivesse a competir com Robert de Niro, e a sua interpretação de Jake LaMotta em ‘Ragging Bull’. Assim, todos saíram contentes. DeNiro ganhou o Óscar de Actor Principal e Hutton o de Secundário. Mas por mais intensa que seja a performance de DeNiro, a de Hutton é melhor. É magnífica e de tirar o fôlego, e merecia estar nos rankings das melhores de sempre da história do cinema. A de DeNiro costuma estar. A de Hutton nunca vi. É só estatística. E quando ele aparece num filme moderno é sempre com espanto que alguém me olha quando eu digo “este tipo já ganhou um Óscar”. É uma pena…

Após ganhar o Óscar e o Globo de Ouro de Melhor Realizador e Melhor Filme na sua estreia na realização, Redford continuou a sua carreira de actor (com ‘Out of Africa’, 1985, fez parte pela terceira vez de um vencedor do Óscar de Melhor filme, o que é um feito), e esperou 8 anos até voltar a realizar, o que deve ser um recorde. E depois de ‘The Milagro Beanfield War’ (1988) apenas realizou mais 8 filmes nos 25 anos que se seguiram até hoje, que incluem ‘A River Runs Through It’ (1992), ‘Quiz Show’ (1994), talvez o seu melhor a seguir a ‘Ordinary People’, ‘The Horse Whisperer’ (1998), que ‘descobriu’ Scarlett Johansson, ou mais recentemente ‘Lions for Lambs’ (2007) e ‘The Company You Keep’ (2012). Mas a simplicidade pura e incisiva inerente a ‘Ordinary People’, parece-me, não mais voltou a brilhar nos seus filmes.

Contudo, na sua estreia, Redford legou à história do cinema o filme definitivo sobre a perda, no contexto da classe alta da América suburbana. Um filme com interpretações magistrais, uma realização delicada e contida, e que deixa as personagens, o argumento e os actores brilharem, num brilho que atinge directamente o coração do espectador. Um filme fantástico e comovente.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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