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Mr. Lucky

Ano: 1943

Realizador: H.C. Potter

Actores principais: Cary Grant, Laraine Day, Charles Bickford

Duração: 100 minutos

Crítica: Na primeira metade da década de 1940, Hollywood esteve maioritariamente concentrada em realizar dois tipos de películas; comédias de ‘escape’, ou seja, para animar e distrair, quer o público, quer as tropas, e filmes para elevar a moral, e dar uma mensagem positiva de que a Guerra poderia ser ganha e os Nazis derrotados. Já desde o final da década de 1930 que, inicialmente a medo e depois com mais força, o cinema americano (e para onde tinham emigrado muitos talentos europeus para fugir ao Nazismo) se havia concentrado em filmes para chamar a atenção para o que se estava a passar na Europa. São exemplos filmes como ‘The Great Dictator’ de Chaplin, ‘The Mortal Storm’ de Brozage ou ‘Foreign Correspondent’ de Hitchcock (os três de 1940). Mas depois do ataque a Pearl Harbor em Dezembro de 1941 e com a entrada dos EUA no conflicto, Hollywood declarou guerra aberta ao Nazismo. Qualquer filme que fosse, mesmo que não abertamente ‘de guerra’, tinha sempre uma achega, sempre um paralelismo, sempre uma indirecta. Foi o poder do cinema em massa na sua expressão mais plena. E mesmo as comédias ou os romances também tinham este espírito, nem que fosse numa cena.

‘Mr. Lucky’ com Cary Grant (o verdadeiro Sr. Sortudo, o único príncipe de Hollywood, nas palavras de Marlene Dietrich) é mais um exemplo disso. É um filme que poderia ser feito em qualquer altura, e resultar, mas introduzindo-lhe a vertente de ‘em tempo de guerra, cada um, independentemente de quem é e do seu passado, pode dar o seu contributo ao país, e cada homem comum pode ser um herói’, o filme transforma-se e ganha uma outra dimensão. Por vezes pode ser um pouco forçado, mas isso quase nunca é perceptível. O filme junta o melhor dos dois mundos, a comédia romântico-dramática com o filme para elevar a moral em tempo de guerra. Cada parte é enriquecida pela outra, tornando-se o resultado final não um filme para a eternidade (não tem o poder e a energia para chegar tão longe), mas um filme suficientemente interessante para ser digno de registo nesta altura tão particular do cinema americano.

Mas o filme tem também uma coisa que o catapulta para bem longe do anonimato. Tem, para mim, uma das maiores performances de Cary Grant, absolutamente electrizante, rica em camadas e cheia de profundidade. Só por isso, o filme já vale a pena e é um testemunho do enorme talento deste muitas vezes desvalorizado gentleman de Hollywood. Ao contrário de muitos grandes nomes do cinema que nesta altura partiram para a guerra (James Stewart foi piloto de aviões, John Ford filmou o desembarque do dia D), Grant ficou em Hollywood. No início da Guerra tinha ido a Inglaterra alistar-se, mas não o aceitaram. Foi-lhe dito que devia voltar para a América para continuar a fazer filmes, pois os seus contributos seriam extremamente valiosos nessa frente para ajudar a propaganda e os soldados. Grant não se fez rogado e fez o seu papel nessa frente na perfeição, contribuindo para o esforço de guerra da forma que melhor sabia como. Em 1942 entrou em ‘Talk of the Town’, ao lado de Jean Arthur, um filme que enaltece o sistema de justiça americano, bem como em ‘Once Upon a Honeymoon’, ao lado de Ginger Rogers, um filme que revela a ameaça da quinta coluna Nazi por toda a Europa. Ambos estão brilhantemente mascarados de drama cómico-romântico, mas a mensagem subliminar é mais que óbvia. Em 1944 Grant entraria em ‘Destination Tokyo’, um filme de guerra mais sério, interpretando o capitão de um submarino. Mas em 1943, para os estúdios RKO, Grant entraria no filme que hoje é o mais esquecido (injustamente) deste pacote de clássicos em tempo de guerra. Contudo, é um dos mais surpreendentes, e nele, tal como em ‘None but the Lonely Heart’, do ano seguinte, mostra uma incrível versatilidade dramática, muito para além do sonso das comédias screwball ou do gentleman galã com que estava geralmente rotulado. Mas esta mestria de actuação não foi inteiramente uma surpresa. Já Hitchcock o havia revelado em 1941 com ‘Suspicion’, ano esse em que Grant também fez o pungente e intenso ‘Penny Serenade’, para mim a melhor performance da sua vida.

Realizado por H.C. Potter (cujas obras mais recordadas, a meu ver, incluem ‘The Story of Vernon and Irene Castle’, 1939, um filme de Fred e Ginger, ‘The Farmer's Daughter’, 1947, o filme pelo qual Loretta Young ganhou o seu Óscar de Melhor Actriz e ‘Mr. Blandings Builds His Dream House’, 1948, uma deliciosa comédia de novo com Cary Grant), ‘Mr. Lucky’ foi um dos grandes êxitos de bilheteira dos estúdios RKO em 1943. Começa numa noite de nevoeiro à beira das docas de Nova Iorque. Uma jovem mulher, Dorothy, bela e de famílias ricas, caminha sem rumo, olhando perdidamente o mar. Ela é interpretada, de uma forma incrivelmente convincente diga-se, por uma hoje praticamente esquecida Laraine Day, que apenas vi mais em ‘Foreign Correspondent’ (1940) de Hitchcock. Mas pelo seu papel neste filme, dá provas que mereceria ter estado no patamar de uma Jean Arthur, uma Donna Reed ou uma Irene Dunne. Dois marinheiros olham-na ao longe e um deles, Swede (interpretado por Charles Bickford), conta ao outro porque motivo ela caminha naquele cais todas as noites. Um navio que transportava uma carga de medicamentos para a Guerra, e no qual seguia o homem que ela amava, Joe, The Greek, afundou-se… Em flashback, Swede conta ao outro, e ao espectador, toda a história.

A primeira coisa que soa mal é apercebermo-nos que Grant vai interpretar um tipo chamado ‘O Grego’. Pior casting da história? Mas pouco depois o filme explica e o espectador respira de alívio. Com mestria, o filme mostra-nos quem é Grant, que igualmente com mestria enche o ecrã e o olho do espectador com a sua performance. Ele é um barão do jogo que está sempre à procura do próximo tanso para enganar e do próximo sitio onde montar um casino. Acabou de arranjar um barco e agora procura dinheiro para financiar a sua ideia de um casino-cruzeiro pelos mares do Sul. Mas duas coisas são logo perceptíveis. Primeiro que ele não é um mafioso, apesar do que faz e de ter um séquito de capangas. Vive ‘honestamente’ pela desonestidade do jogo. Segundo, apesar da ‘casa ganhar sempre’ Grant tem uma moral. A sua frase feita ‘never give a sucker an even break, but never cheat a friend’, é a sua religião, e é o segredo para um coração bom por trás do seu sorriso rebelde e trapaceiro.

Com o despoletar da guerra, está cada vez mais difícil arranjar dinheiro para financiar os seus propósitos, e de arranjar mais tansos para enganar. As coisas pioram quando ele próprio é recrutado. Sem remorso, Grant rouba a identificação de um marinheiro grego que está às portas da morte e aí torna-se Joe ‘O Grego’ para fugir à recruta. Logo a seguir, cruza-se na rua com Dorothy, uma das responsáveis da Associação do Esforço de Guerra, que lhe tenta vender umas rifas para um baile de caridade. Quando Joe se apercebe da quantidade de dinheiro que as pessoas doam para se poder comprar bens e medicamentos para os soldados e as vítimas da Guerra, vê que está aí o filão que tanto procurava. De rompante, entra na Associação e propõe um esquema: se lhe derem os direitos do jogo para esse baile (ou seja, se lhe deixarem instalar umas mesas de roleta ou blackjack numa sala ao lado!) então ele dará uma percentagem dos lucros à Associação. Como é óbvio, as senhoras da Associação, e principalmente Dorothy, ficam chocadas pela oferta, por mais tentadora que seja.

Mas Joe não desiste. Tal como Marlon Brando faria com Janet Lee no musical ‘Guys and Dolls’ (1954), Joe inscreve-se na Associação e começa a seduzir tudo e todos com a sua personalidade e a sua forma fácil de resolver problemas. Começando na sala de tricot (Grant a tricotar é o pináculo cómico do filme!), Joe está sempre atento, e sempre que as senhoras da Associação têm um problema ele aparece para ajudar, quer usando a sua ‘sorte’ artificial (viciando um sorteio), quer a sua vertente mais dura, de gangster (a câmara não mostra, mas claramente dá um enxerto de porrada a um tipo que está a tornar a vida difícil às senhoras da Associação). Pelo caminho, não só derrete os corações das senhoras, como, obviamente, o de Dorothy. Mas o próprio Joe é derretido (um transição de personagem que nunca é 100% credível). Entre fazer o bem ou ganhar o dinheiro que pretende, Joe inevitavelmente acaba por fazer o bem. E é isso que o vai levar a, no baile (para o qual obviamente já obteve a concessão de jogo) decidir dar todo, e não apenas uma parte, do dinheiro arrecadado à Associação.

Os elementos de tensão vai surgir de dois meios. O primeiro do avô de Dorothy (interpretado por Henry Stephenson) que nunca viu Joe com bons olhos, que assume que ele é um gangster, e que investiga coisas sobre o seu passado. Mas embora o passado de Joe esteja limpo, o do grego verdadeiro não está, e portanto a polícia fica no encalço de um Joe inocente. O segundo é um dos elementos do bando de Joe, que está à espera de uma oportunidade de se tornar ele próprio o chefe e que não concorda com dar o dinheiro dos lucros à Associação. Estes dois elementos vão levar a um final climático e surpreendente na noite do baile, em que muita coisa acontece, e que agarra o espectador até ao desenlace.  

‘Mr. Lucky’ é uma mistura invulgar mas bem conseguida e bem construída de vários elementos, desde a comédia, ao romance, ao filme de gangsters. As cenas cómicas são poucas mas eficazes (embora o filme mantenha sempre um tom leve), o romance entre Dorothy e Joe está bem construído e os dois actores têm bastante talento e bastante química, e a vertente de gangsters não é uma distracção nem um à parte, estando bem inserida na trama. O filme tem de tudo um pouco, mas surpreendentemente mantém o seu rumo. E esse rumo é que cada um tem que ‘do his bit for the good old US of A’. Joe não estava minimamente interessado em ir para a Guerra e só queria financiar o seu barco-casino. Mas à medida que trabalha na Associação e se vai apercebendo da realidade a sua atitude vai mudando. Do mesmo modo, em termos românticos, ele inicialmente pensa que Dorothy é uma rica mimada, enquanto ela, por seu lado, pensa que ele é apenas um escroque. Mas unidos pela causa comum, o amor à pátria, ambos revelam o seu coração, e não ficam indiferentes. Dorothy luta na Associação mas a sua influência é limitada. Já Joe é um herói muito maior, muito mais trágico, e o seu sacrifício é ainda mais épico. Ferido e perseguido, Joe ainda consegue dar todo o dinheiro a Dorothy, abdicar dela numa daquelas despedidas que só existem no cinema (aviso: ameaça de queda de lágrimas!), e usar o seu próprio barco para levar os medicamentos para a Europa. 

E se o público ainda não ficou convencido nem moralizado com esta mostra de heroísmo por um homem que estava bem longe de ser um herói, o filme ainda tem uma cena muito mais directa. Pouco antes de Joe mudar completamente de ideias, na noite do baile, vai a uma igreja grega para que o padre lhe traduza uma carta que recebeu da mãe do grego verdadeiro. Nessa carta, que o padre lê em voz alta, mais para o público do que propriamente para Grant, a senhora conta a invasão Nazi à sua pequena aldeia e como os irmãos do grego lutaram e morreram. A cena é completamente forçada e artificial, mas não nos importamos, e suponho que o público de 1943 se tenha importado ainda menos. É o pedaço mais ‘escandaloso’ de propaganda que o filme tem, e a única cena que não encaixa na história, embora, apesar de tudo, ajude a explicar a mudança emocional de Joe, e force (no bom sentido) o público da época a ficar revoltado contra o horror da guerra e o regime Nazi.

Com um twist final que, apesar de surpreendente, encaixa perfeitamente no lugar-comum do que se pode esperar de um filme de Hollywood (é surpreendente por ser imprevisível, mas óbvio depois de se saber), ‘Mr. Lucky’ é um filme cujo todo pode não ser necessariamente maior que a soma das suas partes, mas tomara a muitos filmes terem estas partes. Pouco datado, é uma comédia romântica por excelência, tão boa como qualquer outra feita nas décadas douradas de 1930 e 1940, mas cuja energia não está nem na sua comédia nem no seu romance. Depois de terminar o filme podemos sorrir facilmente ao recordar Cary Grant a fazer ponto-cruz, rivalizando qualquer comédia, podemos sentirmo-nos emocionados quando Grant parte no barco e Day corre atrás dele pelo cais a berrar que o ama e que vai ficar à sua espera, rivalizando qualquer romance, e podemos ter sustido a respiração quando os mafiosos assaltam o casino, alvejam Grant e tentam fugir com o dinheiro que devia ir para as vítimas da Guerra, rivalizando qualquer filme de acção. Mas apesar de tudo, chegados ao final, sentimos que a verdadeira essência do filme está na subjacente mensagem patriótica, o que pode ser uma vantagem ou uma desvantagem.

É difícil de encontrar algo de concreto que se possa criticar neste filme. Com excepção da cena da igreja, todas as cenas se encadeiam bem e têm excelente ritmo, prendendo o espectador; os actores secundários são do melhor que o sistema de estúdios pode dar e as suas personagens enriquecem o filme; a fotografia (de George Barnes) é bela e por fim Cary Grant é um Senhor, com S maiúsculo (como é possível nunca ter ganho um Óscar de competição?! – receberia um honorário em 1970). Contudo, não consigo dizer que este é um grande filme. Talvez seja uma questão da história não ser suficientemente interessante ou suficientemente focada. A repartição por vários géneros, e a mensagem patriótica sempre a espreitar, podem tornar as personagens menos interessantes, ou as suas aventuras menos universais, pelo menos fora do contexto de um Mundo em Guerra. Mas pensando no filme nesse contexto, e assistindo à brilhante actuação de Cary Grant, ‘Mr. Lucky’ é sem dúvida, e passe o trocadilho, um filme afortunado, e uma pérola memorável deste período marcante da história do cinema americano. Cumpre a sua principal função: entreter e moralizar em tempo de guerra. Mas tal como outras obras, de ‘Mortal Storm’ a ‘Casablanca’, oferece muito mais. Mas se em ambos estes filmes, por exemplo, o retrato humano (fabuloso) estava acima de todas as coisas, incluindo a moral em tempo de guerra, em ‘Mr. Lucky’ o retrato humano (também fabuloso mas muito menos pungente) por vezes, ou a maior parte das vezes, não está. E talvez seja esse o principal motivo de não ter agarrado a imortalidade cinematográfica.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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