Realizador: Steve McQueen
Actores principais: Chiwetel Ejiofor, Michael K. Williams, Michael Fassbender
Duração: 134 min
Crítica: Imagine, caro leitor, se todos os filmes sobre a Segunda Guerra Mundial fossem iguais. Se a sua história fosse sempre: (i) há um judeu; (ii) esse judeu é levado para um campo de concentração onde sofre horrores indescritíveis; e por fim (iii) é salvo pelos aliados ou então morto tragicamente às mãos dos Nazis. E imagine o leitor que sempre que se fizesse um filme assim esse filme ganharia todos os prémios existentes, somente porque é sobre um judeu, vítima de horrores indescritíveis. Pois bem, infelizmente, a maior parte dos filmes sobre o escravo afro-americano, ou sobre os conflitos raciais pre-1960 na América, seguem uma fórmula semelhante, pouco oferecem de novo uns em relação aos outros, mas são, invariavelmente, sempre referenciados como grandes obras, menos pelo que oferecem, e mais pelo seu tema, pelo seu conceito teórico. E isso não pode ser. Agora que começo a escrever estas linhas, na manhã de segunda feira, já sabemos que ’12 Years a Slave’ (em português '12 Anos Escravo') ganhou ontem à noite o Globo de Ouro de Melhor Filme, o que é, obviamente, uma grande palermice, e permitam-me que explique, brevemente porquê.
Mas antes permitam-me que faça um ponto prévio. Quero começar por dizer que não sou, nunca fui e nunca serei racista. Mas não tenho um único problema de consciência em dizer mal de um filme sobre o racismo, porque sei que não estou a atacar o seu tema, mas sim o filme. Como já disse várias vezes neste blog, um tema de um filme não é o filme. Um filme não é bom porque é sobre drogados ou homossexuais ou a escravatura. Pode ser sobre estas coisas e ser bom, uma obra-prima, mas também pode ser sobre estas coisas e ser mediano, ou mau. Agora na América existe um grande problema. A escravatura acabou há 200 anos, e a discriminação racial há mais de meio século (claro que haverá sempre racistas e xenófobos em todo o lado, mas isso não significa que estas excepções falem pelo todo), mas continua a haver um grande complexo em relação a estas questões. Como diz a personagem de Edward Norton em ‘25th Hour’ (2002) sobre este tema ‘Slavery ended one hundred and thirty seven years ago. Move the f#*k on!’. Mas a verdade é que na América muitos membros da comunidade afro-americana não querem avançar. E o facto de continuarem a fazer este tipo de filmes é menos para homenagear o passado, para retratar uma história interessante e inspiradora de um negro período histórico (que se poderia passar em qualquer lugar, em qualquer altura – afinal escravatura existiu noutros séculos, noutros pontos do mundo!), mas mais uma forma de continuar a chantagear a rica comunidade branca americana com a memória do que os seus antepassados fizeram. Alguns membros influentes da comunidade afro-americana, como Oprah Winfrey, não querem que os Americanos alguma vez esqueçam. Porque então podem exercer sempre a chantagem. A chantagem que permite, por exemplo, que um filme mediano como ’12 Years a Slave’ ganhe o prémio principal dos Globos de Ouro. A chantagem que gera o medo: o medo de criticar um filme destes. A divisa é: criticar um filme destes é ser racista. Errado. Criticar um filme destes é simplesmente criticar um filme. Ser racista é outra coisa. E aí está a diferença. Por exemplo, ainda o ano passado ‘Django Unchained’ (2012) foi fortemente criticado por esta comunidade. Porquê? Que tem Django de mal? Pensei um pouco sobre isto e a conclusão que cheguei foi que, pura e simplesmente, ‘Django Unchained’ tem um afro-americano (Samuel L. Jackson) que está satisfeito com a sua condição de escravo, quer ser como os brancos, e odeia os outros escravos. E isso não pode ser. Estes filmes têm regras claras, que ’12 Years a Slave’ segue à risca. Todos os afro-americanos são bons. Todos os brancos (excepto o ocasional para criar o contraponto e também não ofender completamente a comunidade caucasiana) são maus. Portanto é uma afronta ‘Django Unchained’ ter um afro-americano mau. Há brancos bons e brancos maus, afro-americanos bons e afro-americanos maus, como em todo o lado, em todas as raças, em todo o Mundo. Mas é um tabu do lobby afro-americano dizer isto. Todos os escravos têm que ser bons. Independentemente de isso ser real ou não. Samuel L. Jackson retractou um escravo mau, como de certeza houve muitos. Sacrilégio.
A grande infelicidade deste tipo de cinema americano é que os filmes não passam para além deste estereótipo e sentam-se à sombra da bananeira (leia-se ‘o seu tema’) para serem reputados. Esquecem-se de todas as qualidades cinematográficas que um filme tem, pode e deve ter. Por outro lado, felizmente, há filmes que sobem (ligeiramente) acima desta condição. ‘The Help’ (2011), por exemplo, foi uma surpresa agradável, porque ultrapassava a estereotipização para se focar no aspecto humano. ’12 Years a Slave’ também, mais pelo seu brilhantismo técnico e de actuação. Contudo, ambos estes exemplos, e outros mais, acabam por se sentir compelidos a seguir as regras estipuladas pelo lobby e revertem, mais cedo ou mais tarde, para a unidimensionalidade da história padrão que estão a retratar. Neste contexto, a simplicidade do argumento de ’12 Years a Slave’ é quase absurda. Há um afro-americano livre, do Norte (Chiwetel Ejiofor) que é raptado e levado para o Sul onde é vendido como escravo. Aí salta de dono em dono, tratado como todos os escravos eram tratados, até ao dia, 12 anos depois, em que é posto em liberdade, quando as autoridades provam quem ele na realidade é. Praticamente só interessa ao filme a parte do meio, ou seja, a forma como ele é tratado, neste caso mal tratado; espancado, chicoteado, forçado a trabalhar, tratado como um cão. Qual o objectivo? Inspirar? Uma história de coragem e perseverança? Não digo totalmente que não, mas o principal que extravasa a tela é quase simplesmente a mensagem: ‘vejam o que os brancos faziam aos afro-americanos antes da guerra da secessão’.
Como disse, o que mais me surpreendeu no filme foi a técnica de realização de Steve McQueen (não confundir com o famoso actor dos anos 1960). Não tendo visto ‘Hunger’ (2008) nem ‘Shame’ (2011) foi para mim uma estreia em filmes realizados por McQueen e tenho a dizer que fiquei muito impressionado com a capacidade do realizador em captar o pormenor, na sua escolha estética de planos de câmara e do fluir das cenas, e na sua visível capacidade na direcção de actores. Do ponto de vista técnico e cenográfico, ’12 Years a Slave’ tem para mim uma das notas mais altas, se não a mais alta, dos filmes deste ano. McQueen não tem medo em pausar quando é preciso, para assentar as emoções. Não tem medo de ficar 45 segundos a focar simplesmente um rosto e isso dá humanidade e qualidade ao filme. E isto funciona porque o filme está rico em grandes interpretações. Se relegarmos para segundo plano a carrada de estrelas que pontilha o filme em papeis secundários (Brad Pitt, Paul Giamatti, Benedict Cumberbatch) – uma táctica clássica para vender este tipo de filmes – descobrimos na performance de Ejiofor, na de Michael Fassbender com o maléfico dono da plantação e da jovem Lupita Nyong'o no papel de outra escrava, 3 actuações de peso, cada uma enveredando por um caminho diferente e nenhuma vítima do overacting (que ‘The Help’, por exemplo, tinha em demasia). Ejiofor está incrivelmente contido (tem muito menos falas do que aqueles que estão à sua volta), mas expressa-se muito bem através de milimétricas flutuações da face (as tais que os planos de McQueen captam). Fassbender equilibra as várias facetas e as contradições da sua personagem e Nyong'o é tão frágil mas tão incisiva quanto deve ser. Na relação destas três personagens, na plantação, está o cerne emocional do filme, muito mais, por exemplo, do que na relação de Ejiofor com a sua família, que aparecem apenas no início e no fim do filme, e que supostamente são o seu motivo principal para sobreviver a tudo o que lhe acontece. Aliás, o filme nunca nos mostra o que fez a mulher dele durante 12 anos. Foi à polícia? Denunciou o desaparecimento? Tentou encontrá-lo? Não se sabe. Aparentemente não. Ficou em casa à espera que ele aparecesse de volta, como acontece no final (não é surpresa, está em qualquer sinopse, até a mais curta, do filme).
Agora, mais uma vez infelizmente, apesar da qualidade da realização e das actuações principais, apesar daquilo que o filme poderia ser, quase sem esforço (e aí merecer os prémios todos), acaba por ser inevitavelmente atraído para o vulgar, para o banalismo dos lugares comuns característicos de todos os vários ‘filmes de escravo’ que já foram feitos (e que certamente irão continuar a ser), e acaba por se subjugar aos dogmas do tal lobby. Não há um único afro-americano ‘mau’ em todo o filme. Têm todos excelentes personalidades, são todos vítimas e poucos ou nenhuns têm desejos de vingança sangrenta contra os brancos. Apresentam, em vez disso, um ódio ligeiríssimo e contido, que se manifesta através da compreensão e da aceitação trágica e heróica da sua situação. Ejiofor salta, de uma forma ciclicamente enervante, entre um ‘dono mau’ e um ‘dono bom’, sempre alternadamente, sendo que as partes com o ‘dono bom’ são rapidamente despachadas, para que o filme mostre o que verdadeiramente lhe interessa. E a linha da história é previsível, unidimensional e com pouco significado. As personagens retratam uma era sem serem exactamente estereotipadas, mas o filme não consegue evoluir para além do seu monótono enquadramento histórico. Temos que ver o homem a sofrer e a levar chicotadas durante 2h. E basicamente é isto.
Não vi ‘Shame’, mas foi famoso pelas suas cenas explícitas de depravação. Como tal esperava que McQueen filmasse cenas de tortura a escravos com um enorme realismo, estilo ‘Passion of the Christ’ no Sul Americano. Mas tal não acontece. Há cenas fortes, é certo, mas sempre, ‘para a família’, 'para o público alargado’. Ou seja, para render na bilheteira e todos poderem ver sem ficarem muito chocados. A reacção do público esperada é aquela exactamente que ocorreu ontem atrás de mim no cinema. A rapariga passou o filme todo a dizer coisas como ‘Coitadinho’, ‘Ai Jesus’, ‘Ai Meu Deus’, cada vez que um afro-americano era chicoteado ou tratado como gado. E é este o tipo de reacção que o filme quer gerar, especialmente para o público pouco familiarizado com História Mundial. Mas este retrato, tirando ser feito por um realizador de qualidade, pouco se afasta, em termos de argumento, ritmo e significado, daquilo que se pode encontrar num documentário do Canal de História. Aliás, não vejo grande diferença entre outras reconstituições que já vi nesse canal e este filme. A única diferença é que esta adaptação custou muito mais dinheiro e chega a um público mais alargado. O mesmo público que está apenas interessado em ficar ‘comodamente chocado’ com estas cenas, mas que depois exclama, como exclamou esta menina atrás de mim ‘Ai que seca’, no tal plano de 45 segundos, belíssimo, sem diálogo, sem música, da cara de Ejiofor.
Portanto, resumindo, para mim ’12 Years a Slave’ é um filme que me deixa um sabor amargo. A realização e actuação são excelentes. Consegue reproduzir emoções somente por imagens, como na extraordinária cena em que Ejiofor começa a cantar com convicção após todo o mal que lhe foi feito (a melhor cena do filme), em vez de o fazer com frases infindáveis (e inevitavelmente ocas) de argumento. Mas por outro lado debita cena após cena no mesmo tom, não sai de uma rota já há décadas pre-estabelecida para este tipo de filme, por mais enfoque que tenha no emocional/humano acaba sempre por descair para o lado do histórico, e por fim estraga tudo com a sua necessidade de ‘transmitir a mensagem’ – aquela mensagem que o lobby nunca quer deixar ninguém esquecer, para poder continuar a exercer a sua chantagem. A personagem de Brad Pitt, por exemplo, nem sequer é introduzida filmicamente. Simplesmente aparece a meio de uma cena, prontinha para debitar um conjunto de frases anti-escravatura (ainda ninguém o tinha feito), completamente artificiais mas que farão certamente chorar a Oprah.
Acho que este é um filme que poderá merecer ser visto. Não para educar, não para chamar a atenção para um drama social, não porque é uma obra-prima. Mas apenas porque tem qualidade, nomeadamente ao nível da técnica cinematográfica. Ao nível da história, do arco da personagem e da mensagem já está mais que batido. Mas é daqueles filmes que simplesmente é crime criticar, é crime não galardoar. Será apregoado como uma maravilha, ganhará prémios e chocará comodamente o seu público, como o conto de fadas social, ostensivamente inspirado numa história verídica, que é, e isso certamente fará os produtores muito felizes. Mas para mim perdeu-se aqui uma excelente oportunidade de criar um filme com uma enorme dimensão, cinematográfica, emocional, humana. Depois de ter começado tão bem, deixou-se cair no cliché, no conforto do lugar comum. E quando isso acontece não há nada a fazer.
E já agora, será que alguém pode tocar o tema do filme 'World Trade Center' (2006), composto por Craig Armstrong, a Hans Zimmer, compositor de '12 Years a Slave'? É que as semelhanças entre os temas dos dois filmes são, no mínimo, suspeitas...
E já agora, será que alguém pode tocar o tema do filme 'World Trade Center' (2006), composto por Craig Armstrong, a Hans Zimmer, compositor de '12 Years a Slave'? É que as semelhanças entre os temas dos dois filmes são, no mínimo, suspeitas...
Mike, subscrevo integralmente esta critica. Este é o pior filme de Steve McQueen em The Hunger (2008), a técnica, as cenas explicitas levadas ao limite e a simplicidade nos planos são sublimes. Abr.
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