Realizador: Peter Jackson
Actores principais: Ian McKellen, Martin Freeman, Richard Armitage
Duração: 161 min
Crítica: ‘The Hobbit: The Desolation of Smaug’ (doravante Hobbit II) ilustra perfeitamente as consequências de transformar um livro de 300 páginas em 3 filmes. Ou seja, é um filme em que se passa muita coisa mas em que na realidade não se passa nada. É um ganhar de tempo constante, contínuo, inevitável, para que o filme possa acabar mas a história ainda não, para permitir que a coisa possa ainda abarcar mais um filme de 3 horas: ‘The Hobbit: There and Back Again’, que chegará no final de 2014 para completar a trilogia de prequela do ‘Senhor dos Anéis’.
Isto obviamente, não é invulgar na nossa presente era cinematográfica em que as sequelas e as trilogias abundam. Uma coisa é quando se realiza filme a filme, e cada filme tem que ter o mínimo de interesse por si, e uma história que se abre e que se fecha num arco minimamente condigno. Outra coisa é quando já há a garantia que o pacote tem que abarcar dois ou três filmes, e toda a gente (incluindo o público) sabe isso. No caso de ‘Hobbit II’ isto é extremamente escandaloso e abertamente assumido. O filme termina porque Peter Jackson e os senhores da MGM /Warner Brothers simplesmente carregaram no ‘stop’ do seu telecomando. Tanto podia ter acabado onde acaba como 10 minutos mais cedo ou mais tarde. Não há um clímax, uma oscilação emocional, nem mesmo um momento de ponderação, como houve em ‘The Two Towers’ (2002), onde, se o leitor bem se recorda, o discurso heróico de Sam ligava todas as personagens no mais belo estilo ‘cliffhanger’. Em ‘Hobbit II’, não há nada disto, e as letras ‘directed by Peter Jackson’ aparecem de repente, sem que o filme mude um milímetro de tom. Aliás, o filme tem o mesmo tom durante 3 horas. É um tom de ritmo elevado, de acção contínua, de excelente cenografia e de muito menos conversa do que em ‘Hobbit I’, é certo, mas não deixa de ser, por causa disso, um tom extremamente monótono.
Ao contrário de ‘The Two Towers’, que tinha como peça central o ataque a Helm’s Deep (que permitia criar um pico de emoção digno de um terceiro acto) ou do confronto Luke/Vader em ‘The Empire Strikes Back’ (1980), da guerra dos clones no Episódio II (2002) ou da colisão dos dois Marty Macflys em ‘Back to the Future Part II’ (1989), que funcionavam do mesmo modo, ‘Hobbit II’ tem o mesmo interesse como segunda película como teve recentemente ‘Machete Kills’ (crítica aqui) ou outros filmes do meio menores que me vêm à memória como o segundo ‘Artur e os Minimeus’ (2009). ‘Hobbit 2’ é bem melhor que estes dois exemplos, obviamente, e continua a dar mostras que esta saga do Senhor dos Anéis é um exemplo máximo de fazer bom cinema, mas a verdade nua e crua é que isolado tem muito pouco interesse em termos de história, pouco a faz avançar, e não oferece uma maior profundidade emocional às suas personagens, ou seja, estas não evoluem em relação ao primeiro filme. O exemplo de Bilbo é claríssimo. Muitas vezes durante este filme é um mero aparte, algo que Frodo nunca foi na trilogia original. ‘Hobbit II’ só funciona porque faz parte de um universo com o qual o público já está completamente familiarizado e só terá sentido uma vez a saga completa. Aí, no conforto do seu lar, cada espectador acabará de ver ‘Hobbit II’ e imediatamente começará a ver ‘Hobbit III’, como se do mesmo filme se tratasse. Mas agora, ainda sem esse terceiro filme disponível, o produto isolado que foi mandado para os cinemas nesta época festiva não faz grande sentido. Talvez por isso a data de lançamento original do terceiro filme era muito mais próxima da do segundo, ou seja, daqui a menos de meio ano. Mas inevitavelmente essa data já foi adiada para o próximo Natal…
Por muito que se esforce Peter Jackson, Hobbit não é Senhor dos Anéis. O ‘Senhor dos Anéis’ é um livro intenso e denso, de mais de 1000 páginas, com apêndices e que está associado a uma mitologia bem definida. Fazer três filmes foi hercúleo em várias vertentes, incluindo a da condensação. As edições expandidas são prova de que havia ainda muito material que poderia ser incluído e só não o foi porque senão a saga ficava com 20 horas, em vez de 11. Já ‘Hobbit’ é um livro para crianças com pouco mais de 300 páginas, de acções simples, ‘set pieces’ bem definidas e com morais claras. ‘Hobbit’ daria no máximo 2 filmes, nunca 3. A opção de três é puramente ‘de gabinete’. É só ver a recentemente lançada versão expandida de ‘Hobbit I’. Não acrescenta absolutamente nada à versão de cinema. Tem apenas mais 20 minutos e adiciona um pedaço de diálogo aqui, um plano novo ali, e duas cantorias. A história está tão esticada para conseguir dar 3 filmes que literalmente não se consegue sacar mais nada, a não ser que se invente. ‘Hobbit II’ não só inventa como atribui uma importância gigantesca a cada um dos eventos marcantes do livro. No livro são apenas pedaços de uma aventura para cativar a imaginação das crianças, muitas vezes sem grande profundidade dramática. No filme tornam-se epopeias épicas repletas de acção que tentam imitar a chama de ‘Senhor dos Anéis’ sem infelizmente o conseguir.
Para além disso, como toda a boa prequela que se preze, há ainda a grande necessidade que todos os filmes da trilogia, e este segundo filme em particular, expliquem como é que muitas coisas da trilogia original apareceram. Esta necessidade, que seria inexistente caso ‘Hobbit’ tivesse sido filmado primeiro, dá azo a muitas cenas ‘novas’ que tentam dar uma consistência épica a ‘Hobbit’ o filme, que literalmente não existe em ‘Hobbit’ o livro, bem como a um constante piscar de olho aos fãs, que é engraçadito sim, mas pouco relevante. O longo olhar que Bilbo deita a Rivendell quando se afasta dela em ‘Hobbit I’ é um exemplo crasso. Só faltou a frase ‘será que alguma vez voltarei aqui?’. Felizmente, houve o bom senso de não a dizer, mas a ideia está subentendida. Claro está, o público sabe bem que Bilbo irá lá voltar, pois viu-o na trilogia original, e esta cena só está aqui para fazer essa ponte. Do mesmo modo, a aparição de Elijah Wood (Frodo) no início do primeiro filme nunca aconteceria caso ‘Hobbit’ tivesse sido filmado primeiro. Esta tendência está presente constantemente ao longo quer de ‘Hobbit I’, quer de ‘Hobbit II’ (principalmente nas partes que concernem o anel e a ascensão de Sauron) e obviamente estará ainda mais premente em ‘Hobbit III’, quando os eventos tiverem de encaixar direitinhos naqueles de ‘Fellowship of the Ring’.
Assim sendo minha crítica a ‘Hobbit II’ assenta em três grandes ideias. Primeiro o filme estica até quase rebentar os eventos da meia dúzia de capítulos presentes mais ou menos a meio do livro. Os nossos heróis começam a avançar pelas florestas à saída de Goblintown (final de ‘Hobbit I’), perseguidos por Orcs e outras criaturas vis, refugiam-se na cabana de Beorn (um homem urso), penetram em Mirkwood, são capturados pelos elfos da floresta, fogem naquela que é a melhor sequência do filme (a descida do rio nos barris) e finalmente rumam até Laketown nas margens da Misty Mountain, o seu objectivo. Depois de algumas aventuras nesta cidade, conseguem introduzir Bilbo na montanha do dragão, onde este terá o grande momento para se provar, na tentativa de roubar a Arkenstone, a jóia dos anões. Como disse, o ritmo do filme é elevado, passa de sequência de acção para sequência de acção de uma forma cativante e bem coreografada, mas há sempre algo que não soa bem. E isso é o facto de os eventos do livro não serem suficientemente épicos nem suficientemente dramáticos para justificarem a transmutação para este tipo de cinema, tal como ocorrera, com excelentes resultados, em ‘Senhor dos Anéis’. Depois as sequências tornam-se longuíssimas porque o filme tem de tomar o seu tempo. O filme dá atenção a tantas personagens que Bilbo se perde lá no meio. Bilbo, versão ‘Hobbit II’, é uma das personagens mais unidimensionais de toda a saga, o que parece um paradoxo. A sua psicologia altera-se de acordo com a vontade do filme. Quando o filme quer provar que o Anel está a consumi-lo, Bilbo fica agastado, mal-humorado e Gandalf até reforça a ideia: ‘Mudaste Bilbo Baggins, já não és o mesmo Hobbit que saiu do Shire’. Mas depois de estabelecer isto, do filme provar o seu ponto, Bilbo, tal como retratado pelo actor Martin Freeman, reverte ao seu estado semi-humorístico habitual (no qual este actor está muito mais à vontade) e não mais o abandona até ao final abrupto do filme.
Segundo, o filme inventa sequências e personagens que nem sequer estão no livro para dar mais interesse dramático e mais epicidade ao argumento. A mais escandalosa é a introdução (invenção!) da elfa Tauriel, interpretada por uma sempre sorridente Evangeline Lilly, mesmo nas partes mais dramáticas. Aparentemente foi para apelar ao público feminino e introduzir personagens femininas num livro/filme claramente masculino. Esta é uma guerreira elfa que se emparelha com o Legolas de Orlando Bloom (mais um introdução que só faz sentido por ‘Senhor dos Anéis’ ter sido realizado antes) – mais gordo, mais agastado e igualmente mau como fora antes como herói de acção – para auxiliar a companhia de anões perante a ameaça dos goblins. Tauriel também está no centro de um triângulo amoroso extremamente forçado que inclui Legolas e um dos anões, Kili (Aidan Turner) que eu só posso deduzir que tenha sido escolhido ao acaso pela dupla de argumentistas (que são ambas mulheres, para quem não sabe - Fran Walsh e Philippa Boyens). Este triângulo é bem pior do que o existente em ‘Two Towers’ que já havia sido fortemente criticado pela sua superficialidade.
E terceiro o filme tem estruturas conceptuais de cena e introduz pequenos detalhes que nunca existiriam se ‘Hobbit’ tivesse sido feito primeiro, e que apenas servem para que o público faça a ponte, desesperadamente, ao ‘Senhor dos Anéis’, e até, numa única vez (na sequência inicial) a ‘Hobbit I’, como se Jackson quisesse também vender o peixe a todos aqueles que não viram o primeiro filme (mais decisões ‘de gabinete’). As sequências com Gandalf, a partir do momento em que segue um rumo separado da companhia são um claro exemplo desta necessidade de ligação. Parece que estamos a ver as prequelas da ‘Guerra das Estrelas’, que tentam justificar como o Império ganhou forma. Do mesmo modo, a re-ascensão de Sauron e dos seus exércitos tem lugar de destaque, e aqui o filme vai buscar inspiração a muitas outras fontes literárias de Tolkien sobre os eventos pré ‘O Senhor dos Anéis’, que não são retratados em ‘Hobbit’ que é uma aventura muito mais focada. Não me parece mal esta ideia, pois assim criam-se duas trilogias que reproduzem a mitologia da Terra Média (para além de ser a única forma de alongar os filmes), mas como disse estes eventos não se adequam ao tom da história base que existe em ‘Hobbit’ e portanto o filme acaba por ter sempre uma aura que muito antes de entranhar estranha. Perde-se o tom humorístico que existia em ‘Hobbit I’ (criticado mas que na realidade é fiel ao tom do livro) e ganha-se um adensar dramático claramente paralelo a ‘Senhor dos Aneis’, mas que não é credível.
E por fim há as muito estranhas semelhanças conceptuais à trilogia original. Já ‘Hobbit I’ as tinha. O filme estrutura-se como ‘Fellowship of the Ring’ - o começo no Shire, o formar da companhia, a ida a Rivendell, a montanha no horizonte. ‘Hobbit II’ acaba por emular ‘The Two Towers’. O reino de Laketown, por exemplo, com o sei rei e um adjunto manhoso, fazem logo lembrar o reino dos Cavalos e Wormtong. Obviamente muitas destas semelhanças foram introduzidas pelo próprio Tolkien nos seus escritos, mas é notória alguma perda de imaginação por parte dos criadores do filme e da necessidade de introduzir em ‘Hobbit’ algo que o livro nunca possuiu. ‘Hobbit’ e ‘Senhor dos Anéis’ são dois livros bem diferentes. Desesperadamente, Jackson tentou fazer duas trilogias semelhantes. E por isso falha.
No final fiquei muito desapontado com este filme. Não em termos do pacote visual, do design de produção, da criação do universo, dos efeitos especiais. Aí todos estes técnicos e criadores, que foram ganhando vários óscares entre 2001 e 2003, já nos provaram que são os melhores do planeta, e continuam a prová-lo cena após cena, sequência após sequência, na trilogia do ‘Hobbit’. Mas o problema deste filme está em algo mais profundo; nas escolhas conceptuais, na direcção que o argumento decidiu tomar. A trilogia do ‘Senhor dos Anéis’ foi ouro, um trabalho inicialmente humilde, honesto, de grande dedicação de apaixonados por Tolkien, que foi um gigantesco risco (poderia ter sido um brutal fiasco de bilheteira), mas que provou ser o melhor filme de aventuras (se o pensarmos como um todo) do Cinema pós moderno. Já a decisão de fazer ‘Hobbit’ não surgiu de dedicação e perseverança. Surgiu de um gabinete e de uma vontade de fazer rios e rios de dinheiro. E isto é triste. ‘Hobbit’ daria um filme engraçado e divertido, um ‘Goonies’ com brilhantes efeitos e uma realização exímia. Nunca o imaginaria sob a forma de épico.
Para mim ‘Hobbit II’ é o pior filme da saga. Isto significa que é muito melhor que a maior parte dos filmes que hoje em dia chegam às salas de cinema, mas é extremamente decepcionante no contexto desta sextalogia. Sabemos que o ‘Hobbit III’ de 2014 será excelente, pois tal como ‘Revenge of the Sith’ não só levará a aventura até ao fim (finalmente!) como encaixará, em todas as suas histórias secundárias, direitinho nos eventos de ‘O Senhor dos Anéis’. Nem um nem outro destes percursos que o filme terá que tomar poderá correr mal, pois o caminho já está completamente definido. Agora ‘Hobbit II’, apesar da sua enorme qualidade visual e de produção, é um filme monótono e que vai passando de cena em cena somente para poder chegar ao fim e remeter tudo para o terceiro filme. Mesmo a cena entre Bilbo e o dragão desaponta, tal como a cena entre Bilbo e Gollum havia desapontado no primeiro filme. Não porque estão mal realizadas (não estão) mas porque os eventos do livro sinceramente não dão para mais. São sequências simples, pouco emotivas, mas que estimulam fortemente a imaginação. Mas quando a imaginação não precisa de ser estimulada porque as imagens reflectem os parágrafos, então muita da magia se perde. ‘Hobbit II’ não tem grande magia porque quer moldar a história para aquilo que ela não é, e é esse o seu grande mal.
Ah, já me esquecia. Howard Shore, o compositor, está outra vez brilhante.
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