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Atlantic City

Ano: 1980

Realizador: Louis Malle

Actores principais: Burt Lancaster, Susan Sarandon, Kate Reid

Duração: 104 min

Crítica: Louis Malle. Pouco se escreve sobre Louis Malle, o realizador francês que iniciou a carreira nos anos 1950 como assistente de realização dos filmes subaquáticos de Jacques Cousteau e que começou a fazer filmes no final dessa década como um dos membros da gloriosa Nouvelle Vague Francesa. Nomes como Truffaut, Godard ou Eric Rohmer são muito mais famosos e mais recordados, e parece-me incrível como é que Malle, que fez filmes até mesmo à sua morte em 1995, seja mais uma paixão quase secreta de cinéfilos do que propriamente um marco que a história do cinema recorda.

Foi na minha adolescência que comecei a ver os filmes de Malle e imediatamente me apaixonei por filmes como o seu primeiro ‘Ascenseur pour l'échafaud’ (1958), a sua última grande obra ‘Au revoir les enfants’ (1987) ou, acima de todos os outros, o incontornável ‘Lacombe Lucien’ (1974), uma obra-prima e um dos filmes da minha vida. O que eu adoro em Malle, e o motivo pelo qual sempre terá um lugar especial no meu coração cinematográfico, é o facto de, mesmo sem recorrer a situações emocionais exacerbadas, a píncaros climáticos, consegue sempre chegar ao âmago do sentimento humano, e mostrar a verdadeira natureza das suas personagens. Só tem que as filmar, e os planos são sempre suficientes para que o público entenda. Sem diálogo, sem palavras a mais, só os planos, só a imagem. E desta simplicidade formal surge um resultado muito mais poderoso e muito mais impactante.

‘Atlantic City’ surgiu em 1980, após ‘Pretty Baby’ (1978), também em inglês, e que é hoje famoso em alguns círculos por ter revelado Brooke Shields ao mundo. Por outro lado, conta também com Susan Sarandon, então em início de carreira, e que tinha uma relação com Malle fora do ecrã. Esta relação, fora e dentro do cinema, continuou em ‘Atlantic City’ onde Sarandon é a actriz principal.

‘Atlantic City’ não é para mim um filme tão bom como o magnífico ‘Lacombe Lucien’, mas é um dos melhores filmes da carreira de Malle (dos que eu vi até agora pelo menos!). Em inglês, quase exclusivamente com actores americanos e obviamente filmado na cidade americana, este foi o filme de Malle mais expressivo e mais famoso com os críticos e o público americano contemporâneo (apesar de na realidade ser uma co-produção Francesa-Canadiana) e acabou por ser nomeado para 5 Óscares (Melhor Filme, Realizador, Actor, Actriz e Argumento), apesar de não ter ganho nenhum, devido à concorrência de peso de ‘Chariots of Fire’ (crítica aqui), em termos de Melhor Filme e Argumento, ‘Reds’ (crítica aqui) em termos de Melhor Realizador, e das performances de Henry Fonda e Katherine Hepburn em ‘On Golden Pond’.

O filme passa-se na cidade de Atlantic City, no estado de Nova Jersey, onde o jogo, tal como em Las Vegas, é legalizado. O filme não embeleza a cidade e mostra-a cruamente, como um amontoar decrépito e decadente de edifícios e pessoas, imersas no constante nevoeiro que surge das margens do Oceano Atlântico. Um ladrãozeco de meia tigela, interpretado por Robert Joy, e a sua namorada grávida roubam uma mala cheia de drogas a uns mafiosos e fogem para Atlantic City, onde acham que se poderão esconder durante uns tempos no apartamento da ex-mulher dele (e irmã dela!) – Susan Sarandon. Sarandon trabalha num dos casinos da cidade, e o sonho dela é um dia trocar a decrepitude do jogo de Atlantic City pelo esplendoroso jogo do Mónaco. Relutante ela aceita acolhe-los por uns tempos, sem saber da fortuna que eles têm escondida na bagagem.

Os primeiros minutos do filme são excelentes. Praticamente não há diálogos e com uma incrível fluidez visual o público fica imediatamente embrenhado na acção, primeiro no roubo e depois na interacção de três personagens, a de Joy com Sarandon e depois a de Sarandon com o seu vizinho da frente, um Burt Lancaster com quase 70 anos, que voyeuristicamente a observa através da janela. Sem explicações senão a fluidez da câmara e dos planos ficamos a saber praticamente tudo o que há para saber para nos enquadrar com estas personagens. Brilhante.

Joy, que é a personagem menos importante deste trio (é apenas um catalisador), é rapidamente morto pelos capangas mafiosos, sem que antes esconda as drogas no apartamento de Lancaster. Este foi toda a vida um ladrão de golpes modestos que sempre aspirou ser um grande gangster sem nunca o conseguir. Agora, velho e também decrépito, perdeu toda a esperança e a sua alma. Mas quando, após a morte de Joy, descobre no seu apartamento o malfadado saco com as drogas, de repente os sonhos de uma vida inteira parecem que se poderão tornar realidade. Fazendo dinheiro rápido, Lancaster começa a ostentar como sempre sonhou, reencontra a sua alegria de viver, começa a cuidar de Sarandon e a mimá-la como ela sonhara que os ricos do Mónaco a mimariam e, apesar da notória diferença de idades, começam a apaixonar-se verdadeiramente um pelo outro. Por momentos, ambos pensam que terão um belo e tranquilo futuro pela frente, reencontrando o seu lugar na vida, reencontrando a esperança, e vivendo os seus sonhos. Isto claro, nunca durará, e o espectador sabe bem isso. Mas o filme oferece essa breve esperança antes de a fazer desabar sobre as personagens. Os traficantes de droga irão estar sempre no encalço de Lancaster e Sarandon, à procura do dinheiro, das drogas e da vingança; uma ameaça que se torna mais real e mais inquietante à medida que as horas passam e o cerco se aperta. Pressionados e na iminência de perder os sonhos recém-alcançados, o casal vai ter que tomar decisões e agir, confrontando todos os seus medos e todas as suas esperanças para o futuro…

A acção do filme é muito contida temporalmente (passa-se todo em menos de dois dias) o que permite acrescentar mais um elemento de pressão à trama. A maior parte das pessoas fica uma vida inteira à espera de viver, mas quando a vida bate à porta, não há tempo para ponderar. A felicidade é efémera por isso tem que ser aproveitada, mas é preciso lutar para aproveitá-la e fazê-la durar, nem que seja mais um pouco. Para além desta moral que está subjacente, o filme tem uma construção de tensão brilhante (à medida que o cerco se aperta sobre as personagens principais) e tem uma concepção formal tão decrépita quanto a natureza das suas personagens e a fealdade da cidade que serve de pano de fundo à sua história. O filme desce quase tão baixo quanto as suas personagens, mas nunca perde a sua perfeição técnica e estética, o que parece um paradoxo, mas é o que realmente acontece. E no meio desta podridão há um farol chamado Burt Lancaster. Como o velho saudosista mas que nunca foi alguém, a criança com sonhos de gangster que nunca cresceu, o aldrabãozote e mestre da burla e dos pequenos crimes mas que no fundo, no fundo, tem um bom coração, Lancaster tem um dos papeis da sua vida. Sarandon já não era propriamente uma estreante no cinema mas estava no seu momento para desabrochar e fá-lo perfeitamente. Aproveitou perfeitamente a sua oportunidade e provou que poderia ser (como foi) uma das grandes atrizes da sua geração. O filme conta também com fortes participações da actriz Katz Reid, no papel de uma viúva de um gangster com quem Lancaster mantém uma relação fugaz até conhecer Sarandon, e do glorioso Michel Piccoli numa breve aparição no papel de Joseph.

Tudo somado ‘Atlântico City’ é um estudo profundo sobre as consequências de envelhecer, sobre o encontrar de um lugar na vida se se é um zé-ninguém, sobre vidas, novas ou velhas, que se arrastam sempre com sonhos mas nunca com esperanças, e da forma como, por breves momentos, estas vidas se podem redimir e encontrar um consolo nas pequenas coisas, numa pequena aventura. Mesmo assim, é um filme que tem tons muito mais leves do que aqueles que são usuais nos mais brilhantes filmes de Malle, embora não sejam inteiramente novidade (há o divertido 'Zazie dans le metro’, 1960, e a comédia feminina do velho oeste ‘Viva Maria’ com Brigitte Bardot e Jeanne Moreau, realizado em 1965).

Brilhantemente dirigido e com um elenco estelar, ‘Atlantic City’ é, acima de tudo, um estudo íntimo de personagens. E, como disse, é Lancaster que se torna o epicentro do filme, eclipsando todos os outros actores. A sua performance torna-se, à medida que o filme avança e a sua personagem ganha mais peso, completamente hipnotizante. Mais de vinte anos depois dos seus mais extraordinários papéis em ‘Gunfight at the OK Corral’, ‘Sweet Smell of Success’ (ambos 1957), ‘Elmer Gantry’ (1960, pelo qual ganhou o seu único Óscar), ‘Birdman of Alcatraz’ (1962) ou ‘Il Gatoppardo’ (1963), mas não inteiramente esquecido (excelentes aparições em ‘Novecento’, 1976, ou ‘The Island of Dr. Moreau’, 1977 – crítica aqui), Lancaster prova em ‘Atlantic City’ que ainda era um dos melhores actores em Hollywood e abriu caminho para outras grandes performances nos anos 1980 em que interpretou velhotes com genica e genialidade (‘Local Hero’, 1983; ‘Field of Dreams’, 1989), antes do seu falecimento em 1994.

Quando a Malle, não voltaria a fazer um filme em inglês tão bem conseguido, embora esta não tenha sido a sua despedida do grande cinema. Oscilando entre o francês e o inglês, entre o filme artístico/social e o mais comercial, é só olhar para, por exemplo, ‘Au Revoir les Enfants’ (1987) para saber que este grande realizador ainda esteve a fazer o que mais bem sabia fazer até à década de 1990, ao contrário de muitos dos seus parceiros da Nouvelle Vague.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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