Realizador: Sam Wood, (Edmund Goulding)
Actores principais: Groucho Marx, Chico Marx, Harpo Marx
Duração: 96 min
Crítica: Há um e um único filme que vi duas vezes na minha vida em menos de 24h. E esse filme chama-se ‘A Night at the Opera’ (1935). Há muitos, muitos anos, eu e o meu irmão vimo-lo pela primeira vez numa sexta à noite. No sábado de manhã acordamos, olhamos um para o outro, e quase sem pedirmos permissão um ao outro vimo-lo outra vez. Simplesmente tínhamos que o fazer. E desde então já o vi tantas vezes que acho que o conheço de cor, de uma ponta à outra e de trás para a frente. Vejo-o sempre que preciso de rir… rir em quantidade e em qualidade, e não creio que haja um filme na história do cinema que satisfaça tão bem esta pura necessidade humana, a de soltar gargalhadas, gargalhadas que não são ocas, que não são apenas mero escapismo, que ressoam pelo corpo todo e que o ajudam a elevar-se… bem, aonde quer que seja preciso.
Isto porque se ‘A Night at the Opera’ (em português, ‘Uma Noite na Ópera’) não é a melhor comédia alguma vez feita, bem, então está muito perto desse título. Este filme é, sem qualquer exagero, uma hora e meia de risada de início ao fim. Não acredita, leitor? Uma vez, numa sessão de cinema em minha casa, coloquei um conjunto de amigos que raramente viram um filme a preto e branco, que nunca tinham visto um filme dos irmãos Marx (nem sabiam quem eram), nem um filme realizado por Sam Wood, a ver ‘A Night at the Opera’. Cépticos ao início, ficaram todos rendidos. Todos adoraram. ‘A Night at the Opera’ é um filme de apelo universal, porque é construído por uma avalanche de cenas, umas atrás das outras, que aliam a loucura irreverente a uma capacidade de fazer cinema rara e de extrema qualidade.
Claro, nada disto aparece por acaso e a ‘Night at the Opera’ surgiu em 1935 como o juntar perfeito de três grandes peças. Os irmãos Marx já andavam a limar a arte de fazer rir há quase duas décadas, subindo em pequenos passos desde shows rascas de Vaudville, até se tornarem estrelas da Broadway no final da década de 1920 (a deliciosa auto-biografia de Groucho, o mais famoso dos irmãos, ‘Croucho and Me’, conta tudo isto brilhantemente). Depois, surgiu o contrato com a Paramount em 1929, que os permitiu adaptar os seus espectáculos a cinema. Estes primeiros filmes surgiram como uma série de insanidades visuais desconexas mas extraordinariamente irreverentes e engraçadas, que pecavam por marinarem em histórias com argumentos patéticos (desculpas a cuspo para contextualizar as piadas), personagens secundárias unidimensionais e romances sem interesse, para ‘encher’. As partes em que os irmãos Groucho, Harpo e Chico aparecem nestes filmes são geniais. As restantes partes (incluindo aquelas em que aparece o irmão Zeppo – o galã) têm pouco ou nenhum interesse e desvirtuam estes filmes. Mesmo assim, os irmãos foram evoluindo, e quando chegaram a Duck Soup (1933) estavam no auge desta fórmula. Aliás, ‘Duck Soup’ é considerado, para os puristas dos irmãos Marx e alguns críticos relevantes (como Ebert) como o melhor filme dos irmãos, precisamente porque está em estado bruto, precisamente porque é irreverente, surreal e completamente louco. Contudo, eu não sou da mesma opinião. ‘Duck Soup’ é genial, claro, mas falta-lhe qualquer coisa – equilíbrio cinematográfico e argumental. Os puristas dizem precisamente que é a falta destes elementos que torna os irmãos Marx nos irmãos Marx, mas não nos podemos esquecer que eles, mesmo nestes primórdios, estavam a fazer, afinal de contas, cinema, e muitas das desculpas patéticas que usaram nesta fase para criar um produto de 90 minutos constituem artifícios demasiado banais que dão vontade, ainda hoje, de se fazer um fast forward até à parte em que um dos 3 irmãos surge outra vez no ecrã.
Este je ne sais quoi que faltava aos irmãos Marx foi finalmente incutido à força nos seus filmes em 1935. Numa transferência milionária, Thalberg, o menino prodígio da MGM, contratou os Marx à Paramount. E convenceu-os, ou melhor, como diz Groucho na sua autobiografia, praticamente os obrigou a aceitarem novas regras. E essas regras eram bem claras: iriam ser liderados por um bom realizador, iriam ter os melhores argumentistas, iriam ser rodeados por actores secundários mais sólidos, e iriam existir num filme com uma história coerente do início ao fim – em suma, iriam ter todo o poder do sistema de estúdios a trabalhar para eles. Ah e Zeppo já não fazia parte dos planos, o único irmão Marx sem piada. Inicialmente relutantes, os irmãos Marx cederam à pressão, e decidiram deixar-se liderar por Thalberg, um dos directores de produção mais geniais que o cinema já conheceu. Com uma história forte, credível e coerente por detrás, que justifica as piadas e as torna ainda mais criativas e espectaculares, com personagens com profundidade e que geram mais empatia, mas sem abdicar da loucura inerente nem da liberdade criativa que os irmãos possuíam (e que os fazia serem especiais entre os restantes comediantes contemporâneos), ‘A Night at the Opera’ alia o melhor de dois mundos: o brilhantismo do sistema de estúdio ao brilhantismo de 3 irmãos (por esta altura já na casa dos 40 anos) que eram parvoíce em estado bruto e sabiam fazer rir como ninguém. Para além do mais, Thalberg escolheu para realizador Sam Wood, então em ascensão no estúdio, e que estaria associado a algumas das maiores obras da história do cinema. Para além de ‘A Night at the Opera’, claro, realizou dois dos meus filmes preferidos, ‘Goodbye Mr. Chips’ (1939) e ‘Kings Row’ (1942), para além de ter trabalhado também (como realizador não creditado) em ‘The Good Earth’, ‘Wizard of Oz’ e no inolvidável ‘Gone with the Wind’! O resultado destas três frentes é uma obra cinematográfica imaculada do primeiro ao último minuto.
Apesar de tudo, a fórmula base é a mesma dos filmes dos Marx para a Paramount. O que muda são os pormenores e o caminho percorrido para chegar ao mesmo objectivo, mas isso acaba por fazer toda a diferença. Groucho, com o seu bigode pintado, o seu charuto rasca e o seu andar curvado nunca esteve tão perfeito interpretando a sua personagem clássica de um caça fortunas com um nome comprido (aqui é Otis B. Driftwood!), que metralha um trocadilho por segundo, mas que tem, no fundo, um coração de ouro. O objecto dos seus artificiais afectos (que poderão até ser verdadeiros) é, como sempre, a genial Margaret Drummond, uma actriz que nunca se viu em quase nada sem ser filmes dos Marx, fazendo sempre o mesmo papel, mas que nasceu para ser a vítima das peripécias de Groucho. Drummond é aqui, de novo, uma viúva abastada, que desta vez tem interesse em ser patrona das artes, mais propriamente da ópera. Groucho é um agente mandrião que lhe arranja uns contactos com o director da companhia, que também está atrás do dinheiro da viúva (Sig Ruman, mais um daqueles actores secundários clássicos da era de ouro de Hollywood que os cinéfilos amam de filmes como ‘Ninotchka’, 1939 ou ‘Stalag 17’, 1953). A cena inicial, no restaurante, em que as 3 personagens são introduzidas pela batuta de Groucho, é simplesmente um dos momentos mais engraçados que o cinema já viu. Groucho não se cala e as piadas e trocadilhos sucedem-se. Quem se ri de mais corre o risco de perder a piada seguinte, e o espectador é bem capaz de ter de parar a projecção um bocadinho até que a barriga lhe deixe de doer para poder prosseguir. Exemplos de frases de Groucho nesta cena (soam melhor ditas pela voz dele): “Everything about you reminds me of you. Except you.” ou “Have you got any milk-fed chickens? Well, squeeze the milk out of one and bring me a glass.”
O contexto da Ópera proporciona, obviamente, a introdução de algumas cenas musicais, e que muita da acção se passe nos ‘bastidores’, ao estilo dos filmes musicais da década de 1930. Harpo, o soberbo comediante mudo e tocador de harpa, munido da sua cabeleira desgrenhada, da sua corneta e da sua gabardine de bolsos infinitos, e Chico, o espertalhão de sotaque italiano, que toca piano como ninguém e que está sempre à procura de uma maneira fácil de ganhar a vida, interpretam assistentes e aderecistas que, claro está, fazem mais mal à produção da Ópera do que propriamente bem, provocando o caos desastradamente em tudo por onde passam. O vilão é o cantor principal da Ópera, Lassparri, um homem egocêntrico, elitista e cego pela fama que deseja ter a sua co-protagonista Rosa (Kitty Carlisle), uma menina bela e pura que por sua vez está apaixonada pelo nosso herói, Baroni (interpretado por Allan Jones, muito melhor que Zeppo), que canta no coro e que procura a sua grande oportunidade. Este trio principal dá consistência à história, mas não muita obviamente. Lassparri quer Rosa, quer como co-protagonista, quer como amante (e insinua que ela só pode ter uma coisa se for a outra). Rosa quer permanecer no espectáculo mas o seu coração só pertence a Baroni. Baroni, por seu lado, quer-se manter perto de Rosa, e precisa de uma oportunidade para provar como canta bem e como merece um lugar acima da linha do coro. Isto é consistente, simples, apenas de relativo interesse, mas tem uma função muito específica. Serve de pano de fundo mais que adequado para que os irmãos Marx possam justificadamente orbitar à volta desta história a fazer das suas (sempre, diga-se, em prol da história em vez de, como antigamente, da parvoíce pela parvoíce), e é suficientemente não intrusiva para não arruinar o seu estilo nem quebrar a ilusão do seu universo surreal.
Logo após as primeiras cenas de enquadramento, a companhia viaja para a América para começar a nova temporada. A viagem no transatlântico é uma das sequências mais extraordinárias do cinema de comédia. Harpo, Chico e Baroni decidem viajar clandestinos para seguir Rosa, e escondem-se no camarote de Groucho. Depois, na América, o plano é retirar Lassparri da equação e introduzir Baroni, antes da noite de estreia. E depois, claro, a polícia está atrás dos irmãos e Groucho anda sempre a lutar com Ruman pelos afectos (e os milhões) de Drummond! Mais cedo ou mais tarde, mais precisamente na noite de estreia do espectáculo, tudo descamba. E de que maneira!
As minhas cenas favoritas são tantas que sinto alguma dificuldade em resumir o filme. Ou o descreveria todo aqui numa crítica de 50 páginas ou então, desta forma resumida, sinto que estou a deixar de fora tudo o que é engraçado e portanto estou a ser injusto para com o leitor. A melhor solução é mesmo que o leitor veja o filme, mas deixo aqui algumas dicas sobre cenas em que o leitor não pode, de maneira alguma, piscar os olhos. Logo no início há a cena da assinatura do contrato entre Groucho e Chico ("the party of the first part should be known on this contract as the party of the first part"). Esta cena termina com aquele que é para mim o melhor diálogo do filme. Groucho diz a Chico para não se preocupar com a última cláusula do contrato: "Don't worry, that's on every contract, that's what they call a Sanity Clause". Chico responde, no seu inconfundível sotaque italiano: "Ahaha, you canta folla me [como quem diz, ‘you can’t fool me’] there ain’t no Santy Clauss". Brilhante. Depois há a cena do discurso dos aviadores (Groucho, Chico e Baroni disfarçados, a tentar infiltrar-se na América): “we were flying halfway across the Atlantic and guess what, we had forgotten the airplane". Depois, Groucho quer encomendar o pequeno-almoço (“And two-hard boiled eggs!”) uma sequência que descamba em algo totalmente hilariante, onde cerca de 30 pessoas tentam mover-se num camarote minúsculo, e onde cada vez mais pessoas, por motivos diversos, vão entrando, e entrando… e entrando… E, já que estamos a falar de humor visual, que dizer da cena no quarto do hotel, em que os 3 irmãos mais Baroni tentam ludibriar um polícia, constantemente mudando de quarto? O que fazem em imagem real seria completamente digno de um desenho animado do Sylvester ou do Bugs Bunny! E a sequência final, durante a performance da ópera propriamente dita, é puro pandemónio cómico.
Para mim ‘A Night at the Opera’ sempre será o melhor filme dos irmãos Marx. Dois anos depois a mesma equipa de produção e praticamente os mesmos actores regressaram para ‘A Day at the Races’ (1937), mas apesar deste filme ser ainda uma boa comédia, já não é tão bom, e lentamente, filme a filme, os irmãos Marx foram perdendo a chama, e tornaram-se praticamente uma paródia de si próprios. O seu último filme juntos, ‘Love Happy’ (1949) é um esforço quase patético (Groucho já tinha 60 anos – e na sua autobiografia nem o menciona!) e hoje só é recordado por ter uma brevíssima aparição de uma actriz então desconhecida, Marylin Monroe (que, diz-se, Groucho escolheu pessoalmente para o papel de uma fila de uma dezena de raparigas).
‘A Night at the Opera’ permanece então como o pico dos irmãos Marx em Hollywood. Todas as cenas funcionam, todas as piadas são hilariantes, o ritmo e a estrutura são perfeitos, o filme não abranda nem perde a sua dinâmica por um segundo que seja. Por vezes, é comédia num estado puro de perfeição, completamente intocável e inimitável. Groucho nunca disse tão bem os seus ‘one-liners’. Chico e Harpo nunca tiveram uma química tão fascinante. Os actores secundários nunca foram tão bons, e nunca o público teve tanto prazer em ver as cenas com eles, mesmo que os irmãos Marx sejam, por breves momentos, relegados para segundo plano. E as clássicas cantorias (aqui por Allan Jones, um galã da altura) bem como a clássica cena em que Harpo toca harpa e Chico toca piano, conseguem ser suficientemente cativantes para não partir o filme a meio, nem fazer com que ele sofra uma grande quebra, como acontece em outros filmes subsequentes. Por todas estas razões, ‘A Night at the Opera’ foi o seu maior sucesso de bilheteira e tornou-se instantaneamente num filme bem-amado. Os que já eram fãs tornaram-se ainda mais fãs. Os que não tinham ainda atingido o seu humor puderam finalmente abraçá-lo. Thalberg e Wood não fizeram os irmãos Marx. A matéria prima já lá estava toda, e, como se vê em ‘Duck Soup,’ já estava praticamente moldada na perfeição. Faltavam apenas os toques finais, o detalhe, a atenção ao pormenor. E, com ‘A Night at the Opera’ esses pequenos elementos finalmente encaixaram-se no seu devido lugar. ‘A Night at the Opera’ foi o momento dos irmãos Marx. Já tinham uma legião de fãs, mas com este filme atingiram um público universal. E essa universalidade da sua comédia mantem-se ainda hoje, e o seu apelo não morre nem fica datado. Se o leitor não conhece nem os irmãos Marx, nem as suas personalidades cinematográficas, então ‘A Night at the Opera’ é a melhor maneira de começar a conhecer. E se já conhece mas nunca viu este filme, eu garanto, baterá todos os outros, incluindo ‘Duck Soup’, de longe. Se já o viu, bem, não preciso de dizer nada, porque certamente o ama, como eu o amo.
‘A Night at the Opera’ é uma peça genuína. É cinema verdadeiro. É uma comédia intemporal para todo o sempre. É uma infusão de comicidade infinita, e uma nascente de sorrisos. Já o conheço de cor, mas rio-me sempre que o vejo. Rio-me agora, neste momento, só de escrever esta crítica e de pensar nas piadas. Só um punhado de comédias consegue proporcionar isto. Há ‘The Life of Brian’ (1979) com os Monty Python. Há ‘The Court Jester’ (1955) com Danny Key. Há ‘The Bellboy’ (1960) com Jerry Lewis. Há ‘Sherlock Jr.’ (1924) de Keaton. Há as 12 curtas da Mutual de Chaplin. E há, continuará a haver, e sempre haverá, ‘A Night at the Opera’ dos irmãos Marx.
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