Realizador: Richard Fleischer
Actores principais: Charles McGraw, Marie Windsor, Jacqueline White
Duração: 71 min
Crítica: Uma duração de 71 min. Filmado em 13 dias, totalmente em estúdio, a um custo total ridículo de 230 mil dólares. Sem actores famosos. Um realizador quase estreante. Cenários estáticos de estúdio, com as câmaras hand-held (um dos primeiros filmes a usá-las, diz o imdb) a gerarem artificialmente a sensação de movimento do comboio. Sem música instrumental na banda sonora (só incidental, como um gira-discos a tocar ou os sons ritmados do comboio). Uma história linear de gangsters maus, polícias duros, dames sedutoras e viperinas, e um McGuffin (termo de Hitchcock para simbolizar um elemento que todos andam atrás, que nunca se vê, e que é apenas uma desculpa para o filme – uma mala, um envelope).
Estas são as premissas de ‘The Narrow Margin’, algo que o poderia categorizar como mais um típico noir, first-feature, de série B, dos estúdios RKO. Mas ‘The Narrow Margin’ ascende, com enorme facilidade, acima desta catalogação. Não foi, nem é agora, um mero produto feito rapidamente e com pouco dinheiro para tentar sacar uma rentabilidade máxima baseada em clichés. ‘The Narrow Margin’ é um estimulante, dinâmico e extraordinário filme do género, e está para mim taco a taco com outros noirs urbanos de série B que ganharam imortalidade por serem tão poderosos, tão acutilantes, tão perfeitos na sua construção, que muitos filmes de serie A, muitos blockbusters, mesmo nos dias de hoje, gostariam de ter. Estou a falar do famoso ‘Detour’ (1945). Estou a falar de ‘Out of the Fog’ (1941). Estou a falar de ‘The Narrow Margin’.
Os estúdios RKO, com o seu excêntrico e megalómano presidente, Howard Hughes, sempre arriscaram em talento com potencial mas desconhecido (estamos a falar do estúdio que financiou ‘Citizen Kane’) e, desde meados da década de 1940, em filmes mais curtos, menos ambiciosos, de terror (‘Cat People’, 1942, por exemplo) ou noirs. O sucesso financeiro de algumas destas entradas garantiu que a RKO apostasse forte nestes pequenos eventos cinematográficos, que de humilde não tinham nada nem deviam nada a ninguém. Veja-se ‘On Dangerous Ground’ (1951). Vejam-se os primeiros filmes de Nicholas Ray (‘They Live by Night’, 1948, ‘A Woman’s Secret’, 1949), que também foram feitos por esta altura neste estúdio. Obviamente, nem tudo era perfeito. Já aqui critiquei ‘Macau’ (1952), um filme que não considero muito bem conseguido. Mas era uma altura, antes do seu prematuro declínio, em que o estúdio vibrava e quebrava convenções neste género, embora tivesse sempre sujeito aos caprichos de Hughes. É notório o facto de ‘The Narrow Margin’ ter sido filmado em 1950 e apenas ter sido lançado em 1952. Aparentemente, reza a lenda, esse intervalo de dois anos correspondeu ao tempo em que a cópia final do filme esteve fechada dentro da sala privada de Hughes (aquela onde ele está no final do filme de Scorsese ‘The Aviator’), à espera que saísse de lá um OK.
Para realizador, a RKO escolheu um jovem chamado Richard Fleischer. Fleischer começara na década de 1940 como realizador de documentários e curtas-metragens (ganhara inclusive um Óscar para Melhor Documentário em 1947, o único da sua carreira), e havia entrado pouco tempo antes para a RKO onde começou a realizar um cinema realista e neo-noir. Seria um género a que se dedicaria ao longo de toda a sua carreira, mas a sua popularidade vindoura nunca viria desses filmes. Fleischer ficou associado a outras obras que foi realizando, como o original ‘Dr. Doolittle’ (1967), filmes de ficção científica como ’20.000 Leagues Under the Sea’ (1954) ou ‘Fantastic Voyage’ (1966), e a blockbusters como ‘Barrabas’ (1961), ou ‘Tora! Tora! Tora!’ (1970). Até os seus últimos filmes incluem ‘Conan the Destroyer’ (1984) e ‘Red Sonja’ (1985) ambos com Arnold Schwarzenegger. Mas apesar disto tudo, Fleischer sempre manteve que ‘The Narrow Margin’ era o seu filme preferido dos que tinha feito. E eu concordo plenamente com ele.
Após um genérico bombástico (veja-se a forma como as letras aparecem no ecrã com intensidade dramática), um comboio chega a Chicago. Dois detectives de Los Angeles apeiam na estação. Têm bilhetes para embarcar no mesmo comboio, daí a uma hora, de volta para Los Angeles. Rapidamente metem-se num táxi e dão uma morada. Pela conversa começamos a perceber as suas personalidades. O Detective Brown (interpretado por um possante de voz gutural Charles McGraw, uma performance de mestre num papel que nasceu para fazer) é um cínico durão que não acredita em nada nem em ninguém, que tem todo o tipo de rufião e gangster estereotipado na sua cabeça, mas que tem um quase fanático sentido de dever. O seu companheiro, mais velho, mais experiente, mais gordo, mais vergado pelo peso dos anos, pai de família, é um policia mais rotinado e mais conformado. Com diálogos rápidos e acutilantes como tiros de metralhadora, caídos directamente do céu do noir (um divino maná para todos os fãs do género), percebemos que eles tem a missão de escoltar Mrs. Frank Neal (interpretada por Marie Windsor), a esposa de um recentemente assassinado gangster, até Los Angeles, onde é suposto ela testemunhar num julgamento. Há aqui dois twists. O primeiro é que ela aparentemente tem uma lista de subornos dos mais altos cargos do governo, que irá apresentar em tribunal, e à qual obviamente todos os gangsters querem deitar a mão, antes de a ‘silenciaram’. O segundo é que ninguém sabe quem ela é, ou melhor, não ninguém sabe qual é o seu aspecto físico. Ora isto parece muito pouco credível (o único elemento do filme difícil de acreditar). Se ela era a mulher de um famoso gangster, haveria certamente alguém que já a teria visto. Gangsters rivais poderiam subornar uma série de pessoas do seu círculo para saberem o seu aspecto. Mas não. Os gangsters que a querem matar não sabem quem ela é, o que dá uma vantagem aos dois agentes e um sabor extra ao filme. Há ainda um terceiro twist sobre Mrs. Neal, mas para o saber o leitor terá que ver o filme…
O detective Brown e o seu colega vão então buscar Mrs. Neal a um apartamento onde ela está barricada sob a protecção da policia local. Ela é tudo o que Brown imaginara. Uma pin up curvilínea com ácido nas veias e uma língua acutilante, sempre com uma resposta espectacular na boca. Marie Windsor pode nunca ter tido uma carreira de grandes filmes (tem um papel parecido no excelente filme de Kubrick ‘The Killing’, 1956) e parecer uma versão noir de Loretta Young, mas interpreta Mrs. Neal com uma excelente vivacidade e um ritmo intenso. O seu papel pode ser um grande cliché de todas as dames do cinema noir, mas não só é isso suposto, como é tão electrizante que o público não se importa. Os diálogos entre Mrs. Neal e Brown são daqueles que merecem ser citados e re-citados, daqueles que formam a essência de uma era cinematográfica há muito perdida. "You make me sick to my stomach" diz Brown. "Well use your own sink" responde-lhe ela.
O ‘pacote’ passa de mãos, e Mrs. Brown fica a cargo dos dois polícias de Los Angeles. Logo nas escadas do prédio, há um primeiro ataque, e o polícia mais velho morre. Brown e Mrs. Neal conseguem no entanto fugir sem que os assassinos vejam a cara dela. A partir daí o filme engata num ritmo frenético. Da casa até à estação, da estação até ao comboio, é um jogo do gato e do rato, de ameaças constantes e de um perigo incerto, que não se sabe de onde irá surgir, nem quem são os aliados ou os potenciais ofensores. Uma vez chegados ao comboio, há pela frente uma viagem de longas horas num espaço confinado, do qual não há fuga possível e muitos poucos espaços para se esconder. E é aqui que o jogo e o filme verdadeiramente começam e atingem a sua forma mais perfeita.
Brown barrica Mrs. Neal num compartimento e depois anda, sem dormir, nem comer, nem descansar, literalmente de uma ponta à outra do comboio, a evitar que os malfeitores descubram onde ela está e a tentar descobrir de onde virão as ameaças e o próximo ataque. Quem é o homem gordo que parece sempre aparecer onde ele está? Será o polícia do comboio um aliado ou alguém a soldo dos gangsters? Entre tentativas de suborno e escaramuças com capangas da pior espécie, o cerco aperta-se sobre Brown e Mrs. Neal. Cada paragem numa estação é um momento de tensão. Quando o comboio está em movimento a coisa só piora. Depois, no vagão-restaurante, Brown conhece uma bela senhora com um filho pequeno, Anne (interpretada por Jacqueline White), que depois vai reencontrando comboio acima e comboio abaixo, enquanto se forma uma inevitável química entre eles. Rapidamente, os gangsters ficam a pensar que ela é Mrs. Neal, e portanto Anne torna-se mais uma vida que fica em jogo, mais um problema para Brown gerir. Mas ela própria também poderá ter um segredo a esconder… Há lutas físicas e lutas psicológicas, há twists, há revelações, há uma enorme tensão e sequências intensamente magníficas. Como um dínamo, Brown só quer chegar LA e cumprir a sua missão. Como um dínamo, o filme avança vertiginosamente até ao seu final. Acho que ninguém tinha feito um filme tão bom passado num comboio desde ‘The Lady Vanishes’ (1938) de Hitchcock.
Contudo, o ritmo do filme é tão intenso durante 65 minutos que os últimos 5 deixam um pouco a desejar. Numa época em que 99% dos filmes, sujeitos como estavam ao código de produção, tinham de acabar ‘bem’ (mesmo os noirs), o desfecho do filme, quiçá previsível, funciona como um turn-off, e afrouxa bastante a fasquia que havia sido estabelecida ao longo de uma hora. Mesmo assim, é um final que o público pode aplaudir, e não tira um grama da espectacular qualidade que o filme teve, tem e continua a ter, mais de meio século depois.
O filme está suficientemente esticado para ser estilizado, não só em termos de estética visual como em termos de personagens, diálogos e interpretações, mas consegue nunca perder a sua aura de realismo e urbanidade. Acreditamos que estes eventos poderiam acontecer. E estamos a sentir a tensão à flor da pele, a torcer por Brown, a suster a respiração quando um capanga está a abrir a porta do quarto onde Mrs. Neal se encontra, e a dar um largo sorriso quando há uma troca épica de piropos. Fortes actuações, frases como chicotes e eventos que não deixam o publico ir à superfície tomar ar tornam este filme um autêntico marco, para a RKO, para Fleischer, e para este género de cinema. Fleischer tinha razão em considerar este o filme da sua vida. Este é para os fãs de filmes como ‘Maltese Falcon’, e com 70 minutos é uma memória quase amarga da espectacularidade e intensidade que o cinema pode atingir com tão pouco, com uma ideia tão simples e linear, e um estilo de realização tão focado e dedicado. Hoje filmes como este são uma impossibilidade; seriam estragados por efeitos especiais, construções extensas do passado das personagens, e mais twists desnecessários. Há mais vida, intensidade e tensão numa cena de ‘The Narrow Margin’ do que em filmes inteiros que custaram 200 milhões de dólares e têm efeitos visuais em todas as cenas. Podemos achar a personagem de Brown um lugar-comum, mas é impossível ficar indiferente ao close-up do seu rosto, arfando, o suor escorrendo, a sua animalidade em ebulição, prestes a explodir. É por isso que os fãs como eu regressam a este filme uma e outra vez. É por isso que os fãs do cinema clássico nunca o deixam morrer e aproveitam todas as oportunidades para o ‘impingirem’ aos seus amigos, aos seus leitores. Se o último Capitão América fosse apagado dos registos do Cinema ninguém repararia. Se filmes como ‘The Narrow Margin’ desaparecessem mais valia acabar com o Cinema.
Demasiado enclausurado no seu género para ter um apelo universal e ser considerado uma obra-prima do Cinema, ‘The Narrow Margin’ é mesmo assim um daqueles filmes fantásticos e imperdíveis, que é uma dado garantido para os fãs do noir e do cinema neo-urbano dos anos 1950, mas pouco conhecido do restante público, embora pela sua qualidade e energia tenha carisma suficiente para o ir conquistando aos poucos, um espectador, uma visualização, de cada vez.
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