Realizador: John Cassavetes
Actores principais: Gena Rowlands, John Cassavetes, Diahnne Abbott
Duração: 141 min
Crítica: Após duas décadas a ver cinema, cheguei a John Cassavetes apenas há poucos anos, e por intermédio de uma amiga. Após me ter embrenhado em obras-primas como ‘Minnie and Moskowitz’ (1971), ‘A Woman Under the Influence’ (1974) ou ‘Opening Night’ (1977) parece incrível como pude ter passado tantos anos da minha vida sem conhecer estes e outros filmes do realizador. Mas tudo na vida tem o seu tempo, e o amadurecimento pessoal e cinematográfico que fui tendo ao longo dos anos foi adequado para, quando finalmente assisti ao meu primeiro Cassavetes, poder desfrutá-lo em toda a sua plenitude. Quando uma pessoa está a descobrir o cinema, começa pelos clássicos e pelos grandes nomes, começa pelo ‘The Godfather’ ou pelo ‘Casablanca’ e só passado muito tempo chega inevitavelmente (tal como dizia Roger Ebert) ao cinema de Ozu. E quem diz Ozu diz Mizoguchi. E quem diz Mizoguchi diz Tarkovsky. E quem diz Tarkovsky diz Hal Hartley. E quem diz Hal Hartley diz John Cassavetes. Ver filmes destes senhores sem ter estômago cinematográfico ou sensibilidade à arte poderá não resultar completamente. Podem ser vistos, claro, e podem imediatamente provocar uma reacção, mas se uma pessoa está habituada apenas a ver os mais recentes blockbusters, um filme contemplativo, emotivo, pessoal, sem necessariamente ter uma linha condutora da história poderá soar a enfadonho e desapontante. Com remorso recordo aquela vez em que pus um grupo de amigos a ver ‘À bout de souffle’ (1960), o primeiro filme de Godard, e o fiasco que isso foi.
Bem, o cinema de Cassavetes não é assim tão inacessível, nem tão artístico, mas é uma forma extremamente pessoal de encarar a arte, com performances tão animalescas e avassaladoras que atingem o espectador com um baque seco e profundo de realidade. Amadurecimento pessoal é essencial, pois estes filmes falam de relações, de envelhecer, da insanidade de cada pessoa, de amores e desejos falhados, de vidas corrompidas e da degradação da alma. A jovens que sabem pouco sobre a vida estes filmes pouco dirão. Eu próprio creio não ter ainda a experiência de vida necessária para conseguir abarcar toda a complexidade do cinema de Cassavetes. Este foi sempre um inovador, primeiro no teatro e depois no cinema. As suas peças sempre se centraram mais nas personagens e menos na história, e a improvisação sempre foi uma parte fulcral do produto final. Quando enveredou pelo cinema, Cassavetes, sempre com a sua esposa Gena Rowlands (uma das mais brilhantes actrizes da história) a seu lado, nunca se vendeu aos grandes estúdios. Entraram ambos em filmes maiores, é certo, mas apenas como actores, e apenas para ganharem dinheiro para as suas produções. Cada um dos 12 filmes de Cassavetes foi produzido, escrito, realizado, e muitas vezes distribuído, quase cinema a cinema (tal como o documentário ‘A Constant Forge’ de 2000 mostra) pelo próprio. Os seus filmes podiam ter má qualidade de imagem e ostentar variadas técnicas para cortar custos, mas o que interessa está sempre no primeiro plano; performances magistrais e incrivelmente naturais de actores como Rowlands, Cassavetes, Seymour Cassel, Ben Gazzara ou Peter Falk. Por tudo isto, Cassavetes é reconhecidamente o maior realizador independente do século XX, e o exemplo de referência para todos os realizadores independentes, artísticos e interessados na vertente humana que tentaram (com maior ou menor sucesso) seguir as suas pisadas.
Após os seus grandes ‘sucessos’ (se não financeiros, pelo menos artísticos) dos anos 1970, no virar para a década de 1980 a sua carreira entrou em declínio, também associada aos seus problemas de saúde. Depois do glorioso ‘Opening Night’ de 1977, Cassavetes fez apenas mais três filmes antes da sua morte prematura em 1989, por cirrose: ‘Gloria’ em 1980, ‘Love Streams’ em 1984 e ‘Big Trouble’ em 1986. Dos três, ‘Love Streams’ é sem dúvida a sua última obra-prima.
Em 1984 supostamente os médicos deram apenas mais 6 meses de vida a Cassavetes. Verdade que viveu mais 5 anos, mas será de supor que com ‘Love Streams’, depois de ter enveredado pelo filme de mafiosos ‘Gloria’, Cassavetes quisesse terminar a sua carreira (e a sua vida) no mesmo tipo de universo cinematográfico que todas as suas grandes obras do cinema e do teatro dos vinte anos anteriores. Por isso há coisas que soam a familiar neste grande filme; identidades, sentimentos e ideias que parecem brotar de outras obras. ‘Love Streams’ desenrola-se como uma espécie de canto do cisne de Cassavetes, mas não é nem de perto nem de longe um filme que necessite dos anteriores para se suster. Parece é ganhar um significado extra se houver um conhecimento da carreira de Cassavetes, e por isso é que perdi um bocado de tempo no início a resumi-la.
Há duas personagens principais em ‘Love Streams’, obviamente interpretadas por Cassavetes e Rowlands. Mas, por incrível que possa parecer, naquele que provavelmente achariam que seria o seu último filme juntos, não fazem de amantes, mas sim de irmãos. Mas só descobrimos que são irmãos a meio do filme. O filme passa a primeira hora a mostrá-los separadamente e os seus caminhos nunca se cruzam nesta primeira fase. Rowlands parece o seu eu de ‘Woman Under the Influence’ alguns anos depois. É também uma personagem mentalmente instável que procura equilíbrio no amor da família (o marido e a filha), mas que, por o não conseguir encontrar tem ataques de insanidade. Contudo também tem esses ataques quando tudo está bem, minando dessa forma a sua própria felicidade. O marido é-lhe infiel por causa do distanciamento que estão a ter, e o filme mostra-nos o processo do divórcio. Parece que irá ter a custódia da filha, mas devido mais uma vez a uma demonstração de insanidade, de um momento para o outro é claro que irá perder tudo. Cassavetes, por outro lado, parece uma versão do papel de Gazarra em ‘The Killing of a Chinese Bookie’ (1976), ou seja, uma personalidade completamente degradada, que acha conforto numa cidade nocturna decrépita e nas personagens que nela habitam. É um famoso escritor, que deambula pelos bares à noite há procura de inspiração (ou emoção) e que a maior parte do tempo paga a prostitutas para passarem uns dias com ele. Uma dessas um dia aparece-lhe à porta com um seu suposto filho de 10 anos, para que cuide dele num fim de semana. Quando Cassavetes decide levá-lo a Las Vegas, continuando a levar a sua vida costumeira, obviamente vai deitar toda a sua relação pai-filho a perder.
Este é um dos primeiros elos de ligação entre as duas personagens. Rowlands perde a filha e tenta encontrar uma redenção sem ela, primeiro numa viagem falhada à Europa e depois procurando o romance casual. Cassavetes ganha um filho por um curto período de tempo e procura na breve relação com ele a redenção. Mas ambas as tentativas resultam falhadas. A meio do filme, Rowlands procura conforto em casa do irmão, e por breves semanas irão viver juntos, tentando endireitar a vida um do outro.
‘Love Streams’ é filmado ao estilo de documentário, com os livres movimentos de câmara que caracterizam o cinema independente, mas também, após Woody Allen usar e abusar dele, os filmes pessoais e de relações passados em interiores. Nunca apanhamos a história toda, ou os diálogos todos. O filme está construído como a realidade, e câmara é um voyeur quase oculto que vai captando fragmentos, que o público terá de construir. Ao mesmo tempo, não há nenhuma tentativa do Cassavetes realizador de embelezar o filme com planos complicados. Este é um filme de actores, e o centro de praticamente todos os planos são as faces dos actores. E neste sentido Cassavetes (tal como Allen posteriormente) não foca necessariamente em quem está a falar, o que dá um sentido de intimidade, continuidade, profundidade e realismo ao drama humano.
Mesmo assim, parece haver um desequilíbrio na linha emocional que o filme segue. Durante uma hora vemos as suas histórias progredir separadamente, num sentido óbvio que irão convergir mais cedo ou mais tarde. Até este ponto achamos que as personagens se irão encontrar e ter uma relação. Quando descobrimos que são irmãos há talvez uma decepção por parte do público, mas esta é de curta duração. Percebemos porque precisam um do outro, e que de todo o Mundo, só cada um é que ama o outro. ‘Amo-te mais do que a qualquer pessoa’ diz Cassavetes a Rowlands. Mas mesmo assim isso não é suficiente para ambos, e precisam de divergir, de se afastar uma vez mais, para tentar sobreviver. O amor seguro e fraterno nunca poderá substituir um amor hipotético e apaixonado que existirá algures. Infelizmente, isso também não é suficiente para o filme, que mantém a distância entre as duas histórias. Quando emocionalmente deviam convergir, o filme insiste em focar ora uma ora a outra personagem. Vivem juntos na acção do filme mas a sua vivência é praticamente separada em termos cinematográficos. Cada um tenta agradar ao outro, tenta fazer o outro feliz na medida do possível, mas o filme mostra estas tentativas com o enfoque das cenas unicamente numa das personagens. Talvez isto seja de propósito, para mostrar que mesmo aqueles que nos amam e que vivem sobre o mesmo tecto podem estar tão distantes como qualquer outra pessoa. Mas para mim esta continua demarcação não parece funcionar, pois o filme perde coerência como um todo. Quando no fim do filme há a inevitável separação das personagens, parece que sempre estiveram separados, e que não houve catarse, nem redenção, nem salvação. Esta é a constatação mais deprimente do filme.
‘Love Streams’ é um grande filme. Talvez não atinga o estatuto de obra-prima de alguns filmes de Cassavetes dos anos 1970 (devido a esta falta de coerência do todo), mas mesmo assim é um triunfo do cinema emocional, puro e humano, despido de artificialidades e centrado em sentimentos em bruto e grandes actuações. É deprimente é certo, e não oferece muita esperança emocional, mas isso poderá ser justificado pela proximidade da morte do seu autor. Nunca chega ao grau de decrepitude de ‘The Killing of a Chinese Bookie’, mas as pessoas podem-se degradar e auto-destruir de várias maneiras. Mas no fim, o amor é uma corrente (stream), flui sempre, às vezes em catarata, em vezes mais placidamente. É preciso lutar e não desistir para encontrar o equilíbrio. E esse equilíbrio existirá algures. Se não é encontrado durante a acção do filme, poderá ser encontrado depois. Nunca saberemos.
0 comentários:
Enviar um comentário
Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).