Ano: 1914
Realizador: Mack Sennett
Actores principais: Charles Chaplin, Marie Dressler, Mabel Normand
Duração: 73 min
Crítica: Parece incrível, mas já foi há quase 100 anos, em 1914, que Chaplin chegou a Hollywood. O pequeno grande homem fazia uma tournée pelos Estados Unidos com a companhia de teatro inglesa à qual pertencia quando foi abordado por Mack Sennett para ir trabalhar para os estúdios Keystone de Los Angeles, local de referência para curtas-metragens de comédia de uma ou duas bobinas. Começando simplesmente como actor, Chaplin conseguiu, em menos de um ano, começar a deter o controlo criativo das suas produções. Rapidamente já estava a escrever, a realizar e a actuar, e pouco depois foi obtendo contractos milionários com outros estúdios (Essanay, Mutual) até finalmente, em 1919, atingir a independência total com a sua própria United Artists.
Mas no início, na primeira metade de 1914, quando era apenas um actor sob contrato, um Chaplin a descobrir a arte do cinema pôde ser visto numa série de curtas de 1 ou 2 bobinas. Para além destas entrou também numa única longa-metragem (6 bobinas) chamada ‘Tillie’s Puctured Romance’, para todos os efeitos o seu primeiro ‘filme’. Este filme representou um duplo ponto de viragem. Por um lado está registado nos anais do cinema como a primeira longa-metragem de comédia de sempre, numa altura em que os primeiros filmes de longa duração (mais que uma hora – e até mais, se considerarmos os épicos de DW Griffith) começavam a aparecer. Por outro demarca o final da carreira de Chaplin como um ‘mero’ actor. Este é a última obra (filme ou curta) de toda a carreira cinematográfica de Chaplin (que duraria intermitentemente até 1968), que não é realizada por ele.
Esta comédia de 73 minutos, realizada por Mack Sennett é hoje, vá, vagamente conhecida, apenas pelo facto de ser a primeira e por fazer parte da filmografia de Chaplin, e não propriamente pela sua qualidade artística, cinematográfica ou cómica. Chaplin (que neste filme não incarna o ‘Vagabundo’) é um manhoso aldrabãozote (completo com o clássico fino bigode do vilão) que procura seduzir, com motivos interesseiros, uma muito gorda e muito feia Marie Dressler (uma diga-se, à falta de melhor termo, pujante mulher e famosa actriz de teatro que eventualmente ganharia o Óscar de Melhor Actriz em 1931 por ‘Min and Bill’). Chaplin consegue convencer Dressler a roubar o dinheiro do seu abonado pai e a fugir com ele para a grande cidade. Uma vez lá, Chaplin fica com o dinheiro e desenvencilha-se rapidamente de Dressler, trocando-a por uma bem mais bonita Mabel Normand, a actriz principal dos estúdios Keystone e que foi, na maior parte das curtas desta época, o ‘interesse amoroso’ de Chaplin. Entretanto Dressler, destituída da sua fortuna e abandonada pelo amante, é obrigada a arranjar um emprego como empregada de café. Quando um tio da personagem de Dressler supostamente morre e lhe deixa a fortuna em herança, Chaplin aparece de novo em cena para a seduzir uma vez mais. Surpreendentemente é bem-sucedido e acabam por casar!
Esta parte da história ocupa aproximadamente as primeiras 4 bobinas (cerca de 40 minutos). Embora o enredo seja algo dramático, é sempre apresentado de uma forma ligeira. Por exemplo, existe uma cena para demonstrar que Chaplin e Normand sentem remorsos por ter ficado com o dinheiro de Dressler, mas esta desenrola-se através de uma série de piadas, enquanto estão a ver um filme no cinema sentados ao lado de um polícia. A própria Dressler, destituída de uma forma tão abrupta, parece-se importar pouco com o que se passou e arranja o emprego no café quase de uma forma natural e resignada. Mas mesmo com toda a ligeireza cómica, em 40 minutos de filme as situações cómicas, as ‘gags’, são, para além de poucas, substancialmente banais. Temos o clássico ‘algo atinge a cara de uma personagem’, o típico escorregar, o andar engraçado de Chaplin, ou uma personagem bêbada. Mas é raro o grande momento cómico.
É nas últimas duas bobinas que o filme ganha o seu ritmo e a pouca qualidade que tem. Muito se passa rapidamente. No copo de água na nova mansão, a personagem de Mabel Normand tenta reconquistar Chaplin e ele, mesmo recém-casado, não diz que não à sedução. Dressler descobre toda a verdade e persegue o casalinho casa acima e casa abaixo com uma arma. Em cima de tudo isto, o tio que supostamente morrera aparece à porta. Estes eventos são desculpa suficiente para exibir, até ao final do filme, aquilo que a Keystone sabia fazer melhor: cenas de perseguição. A maioria das curtas deste estúdio culminava com uma épica perseguição (provavelmente só superadas pela fantástica perseguição de centenas de mulheres a Buster Keaton em ‘Seven Chances’ de 1925) e, obviamente, nesta primeira longa-metragem, o modelo tão bem desenvolvido e trabalhado não podia faltar. Toda a gente persegue toda a gente em todas as divisões da casa, no andar de cima, no andar de baixo, na sala do baile, no jardim. A confusão impera e dá um gosto e uma emoção ao filme que as restantes 5 bobinas não conseguem proporcionar. E como não podia deixar de ser, os gloriosos Keystone Cops (os actores vestidos de polícia que constituíam a essência das perseguições finais das curtas da Keystone), fazem uma aparição no final da insana perseguição climática, uma espécie de ‘cameo’ que será apreciado ainda mais por aqueles que conhecem as curtas.
Apesar de tudo isto, para a primeira comédia de sempre, este filme não é assim tão engraçado. Dressler parece a maior parte das vezes estar fora do lugar, desconfortável até. Ela podia ser uma grande actriz dramática mas o seu perfil simplesmente não se adequa a comédias mudas. O seu contraste visual com o pequeno Chaplin, por outro lado, está muito bem conseguido. Este, claro, está tão genial quanto o deixam ser, mas salta à vista que não lhe foi permitida muita liberdade e/ou criatividade. Sente-se a falta da personagem do ‘Vagabundo’ neste filme. A história também tem um forte desequilíbrio. É dramática mas não entra por emoções mais profundas ou fortes, visto isto ser suposto ser uma comédia. Mas para ser tal coisa precisava de ter mais piadas visuais do que aquelas que tem. Na realidade, a cena da perseguição é a única que vale a pena ser vista.
Mesmo assim, este filme é um importante pedaço da história do cinema, e a sua curta duração de 73 minutos pode ser a desculpa suficiente para o ver, muito embora haja outras produções da Keystone, mais curtas até, que mereçam mais a pena o esforço ou o tempo despendido na sua visualização. Neste caso, poder-se-á talvez desculpar alguma falta de qualidade pelo facto de ser a primeira longa metragem, e como tal ser muito experimental. Por exemplo, o primeiro filme sonoro ‘The Jazz Singer’, também não é assim tão bom quanto isso. No caso dos estúdios da Keystone, é compreensível que estivessem muito habituados à estrutura simples e limitada da fórmula cómica das duas bobinas, pelo que quando foi preciso esticar a duração do produto final, toda a construção da ‘gag’ e da profundidade emocional das personagens teve que ser radicalmente alterada para poder funcionar. Nem de perto nem de longe estava esta capacidade limada, portanto este filme falha perante os standards da década do auge do cinema mudo, a década de 1920, e, obviamente pelos standards de agora. Mas é bem provável que em 1914 não tenha sido um filme tão descabido quanto isso. Não é sem dúvida o melhor filme cómico da década de 1910, mas é uma experiência que permitiu desbravar caminho, tão ou mais importante que qualquer salto tecnológico posterior.
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