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A tragédia dos “filmes perdidos”

De vez em quando, quando refiro a alguém a tragédia dos “filmes perdidos”, essa pessoa não sabe de que é que eu estou a falar. É normal que quando às vezes me descuido e começo a falar – quiçá monologar – ao pormenor sobre Cinema, as pessoas se sintam enfadadas, talvez por eu ser uma pessoa enfadonha ou talvez porque é um tema que não lhes interessa particularmente. Cada um tem as suas paixões (se gostássemos todos do mesmo seria uma boa seca), mas tenho pena de descobrir cada vez mais que até os mais dedicados cinéfilos que vou conhecendo nos dias de hoje têm uma visão algo limitada do cinema clássico. Eu sei que o tempo avança, que já passaram 100 anos desde que D.W. Griffith e Chaplin iniciaram as suas carreiras, e que em breve passarão 100 anos desde que Great Garbo, John Ford, Bogart, Howard Hawks e outros tantos eram reis de Hollywood. Mas ser moderno e contemporâneo nunca implicou imediatamente ser bom, e perder o conhecimento do cinema clássico é como deixar de ler Shakespeare, apreciar quadros de Leonardo DaVinci ou ouvir música de Mozart. A boa arte é eterna. A arte má pode ser mediática por uma semana, mas não passa à posteridade.

Mas estou a divagar. Estava a falar de “filmes perdidos”, um termo que é geralmente desconhecido para o público que não é um cinéfilo dedicado ou um historiador de cinema. Pois bem, o que é um filme perdido? Um filme perdido é um filme que hoje ninguém pode voltar a ver, pois não sobreviveu qualquer cópia – em qualquer formato que seja – até ao presente. É talvez quase impossível ao espectador contemporâneo conceber que houve uma altura em que não havia, literalmente, acesso a um filme a não ser num ecrã de cinema ou na sala de projecção de um estúdio. Houve uma altura em que o conceito de “cinema em casa” era inexistente ou apenas uma prerrogativa de milionários excêntricos, e onde obviamente não havia televisão, VHS, DVDs, Blu-rays, 4Ks ou a boa e “velha” internet para manter as cópias dos filmes acessíveis, vivas e a circular. Praticamente ninguém podia rever um filme, corrente ou passado, depois de ele sair de exibição.

'London After Midnight' (1927) de Tod Browning com Lon Chaney é um dos mais famosos "filmes perdidos". Em 2002, o canal TCM fez uma reconstituição inteira do filme, baseada no argumento original, utilizando exclusivamente as fotografias de produção sobreviventes
Assim sendo, os estúdios não concebiam que um filme pudesse ter alguma utilidade, uma vez terminado o seu período de exibição nos cinemas. Portanto, para quê guardá-los? Os grandes estúdios ainda guardavam as bobinas originais de muitos filmes nos seus gigantescos cofres, mas por motivos meramente interesseiros. Numa altura em que um estúdio precisava de ter uma injecção de capital, os seus maiores sucessos podiam assim ser repostos nas salas de cinema. ‘Gone with the Wind’ (1939), por exemplo, foi oficialmente relançado uma série de vezes (1942, 1947, 1954, 1961, 1967, 1971, 1974…), mas também, se não fosse isso, não havia outra maneira das pessoas reverem este épico clássico, ou partilharem-no com as novas gerações. Contudo, já os pequenos produtores não tinham a mesma prática, principalmente quando os filmes não tinham sido um grande sucesso. Desta forma, a triste verdade é que a maior parte destes filmes não voltava a ver a luz do dia.

Qualquer cinéfilo (ou pelo menos eu!) tem uma enorme dor no coração quando pensa na quantidade infindável de bobinas de filmes clássicos que foram propositadamente destruídas, por estes motivos, nestas primeiras décadas do século XX. Algumas foram destruídas para libertar espaço nos armazéns dos estúdios. Outras foram derretidas para extrair o valioso nitrato do celuloide (mais uma maneira dos estúdios fazerem dinheiro às custas de um filme). E outros ainda arderam, visto que o material de que a fita era feita era altamente inflamável. Alguns armazéns de estúdios foram vítimas de notórios incêndios (como o da MGM em 1965) que levaram à perda irrecuperável de inúmeros filmes, cujas únicas cópias sobreviventes lá se encontravam. E outros ainda foram simplesmente destruídas só porque sim, porque o cinema era uma arte do momento, não uma arte com uma promessa de longevidade.

Desta forma, muitos filmes, incluindo alguns inicialmente dados como perdidos, só sobreviveram até aos dias de hoje porque cópias não originais, muitas vezes de menor qualidade, foram encontradas na propriedade de colecionadores privados, nos cofres de antigos realizadores, produtores ou atores, ou em bibliotecas de velhos cinemas ou de cinematecas que entretanto, com o popularizar da arte do cinema, foram aparecendo. Mesmo assim, estima-se que mais de 75% (sim, é verdade, 75%!!!) dos filmes mudos (pré-1927) estão perdidos para sempre, e há ainda um número considerável de filmes sonoros feitos nas décadas de 1930 e 1940 (estima-se perto de metade) que nunca iremos poder ter a oportunidade de rever.

Os irmãos Marx em 'Humor Risk' (1921), há muito considerado perdido. Até há uma lenda que especula que foi o próprio  Groucho que destruiu o negativo original
Um cinéfilo ou um historiador sabe que inúmeros filmes existiram. Sabe-o porque os registos da sua produção permaneceram, nos arquivos dos estúdios, nas notícias de jornal, nas revistas da especialidade. Sabe-o porque sobreviveram fotografias da produção, ou algumas vezes até o trailer. Mas isso é uma pobre consolação perante a impossibilidade de ver o filme, hoje, agora, tantos anos depois. As pessoas que assistiram a estes filmes nessas décadas do início do século XX certamente não imaginaram, numa noite rotineira, que estavam a ter um privilégio raro, que as gerações futuras não teriam direito. A mim, que tenho uma paixão pelo cinema clássico, é algo que me capta a imaginação. Ser essas pessoas. Assistir a esses filmes. Deter esse conhecimento, agora impossível de obter, de o possuir na palma da mão, ou melhor dizendo, nos olhos, perante uma tela. É fascinante.

Contudo, os cinéfilos também sabem que há sempre o brilho de uma ténue esperança. A esperança do reencontro. A esperança de que algures, esquecido num cofre de uma cinemateca, no armário de um excêntrico colecionador que não faz ideia do conteúdo de todas as bobinas que outrora comprou ou herdou, ou até num celeiro (já aconteceu), possa estar mais uma obra do cinema clássico até hoje considerada perdida, possa estar mais uma peça do puzzle para completar mais um bocadinho do retrato de um artista, de um realizador, de uma era. Recordemo-nos que a versão parcial de ‘Metropolis’ que sempre conhecemos deu lugar, nem há dez anos, há versão definitiva, cortesia de uma bobina encontrada na Argentina e outra na Nova Zelândia. Recordemo-nos que o ‘Oliver Twist’ de 1922 foi reencontrado na Jugoslávia na década de 1970. Recordemo-nos que o primeiro filme de Orson Welles, ‘Too Much Johnson’, foi reencontrado em 2013 em Itália. O clássico ‘The Old Dark House’ (1932) foi descoberto num cafundo de um cofre nos estúdios Universal. E quando o British Film Institute publicou em 2010 a sua lista dos 75 filmes perdidos mais desejados, isso levou a que pessoas se chegassem à frente com eles: muitas não faziam ideia das raridades que detinham em mãos.

Talvez um dia, desta forma, todos os outros possam ser encontrados. Talvez um dia tenhamos a possibilidade de ver, por exemplo, 'Humor Risk' (1921), uma curta metragem, há muito considerada perdida, que marcou a estreia dos irmãos Marx. E nessa altura, o cinéfilo reencontrará um bocado de si, da sua história, porque a sua história é o cinema que vive e respira. É como se uma parte de nós, cinéfilos, estivesse perdida, à deriva, sem possibilidade de ser encontrada. É como se uma parte de nós não tivesse um lar. Mas pode ser que um dia regresse a casa, e nos possa contar os contornos da sua viagem. Ainda recentemente queria ver se encontrava um filme chamado ‘Beware of Blonds’ (1928). Mas descobri que tudo o que sobreviveu até aos dias de hoje foi este trailer de 40 segundos. Não é bem a mesma coisa. E nada pode colmatar esse vazio, a não ser o reencontro pleno com a obra completa.


Os “filmes perdidos” são uma verdadeira tragédia. A maior de todas, desta arte maior. Mas através da diligência dos grandes historiadores de cinema que não desistem de pesquisar, e se o público ainda continuar interessado, para que essa pesquisa não seja abandonada, pode ser que aos poucos se reconstituam todas as peças deste grande puzzle que foi a história do cinema clássico. E nesse dia, sim, talvez fiquemos um pouco mais completos. Não é apenas uma questão de preservação de uma memória cultural. É a preservação de um legado artístico, e um eterno tributo de reconhecimento aos homens e às mulheres que foram os pioneiros desta arte. Por vicissitudes históricas estão hoje longe de ter o reconhecimento que outrora tiveram, o reconhecimento que tanto merecem. Mas um a um pode ser que o obtenham. A modernidade não é a detentora exclusiva da qualidade. Esta não tem tempos nem eras. Cada novo filme que é encontrado prova-nos isso. Que as buscas prossigam. Os cinéfilos agradecem.

1 comentários:

Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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