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Carefree

Ano: 1938

Realizador: Mark Sandrich

Actores principais: Fred Astaire, Ginger Rogers, Ralph Bellamy

Duração: 83 min

Crítica: Quando chegaram a ‘Carefree’ (em português ‘Quero Sonhar Contigo’) em 1938, o mágico duo dançante composto por Fred Astaire e Giner Rogers já estava a entrar no seu oitavo filme em conjunto, em apenas 5 anos. Tudo começou em 1933, quando ambos contracenaram, como actores secundários, no filme ‘Flying Down to Rio’. Astaire era um conhecido dançarino do mundo do espectáculo, que acabara de assinar um contrato cinematográfico com a RKO e estreava-se no cinema. Já Ginger Rogers era praticamente uma ‘veterana’ corista secundária das extravagâncias musicais do início da década de 1930, tendo tido pequenos papéis em clássicos como ‘42nd Street’ ou ‘Golddiggers of 1933’. Como sidekicks do hoje esquecido duo romântico principal de ‘Flying Down to Rio’ (Dolores del Rio e Gene Raymond), as personagens de Fred e Ginger foram concebidas como “apenas” um escape cómico e dançante. Mas é só ver ‘Flying Down to Rio’ para perceber perfeitamente como o duo ganhou fama e ofuscou completamente os actores principais do filme. E esta química inegável, especialmente na cena que dançam em conjunto (gera, literalmente, faísca), não passou despercebida, nem do estúdio nem do público, que pediu mais. Vendo um filão, no ano seguinte a RKO estava a lançar ‘Gay Divorcee’ (1934) com Fred e Ginger nos papéis principais e Mark Sandrich na cadeira de realizador (realizaria 5 dos 10 filmes do par). E o resto, como dizem, é história.

Seguiram-se ‘Roberta’ (1935), ‘Top Hat’ (1935), ‘Follow the Fleet’ (1936), ‘Swing Time’ (1936) e ‘Shall we Dance’ (1937). Se ‘Gay Divorcee’ (1934) estabeleceu a fórmula; a comédia de enganos ligeira, levemente dramática, impregnada de números de dança soberbos (perfeitos!) e músicas de Cole Porter ou Irving Berlin, quando se chegou a ‘Top Hat’ (1935), o seu clímax, o seu filme mais famoso (mas não, para mim, o melhor), essa fórmula já tinha dado tudo o que tinha a dar. Por isso mesmo é que ‘Follow the Fleet’ (1936) possui uma bem-vinda alteração de história, mas é de notar que essa história é o mais fraco que o filme tem para oferecer, já que é ainda pior que a fórmula batida das comédias de enganos. E por isso é que em ‘Swing Time’ (esse sim, para mim, o melhor filme) se voltou (quase) ao esquema clássico, mas mudou-se de realizador (o supremo George Stevens), o que permitiu dar uma visão fresca ao universo que o público tão bem conhecia. Mas com ‘Shall We Dance’ (1937) Sandrich regressou à realização e com ele regressou também o be-a-ba do par. O filme parece um ‘best off’ da temática Fred & Ginger, embora tenha, há que dizer, das melhores químicas que já se viu entre ambos.

Mas o que salva ‘Shall We Dance’ é o mesmo que salva todos os outros filmes, independentemente da história, que é apenas uma desculpa. Quando Astaire e Rogers começam a dançar, o público esquece tudo o resto e fica hipnotizado a ver. Os números de dança não pioraram de filme para filme, pelo contrário, foram ficando cada vez mais ousados, cada um tentando bater os anteriores, e é por isso que apaixonados como eu consomem estes filmes vezes sem conta. E é por isso também que continuaram sempre a sair das fornalhas da RKO nos anos 1930. Chegados a ‘Carefree’ estes filmes já estavam a perder o gás e já nem o público, nem os produtores queriam saber da história para coisa alguma. O filme ter apenas 80 minutos é a prova perfeita disso. Todos só os queriam a ver dançar, mais nada, e tirando isso, parecia que nem Sandrich nem a RKO sabiam o que mais fazer com Fred e Ginger em termos de argumento.

Por isso mesmo é que, por mais refrescante que seja ver uma história de um filme com Fred Astaire e Ginger Rogers diferente, ou seja, que não contenha uma comédia romântica de enganos seguindo a fórmula completamente batida dos seus primeiros filmes, a verdade é que a inspiração para inventar uma história com interesse há muito se tinha perdido. De todas as hipóteses possíveis, ‘Carefree’ segue a pior e a mais incredível delas todas, o que é um gigantesco senão do filme. Imagine o leitor que Fred Astaire interpreta Tony Flagg, nada mais nada menos que um psicanalista (quem acredita?). Um psicanalista que, coincidência, quando era novo brincou com a ideia de ser dançarino, o que é a desculpa mais esfarrapada que pode existir para ele saber dar uns passinhos de dança. Já Ginger Rogers interpreta Amanda, uma cantora que está noiva do melhor amigo de Tony, Stephen. Este último é interpretado por Ralph Bellamy, no seu papel costumeiro (‘The Awful Truth’, 1937; ‘His Girl Friday’, 1940): um herdeiro rico, de bom coração, mas com pouco cérebro.

No início do filme vemos um bêbado Stephen (Bellamy está péssimo a fazer de bêbado) a ir até ao consultório de Tony. Amanda desistiu de casar com ele mesmo antes da hora H. Quer continuar a ser sua namorada, mas não quer casar. Tony, com o seu paleio de psicanalista (que mais parece um amador de trazer por casa), sugere que isto poderá ser causado por uma qualquer fobia, por um problema do subconsciente, e convence o amigo a trazer-lhe Amanda, para ele a analisar. Quando pensa que Amanda não está a ouvir, e antes de sequer a conhecer, Tony cataloga-a como uma mulher fútil e inconstante, como todas as mulheres (sim, o filme é um pouco sexista para os padrões de hoje). Só que Amanda está a ouvir, e quando finalmente se conhecem cara a cara é a oportunidade para Amanda levar a melhor sobre Tony, e ficar de pé atrás em relação a ele e aos seus tratamentos, que ela apelida de "charlatanice" (e o público bem que concorda!).

Mas este desentendimento inicial, que roça a comédia de enganos de filmes anteriores, permite que mais uma vez haja aquela química entre Fred e Ginger que tanto apreciamos ver. Ginger está furiosa com Fred e este, por sua vez, quer remediar o desentendimento. Já vimos isto. E melhor. Como de costume é a oportunidade para o Tony de Fred Astaire fazer uns passos de dança, e à medida em que a Amanda de Ginger Rogers se deixa ser ‘analisada’ e baixa as defesas, começa a ficar apaixonada por este homem que inicialmente odiava. Também já vimos isto. E as coisas complicam-se quando Tony descobre esta paixão e, com medo de ofender o seu amigo, hipnotiza Amanda, e põe-lhe umas ideias na cabeça! Convence-a que ele é um ser horrível e que Amanda tem de casar com Stephen, que durante este tempo todo é um pateta inocente. Só que depois de fazer isto, Tony descobre que realmente ama Amanda, e o último acto do filme é uma corrida contra o tempo (e contra Stephen, que dá finalmente um ar da sua graça) para Tony des-hipnotizar Amanda, que está fixa na ideia de casar com Stephen e mal vê Tony torna-se extremamente violenta!

Admitamos que a história é bastante fraca e xôxa. Admitamos que toda a linha argumental da psicanálise e do hipnotismo é bastante rebuscada e só resulta por isto ser uma fantasiosa comédia romântica (embora as pouco mascaradas bocas à psicanálise até são engraçadas). Admitamos que a história de amor é bastante incredível, a personagem de Ginger Rogers bastante inconstante emocionalmente e o desgraçado Ralph Bellamy confirma o seu estatuto de um dos maiores mártires da sétima arte. E admitamos que a química entre Fred e Ginger fica bastante atrás do seu filme anterior, ‘Shall we Dance’ (1937). Mas se este não é propriamente o melhor filme de Fred & Ginger, e é mais uma estatística do que propriamente um marco, o filme tem, felizmente, alguns momentos de interesse.

Destacam-se alguns escapes cómicos, que provêm de papéis secundários como o do grande, grande, grande Jack Carson (um dos meus ‘secundários’ favoritos da idade de ouro de Hollywood – adoro a sua interpretação em ‘Arsenic and Old Lace’, 1944), que faz de assistente de Fred Astaire; a interpretação de Luella Gear como a tia de Ginger Rogers (rica em apartes engraçados) e uma pequena aparição de Hattie McDaniel como a criada, um ano antes de ficar imortalizada em ‘Gone with the Wind’. As duas cenas em que Ginger Rogers é hipnotizada também são do mais engraçado que o filme oferece. Na primeira, praticamente regressa à infância, uma antecipação do seu bem-amado papel no filme de Billy Wilder ‘The Major and the Minor’ (1942). Na segunda, vai de caçadeira atrás de Fred Astaire, o que é delicioso.

Mas nada disto se compara aos momentos em que Fred & Ginger dançam. Por qualquer motivo, os números, neste filme de apenas 80 minutos, são escassíssimos, o que não faz sentido. São tão escassos que o espectador fica aflito que cheguem, como um drogado à espera da dose, só para ficar saciado. Astaire canta apenas uma vez, quase no final, o standard ‘Change Partners and Dance with Me’ e Rogers canta ‘The Yam’, ambas de Irving Berlin. E só (só!) há quatro números de dança no filme inteiro. Mas quando chegam, chegam de uma forma tão avassaladora que eclipsam tudo o resto; a história parva, a falta de substância, a realização morna.

Os quatro números são completamente soberbos, dos melhores que Fred & Ginger alguma vez executaram à frente de uma câmara. A dança de Fred Astaire com os tacos de golfe é aquecimento do melhor para o que está para vir, e mostra toda a sua agilidade. Quando Ginger Rogers é sedada e tem um sonho, esse sonho é uma magnífica dança em slow motion entre ambos; um momento de cinema absolutamente memorável, digno de ficar registado nos pilares da História, e que condensa tudo o que estes dois dançarinos alguma vez deram à sétima arte. A beleza da sua arte, dos seus movimentos, torna-se, neste momento único, a beleza do filme, e ficamos pasmados a assistir, enrolados na mística, enquanto a saia de Rogers rodopia em slow motion, e a tentar perceber como é que o corpo de Astaire se consegue mexer de uma forma tão perfeita. Temos ainda uma épica cena de dança por todas as divisões de uma casa, em que Fred & Ginger vão puxando os vários convidados de uma festa para o epicentro da dança. Caros meninos do ‘Step Up’ e dos modernos filmes de dança: é assim que se faz uma cena de dança de multidão! E por fim, Astaire ainda hipnotiza Rogers para um momento de dança mais íntimo, mais contido, mas não menos harmonioso.

Nomeado para 3 Óscares (Melhor Direcção Artística, Melhor Música e Melhor Banda Sonora), mas não vencendo nenhum (nem merecia, a não ser, talvez, a música), no global ‘Carefree’ é um filme desinspirado, ao qual falta sabor (Mark Sandrich já estava, claramente, com a imaginação esgotada), e que tenta capitalizar desesperadamente na química entre Fred & Ginger. Mas isso só funciona porque já os conhecemos, porque já sentimos esta química em filmes anteriores. Não há nada neste filme que a ofereça a quem não viu os outros. Ou melhor, nada excepto estarem aqui os dois. E é precisamente por isso, por entrarem estes dois actores neste filme, que ‘Carefree’ terá sempre o seu interesse. Poder vê-los juntos é uma dádiva, independentemente da história. Aqui só fazem quatro danças, mas se dançassem apenas uma única vez, então o filme também teria o seu interesse. E por não serem quatro danças quaisquer, por serem quatro danças soberbas, então ainda melhor. E a ideia inspirada (a única do filme) de fazer um número em slow motion garante a sua imortalidade. Com uma história para esquecer, mas não um filme para esquecer.

Fred Astaire e Ginger Rogers fariam ainda mais dois filmes juntos, ‘The Story of Vernon and Irene Castle’ (1939), o seu último filme para a RKO, e o tardio ‘The Barkleys of Broadway’ (1949), levemente autobiográfico, para a MGM – o seu último filme juntos e o seu único filme a cores. Depois de ‘The Story of Vernon and Irene Castle’ cada um seguiu carreiras distintas. Astaire continuou a dançar e a cantar como ninguém ate ao final da década de 1950, com parceiras de Rita Hayworth a Audrey Hepburn, e Rogers enveredaria por papéis mais dramáticos, ou pelo menos cómico-dramáticos onde dançaria muito menos (ganharia até um Óscar de Melhor Actriz por ‘Kitty Foyle’, 1940). Mas olhando para trás, qualquer cinéfilo, qualquer amante da arte, tem que agradecer já ter sido inventada a câmara de filmar quando estes dois artistas viveram no nosso planeta, e também o seu emparelhamento completamente fortuito em ‘Flying Down to Rio’. A herança de ‘Carefree’ ao seu espólio de 10 filmes são duas sequências de dança absolutamente fabulosas e as interacções cómicas quando Roger está hipnotizada. De resto, bem que podemos usar o fastforward. Verdade que o facto de estarem os dois juntos praticamente já é suficiente, mas os produtores não se deviam ter quedado à sombra dessa bananeira. Quem perde é o filme, o espectador, e a história do cinema. O que é uma pena, e um desperdício destes gigantescos talentos, que aqui já estavam quase em modo de despedida.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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