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Une belle fille comme moi

Ano: 1972

Realizador: François Truffaut

Actores principais: Bernadette Lafont, Claude Brasseur, Charles Denner

Duração: 98 min

Crítica: Falecido aos 52 anos em 1984 (um mês e meio antes de eu nascer...), com 25 filmes no seu currículo, acho que é mais que consensual que François Truffaut morreu cedo de mais. Só podemos imaginar (sonhar!) como seriam os seus filmes hoje, como se adaptariam às novas tecnologias e às novas interpretações da linguagem cinematográfica. Porque, pelo menos para mim, os filmes de Truffaut foram sempre feitos com um enorme coração, uma enorme humanidade, e uma sincera humildade salteada de uma inteligente ironia. Os seus filmes nunca tentaram ser demasiado intelectuais, nunca foram artificialmente artísticos, nem nunca acharam que sabiam mais, ou que eram mais inteligentes, que o seu público. Brotavam de um enorme domínio cinematográfico, sim, mas, ao mesmo tempo, pensavam no público, e este nunca era tratado com desprezo. Por isso é que os seus filmes marchavam com os tempos, mas ainda hoje nunca deixam de surpreender e não estão datados. As suas comédias românticas (como os filmes finais da quintologia de Doinel) podem ser muitas vezes negligenciados, mas não atingem, pergunto eu, uma e outra vez, continuamente, o alvo, criando uma íntima ligação de cumplicidade com o público? E não é isso que faz um bom filme?

É fácil pensar em Truffaut (mas completamente justo) como o homem que fez o vencedor da Palma D’Ouro em 1959 ‘Les 400 Coups’, como o homem que venceu o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro com o nostálgico ‘La Nuit Americaine’ (1973), como o homem que fez o enorme sucesso de bilheteira ‘La mariée était en noir’ (1968), que inspirou toda uma nova geração de realizadores, de Brian de Palma a Tarantino, ou como o homem que elevou o retrato humano de uma vida a um patamar completamente inaudito com a quintologia de Doinel (que decompus filme a filme nesta crónica). Mas também não é justo pôr de lado os restantes filmes desta curta filmografia (longa se pensarmos que a carreira de Truffaut só durou 24 anos). Até os filmes mais desconhecidos do público em geral, tidos como mais ‘leves’ (ou não, veja-se ‘La chambre verte’, 1978) têm uma incisiva vertente de realidade, e um equilíbrio perfeito entre esta brilhante decomposição de emoções, e toques subtis de humor (negro ou daquele que leva um enorme sorriso nostálgico à boca). Isto para não falar de serem extraordinárias lições de fazer bom cinema; social, dramático, histórico.

Para mim, um desses filmes de Truffaut que devia ser mais famoso, que devia ser mais falado, é ‘Une belle fille comme moi’ (1972). É fácil de compreender porque está esquecido, já que foi feito entre o drama histórico "Les deux Anglaises et le continent" (1971), que ainda recentemente a revista francesa Les InRocks considerou ser o 30º melhor filme francês de sempre, e o seu maior sucesso na América, "La nuit americaine" (1973). Mas é só começar a ver ‘Une belle fille comme moi’ para ficarmos completamente siderados. Pelo menos eu fiquei, a primeira vez que o vi, aqui há uns anos. Compreende-se perfeitamente porque não é aclamado como uma das suas ‘obras-primas’; a linha argumental simples e a forma “banal” como é oferecida ao espectador nega que hajam aquelas cenas maiores e transcendentais pelos quais grandes filmes são recordados. Mas é inegável que ‘Une belle fille comme moi’ é uma extraordinária comédia negra, talvez uma das melhores já feitas, e é brilhante do início ao fim. Para além do mais ataca, de uma forma fantástica, subtilmente escondida na sua estrutura ‘leve’, todo o sistema judicial, e também toda a psicologia fraca, que procura justificar todo e qualquer comportamento, e que acredita que a conversa e a compreensão poderão resolver todos os males. Já em ‘Les 400 coups’ Truffaut tinha insinuado subtilmente qual era a sua opinião sobre as ‘desculpas’ que o sistema arranjava para justificar o comportamento dos delinquentes juvenis. Mas aqui não há insinuações nem subtilezas. O ataque é frontal, e duro. Mas não é ofensivo, porque a aura de comédia negra amortiza o impacto.

‘Une belle fille comme moi’ abre numa prisão e conta a historia de uma das prisioneiras, a voluptuosa Camille Bliss (interpretada de uma forma imaculada por Bernadette Lafont). O seu crime foi o homicídio, e a sua pena é longa. Neste dia recebe a visita de um sociólogo (interpretado por André Dussollier), que está a escrever um livro sobre mulheres criminosas e quer documentar, em primeira mão, as suas histórias, e compreender a psicologia por detrás dos seus actos.

Aproveitando a oportunidade de sair da cela, e de ter alguém com quem falar, Camille liga o seu charme e começa a contar ao sociólogo, em flashback, as suas aventuras. E o público é levado pela mão, enquanto assistimos ao percurso de Camille, que basicamente consiste em ir para a cama com quantos homens quantos pode, desde que a ajudem a subir na escada social e a ficar mais perto de atingir o seu sonho de ser cantora. Mas a grande nuance, o segredo que Camille partilha com o público mas não com o sociólogo, é que a sua narração não corresponde exactamente, em momentos chave, com aquilo que vemos a acontecer no ecrã. Enquanto ela enrola o sociólogo, e faz o papel de coitadinha, vemos a contagem de corpos a crescer, já que alguns dos seus amantes sofrem convenientes ‘acidentes’, antes de ela passar para o seguinte. Numa altura, chega a equilibrar quarto homens ao mesmo tempo, e o filme atinge aqui a sua passada mais vibrante. Mas Camille começa a ter grande dificuldade em gerir os seus esquemas, e os eventos levam inevitavelmente à sua captura. Contudo, isso foi só um pequeno percalço. Agora, à medida que as entrevistas se sucedem dia após dia, Camille está a meter um novo plano em marcha, e o sociólogo parece estar prestes a tornar-se mais uma vítima do seu irresistível charme. Mas negando o óbvio, o filme ainda esconde uns truques na manga, e o final é delicioso, completamente negro... ou devo dizer noir?!

Com uma estrutura argumental incrivelmente simples, Truffaut injecta, mesmo assim, um leque de valências na sua película. É cinema social do melhor, pois consegue ser profundo e crítico, disparando uma salva de tiros directamente contra o sistema judicial, mas nunca pondo em causa, para o fazer (um grande mal dos filmes sociais) nem a qualidade do filme, nem o ritmo da história, nem a humanidade das personagens. Mas o filme é também um enorme pedaço de entretenimento, que é engraçado, ritmado e negro. Com a sua veia humorística peculiar, presente em tantos outros dos seus filmes, Truffaut faz de ‘Une belle fille comme moi’ um excelente filme noir, com a Camille de Bernadette Lafont a ser uma memorável femme fatale, que salta de um amante para o outro, tirando do caminho aqueles que já não lhe interessam, quer usando as próprias mãos, quer instigando-os uns contra os outros, só para no fim levar a sua avante.

E o que tem mais interesse é que o publico chega realmente a torcer por Camille (só um filme muito bem feito é que nos leva a torcer pelo vilão). Após alguns anos na prisão, Camille não perdeu o seu toque, e ainda tem o talento para enrolar o sociólogo, que pode ser o seu bilhete para a liberdade, à volta do dedo. E ao aperceber-se disso, o espectador não sente pena pelo sociólogo. Em vez disso está a sorrir, à espera do próximo malabarismo de Camille. E isso é óptimo.

Ok, o filme pode acabar por não ser muito credível, e ser um dos mais fantasiosos que Truffaut já produziu. Mas há inúmeros filmes com uma história semelhante, que têm argumentos consideravelmente piores, e que resvalam facilmente para produtos comédia-romântica ou policial de comédia-acção de qualidade extremamente duvidosa. Mas um bom filme de um género menor não deixa de ser um bom filme e ‘Une belle fille comme moi’ é sem dúvida alguma um bom filme. Truffaut demonstra mais uma vez o seu maravilhoso timing cómico, e a sua subtileza, introduzindo crítica social num filme que não precisa disso para se suster, e sem forçar essa crítica, nem essa visão dramática, ao espectador. O filme agrada ao espectador pelo seu valor intrínseco, pelo valor da sua história, das suas personagens, do seu ritmo e do seu humor, e não apenas pelo valor da sua mensagem. Mas porque essa mensagem existe, o filme ganha profundidade. E é esta dupla riqueza que faz um grande filme, pelo menos para mim. Mas porque a historia e o tom não são ‘sérios’ nem os ‘correctos’, independentemente da mensagem subjacente, o filme não está no topo das obras primas de Truffaut, no ponto de vista dos críticos. Mas no meu, que não ligo a essas coisas, está.

Adoro, adoro, adoro ‘Une belle fille comme moi’. Adoro mais até que muitas supostas obras-primas de Truffaut. Não diria que era um dos melhores filmes já feitos, nem o encheria de prémios, mas constitui uma experiência cinematográfica inacreditavelmente deliciosa e altamente desfrutável. E se isso não é bom, então não sei o que é.

1 comentários:

  1. Um Filme incrível e com um final surpreendente. Gostaria de encontrá-lo inteiro para assistir de novo. Destaque para meu ator favorito, o saudoso Charles Denner no papel de Arthur.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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