Realizador: Anthony Mann
Actores principais: James Stewart, Rock Hudson, Arthur Kennedy
Duração: 91 min
Crítica: Há westerns e há westerns. E depois há os westerns especiais. Os de Sergio Leone com Clint Eastwood. Os de John Ford com John Wayne. E, sem dúvida alguma os de Anthony Mann com James Stewart.
O western, como género, passou por várias iterações. Foi considerado um género menor, de série B, durante grande parte da era do cinema mudo e dos anos 1930, década dos cowboys cantantes e das simples first features. Tudo isso mudou em 1939 com ‘Stagecoach’ de John Ford e ‘Union Pacific’ de Cecil B. DeMille, dois filmes que deram uma nova maturidade ao western e abriram as portas para uma década onde, em período de Guerra, começou a representar algo mais profundo; a essência dos valores americanos e a luta para os manter, como em obras primas como ‘The Ox Bow Incident’ (1943) ou ‘My Darling Clementine’ (1946). Gradualmente, o western foi abandonando a alegria despreocupada e aventureira que tinha na década de 1930 para se tornar progressivamente mais duro, acompanhando as alterações morais e sociais da sociedade americana do pós Guerra.
No limite, nas décadas de 1960 e 1970, através de trabalhos de realizadores como Sergio Leone, Sam Peckinpah ou Andrew V. McLaglen, o western ficaria cada vez mais alheado, violento e decadente, simbolizando a quebra de valores com o passado de uma sociedade dilacerada pela Guerra do Vietnam e escândalos como o Watergate. Mas uma década antes, nos anos 1950, em plena era do mccarthismo e do início da guerra fria, o realizador mais influente de todos a alterar a face do western – e sem o qual Leone, Peckinpah, McLaglen e tantos outros nunca teriam existido, foi Anthony Mann. Depois de vários thrillers e noirs de série B pouco recordados durante a década de 1940, Mann tornou-se, inesperadamente, o pai do western psicológico, com uma sequência de filmes intensos, focados em temas de vingança, redenção e obsessão, que se tornaram ainda mais impactantes pela presença de um também inesperado actor principal: James Stewart.
"Extraordinariamente filmado nas montanhas do Oregon (...) ‘Bend of the River’ é um puro filme de acção antes do termo existir. Numa compacta e muito bem escrita narrativa, a acção do filme – e as personagens – estão sempre em movimento, numa corrida contra o tempo, contra a natureza e, claro está, contra os homens (perseguindo ou sendo perseguidos), não deixando o espectador – e as próprias personagens – tomar fôlego um único segundo."
Outrora a epítome do all-american, o herói de ‘Mr. Smith Goes to Washington’ (1939) ou ‘It's a Wonderful Life’ (1946), Stewart já tinha demonstrado uma surpreendente dualidade para Hitchcock em ‘The Rope’ (1948) (que ainda mais a exploraria em ‘Vertigo’, 1958). Mas foi Mann o primeiro a perceber o poder cinematográfico e alegórico de deturpar a imagem e o simbolismo que este grande actor (um dos meu preferidos) possuía até então. Até ‘Winchester 73’ (1950), o seu primeiro western com Mann, Stewart apenas tinha entrado num único western, o mais leve ‘Destry Rides Again’ (1939). Mas é só vê-lo em ‘Winchester 73’, uma história de perseguição e vingança, para perceber que Stewart iria encarnar uma faceta do western que John Wayne, por exemplo, nunca teria conseguido. A mítica cena do saloon, em que Stewart revela pela primeira vez o seu lado negro, é magnífica. Os seus intensos olhos azuis, agora visíveis graças ao Technicolor, enchem a tela de um misto de vida, desejo, obsessão e prazer macabro pela violência. É puro cinema. É a pura representação que não há homens bons nem homens maus. Há apenas homens que caminham perigosamente esse limbo, movidos quer pelo sentido de dever quer pelo desejo, e que só conseguirão encontrar paz e a redenção se enterrarem o passado. E isso, muitas vezes, só se obtém com vingança… e violência.
Para um actor que chegou ao western tão tarde, Stewart tornar-se-ia uma das suas mais icónicas figuras, somente atrás de Wayne. Trabalharia com John Ford, com Andrew V. McLaglen extensamente nos anos 1960 (incluindo em ‘Bandolero!’ já criticado nestas páginas), mas tudo começou com os seis westerns que fez em apenas cinco anos para Mann. Depois de ‘Winchester '73’ seguiu-se este ‘Bend of the River’ (em português ‘Jornada de Heróis’), um filme que poderá não ter a profundidade psicológica de outros westerns de Mann/Stewart, nem o poder alegórico de outros que começavam a surgir (‘High Noon’, 1952; ou ‘Johnny Guitar’, 1954), mas tem uma extraordinária vitalidade cinematográfica. ‘Bend of the River’ é um puro filme de acção antes do termo existir. Numa compacta e muito bem escrita narrativa com menos de 90 minutos, a acção do filme – e as personagens – estão sempre em movimento, numa corrida contra o tempo, contra a natureza e, claro está, contra os homens (perseguindo ou sendo perseguidos), não deixando o espectador – e as próprias personagens – tomar fôlego um único segundo.
Extraordinariamente filmado nas montanhas do Oregon (a localização é mais uma personagem, magistralmente captada em Technicolor), o filme tem, propositadamente, uma história linear; uma proverbial viagem de um ponto A para um ponto B. Um conjunto de colonizadores humildes vindos do Missouri viaja em caravana com todos os seus pertences rumo às planícies para lá das montanhas do Oregon, onde esperam criar uma nova comunidade num território fértil e virgem, uma terra de novas oportunidades. Mas a forma como o filme escolhe contar esta viagem é extremamente inteligente, condensando todos os grandes temas do Oeste em seu redor e centrando-a, não nos agricultores, mas no homem que contrataram para os guiar; Glyn McLyntock (James Stewart).
"Há momentos de puro brilhantismo no retrato da intrínseca dualidade de Stewart (...) Na fantástica cena em que é traído por Cole e jura vingança, por exemplo, Stewart consegue manter simultaneamente uma fria calma calculista, expressa nos seus vibrantes olhos azuis, e uma nervosa ânsia desesperada, alimentada por um prazer macabro, como se não conseguisse esperar pelo momento para começar a executar a sua vingança"
Como faria daqui para a frente, Stewart é extremamente convincente na sua dualidade. Por um lado mantém o enorme charme e apelo que haviam feito dele um dos actores mais bem amados da história de Hollywood. Por outro possui uma intrínseca dureza. Não precisa de disparar uma arma para sentirmos que o fará mais rápido que qualquer outro pistoleiro. Rapidamente, sentimos que ele não é tão inocente quanto inicialmente parece, e o seu passado inclui uma faceta negra (qual, só mais à frente saberemos) que ele procura esquecer e redimir. Aliás, aceitar conduzir estes agricultores é a sua forma de redenção. Espera ter forças para se juntar a eles numa vida humilde uma vez chegados ao Oregon, e quem sabe assentar com Laura (a fogosa Julie Adams), filha do líder da comunidade Jeremy (o simpático e crédulo Jay C. Flippen).
Contudo, a odisseia nunca será fácil. Logo nos primeiros minutos McLyntock salva o duro pistoleiro Emerson Cole (o suave Arthur Kennedy) de ser linchado por um conjunto de desperados. Logo a seguir, ambos têm de defender os colonos de um ataque de índios. Cole parece ser o outro lado do espelho de McLyntock. Também ele pode oscilar facilmente entre o charmoso e o viperino, mas não está tão empenhado como McLyntock em redimir-se. De momento, não se importa em acompanhar a caravana, não só porque tem uma dívida de vida para com McLyntock, como também ficou interessado em Laura, que acaba por ser ferida pelos índios.
Após as várias adversidades da primeira etapa do percurso, a caravana chega a Portland, então uma tranquila cidade. Depois, alugam um barco, comandado pelo bêbado mas simpático Mello (Chubby Johnson) – já agora cujo criado negro, extremamente bronco, é um típico estereótipo que hoje dá arrepios de tão racista que é – e seguem rio abaixo. Laura, ferida, permanece na cidade, juntamente com Cole que, pouco interessado na colonização, vê possibilidades nesta cidade em expansão onde também conhecemos um charmoso jogador profissional chamado Trey (um jovem Rock Hudson que é presença e pouco mais). O plano é que Laura, quando se curar, faça o resto da viagem e leve consigo os mantimentos comprados em Portland a Hendricks (Howard Petrie). Sem esses mantimentos os colonos dificilmente conseguirão sobreviver ao primeiro inverno, antes do cultivo dar os seus primeiros frutos.
"Em teoria, ‘Bend of the River’ teria todo o enquadramento necessário para ser mais um extraordinário western psicológico (...) Contudo, o filme acaba por nunca aprofundar devidamente esta luta interna, nem a forma como ela condiciona a relação de McLyntock com as outras personagens. O segredo do seu passado é apenas algo ao qual o filme volta confortavelmente de vez em quando em diálogos cíclicos e sem grande consequência."
O filme tem dinamismo no próprio movimento da caravana, nesse constante rumar em frente por terra ou por mar, montanha acima e montanha abaixo, mas isso é muito menos importante que a disputa que está para vir. Daí haver um imediato salto temporal para alguns meses mais à frente, quando vemos já a nova comunidade em funcionamento, mas a sentir a sombra da chegada do inverno, visto que Laura e os mantimentos nunca apareceram. Assim, começa a verdadeira odisseia do filme, a odisseia de McLyntock para descobrir o que se passou e conseguir salvar a vida e o sonho dos colonos. E pode ser que ao fazê-lo, consiga salvar-se também a si próprio.
Desta forma, regressa a Portland, para descobrir o verdadeiro motivo pelo qual os mantimentos nunca foram enviados. Novos interesses reinam agora na cidade, e os preciosos mantimentos têm muito valor para várias facções. McLyntock, com a ajuda de Cole, Tray e Mello, consegue começar uma segunda caravana para transportar os mantimentos, mas a tarefa é ainda mais árdua. Hendricks não está disposto a abdicar deles tão facilmente; os garimpeiros das montanhas também estão interessados em obtê-los, por qualquer meio possível, para eles próprios poderem sobreviver ao Inverno; e a tentação do dinheiro fácil pode corromper até os melhores amigos. Mas não pode corromper o próprio McLyntock, custe o que custar, não importa o sacrifício. Contudo, para poder terminar o seu trabalho e salvar os colonos, precisa de todos os seus velhos instintos de volta….
Em teoria, ‘Bend of the River’ teria todo o enquadramento necessário para ser mais um extraordinário western psicológico. Aliás, há momentos de puro brilhantismo no retrato da intrínseca dualidade de Stewart, à imagem do que havia acontecido em ‘Western ‘73’. Na fantástica cena em que é traído por Cole e jura vingança, por exemplo, Stewart consegue manter simultaneamente uma fria calma calculista, expressa nos seus vibrantes olhos azuis, e uma nervosa ânsia desesperada, alimentada por um prazer macabro, como se não conseguisse esperar pelo momento para começar a executar a sua vingança. Contudo, o filme acaba por nunca aprofundar devidamente esta luta interna, nem a forma como ela condiciona a relação de McLyntock com as outras personagens. O segredo do seu passado é apenas algo ao qual o filme volta confortavelmente de vez em quando em diálogos cíclicos e sem grande consequência. As outras personagens ou não sabem quem ele era, ou aceitam-no rapidamente quando o descobrem; e nunca há a questão de se McLyntock alguma vez irá abandonar os colonos a troco do dinheiro. O único drama que ele vive é o de reactivar os seus instintos de novo, e se pode fazê-lo e ter a redenção ao mesmo tempo. Mas essa resposta é fácil de obter, para o filme e para o espectador.
"O que falta ao filme do ponto de vista emocional e psicológico é largamente compensado, do ponto de vista do drama cinematográfico, pelo extraordinário encadeamento das suas sequências e pelo intenso ritmo que Mann imprime em todas elas. Não há praticamente um segundo de descanso. As personagens saltam constantemente da frigideira para o fogo, enquanto todas as lendas do Oeste (...) convergem para o epicentro desta aventura."
Do mesmo modo, as várias relação cruzadas, quer as amorosas (o triângulo McLyntock-Laura-Cole, e a relação entre Trey e a irmã mais nova de Laura), quer as de amizade (McLyntock com Cole; McLyntock com Jeremy) nunca são realmente desafiadas pelos eventos nem pelos fantasmas do passado. É tudo preto no branco, ninguém foge à sua verdadeira natureza, mesmo que o argumento de quando em quanto procure – sem grande convicção – enganar o espectador que sim. E portanto o desfecho emocional é bastante claro, e bastante previsível, para todas as personagens.
Talvez por estes motivos, ‘Bend of the River’ tenha sido um filme recebido de forma relativamente morna pelos críticos contemporâneos. No entanto, não escapa a ninguém o motivo pelo qual foi cimentando a sua reputação com o passar das décadas, principalmente, digo eu, quando anos mais tarde os filmes de acção se começaram a reger pelas mesmas regras estruturais. O que falta a ‘Bend of the River’ do ponto de vista emocional e psicológico é largamente compensado, do ponto de vista do drama cinematográfico, pelo extraordinário encadeamento das suas sequências e pelo intenso ritmo que Mann imprime em todas elas. Não há praticamente um segundo de descanso. As personagens saltam constantemente da frigideira para o fogo, enquanto todas as lendas do Oeste – os índios, os garimpeiros, os cowboys, os desperados, os colonos, os jogadores – convergem para o epicentro desta aventura.
Não é que hajam propriamente cenas grandiosas (não há estampadas de búfalos ou a chegada da cavalaria, e até o ataque dos índios é invisível, sempre visto da perspectiva dos colonos). Mas Mann é um mestre a gerir a cadência das tensões no seio deste conjunto confinado de personagens. Para McLyntock há sempre mais um obstáculo a vencer, há sempre um elemento (humano ou da natureza) a trabalhar contra ele. E mesmo nos breves momentos de pausa (uma conversa à fogueira, um olhar para a natureza no dorso de um cavalo) há uma subjacente noção de perigo que nunca abandona as personagens. Elas sabem que há sempre um risco em vias de se materializar. E o espectador sente esse risco, através do enquadramento, é certo, mas principalmente – e isto é o mais importante – através das personagens.
"Tudo funciona à superfície; as excelentes localizações, a brilhante fotografia, as convincentes actuações e o argumento acelerado e bem montado. E a aventura assenta num pilar de entretenimento cujo objectivo é manter o espectador seduzido, cena a cena, diálogo a diálogo (...) Não está aqui uma grande alegoria do Oeste, e essa é talvez a sua maior falha. Mas está aqui uma pura aventura"
Tudo somado ‘Bend of the River’ é um filme que surpreende. Pessoalmente, acho-o fantástico. Talvez não seja o pacote completo de outros grandes westerns de Mann mais duros como ‘Winchester ‘73’ e os subsequentes ‘The Naked Spur’ (1953) ou ‘The Man from Laramie’ (1955), mas é um filme que tem garra e virtuosidade cinematográfica. Como filmes de acção de décadas seguintes, está menos preocupado com o conteúdo e mais com a forma. Mas que forma! Tudo funciona à superfície; as excelentes localizações, a brilhante fotografia, as convincentes actuações e o argumento acelerado e bem montado. E a aventura assenta num pilar de entretenimento cujo objectivo é manter o espectador seduzido, cena a cena, diálogo a diálogo, para que ele mal possa esperar para saber o que vai acontecer a seguir. O filme ataca, continuamente, com novas reviravoltas, sem precisar para isso de abdicar da sua coesão e qualidade visual. Não está aqui uma grande alegoria do Oeste, e essa é talvez a sua maior falha. Mas está aqui uma pura aventura, uma fantasia heróica assente no espírito e nas lendas do velho Oeste. Não precisa de efeitos visuais. Só precisa de uma inerente força motriz assente nos princípios básicos do grande cinema. E isso é suficiente para 90 minutos bem passados, mais de meio século depois.
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