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We're No Angels

Ano: 1955

Realizador: Michael Curtiz

Actores principais: Humphrey Bogart, Peter Ustinov, Aldo Ray

Duração: 106 min

Crítica: Há filmes de Natal e há filmes de Natal. Há aqueles filmes de Natal que toda a gente conhece e que são revisitados, ano após ano (infelizmente cada vez menos) como parte do imaginário colectivo da cultura popular. Estou a falar de filmes como ‘It's a Wonderful Life’ (1946; não há Natal sem ele na América… em Portugal não é bem assim); ‘Home Alone’ (1990), ‘Love Actually’ (2003) ou as múltiplas adaptações de 'Christmas Carol’, só para citar alguns. Mas depois há os outros filmes de Natal, aqueles que com o passar das décadas caíram um pouco no esquecimento, a não ser para alguns cinéfilos dedicados, ou para famílias que, por um motivo ou por outro, os tornaram parte da sua tradição. Não implica que sejam necessariamente piores do que aqueles que se popularizaram. Talvez simplesmente nunca tiveram uma chance.

Aqui há uns anos apresentei nestas páginas ‘The Bishop's Wife’ (1948) como um desses clássicos esquecidos que merece um bom visionamento em família durante a época natalícia. Hoje estou aqui para escrever sobre outro: ‘We're No Angels’ (em português ‘Veneno de Cobra’). Não é que ‘We’re No Angels’ seja propriamente um filme típico de Natal. Não é (e com o título que tem em português ainda menos…). E não é que ‘We’re No Angels’ seja propriamente uma obra prima. Também não é. Na verdade, é apenas uma ligeira e simpática comédia negra com uma premissa simples e uma execução por vezes excessivamente morosa. Contudo, para além de se passar durante a época natalícia, tem uma coisa muito importante, coisa essa que por vezes até falta aos filmes que são ostensivamente sobre o Natal: espírito.

"Não é que seja propriamente um filme típico de Natal. Não é. E não é que seja propriamente uma obra prima. Também não é. Na verdade, é apenas uma ligeira e simpática comédia negra com uma premissa simples e uma execução por vezes excessivamente morosa. Contudo, para além de se passar durante a época natalícia, tem uma coisa muito importante (...): espírito."

‘We’re No Angels’ foi a última das oito colaborações entre o mítico realizador Michael Curtiz e o mítico actor Humphrey Bogart. Se a maior parte destas colaborações se deram nos anos 1930, quando Bogart era ainda um actor secundário, em 1942 Curtiz foi crucial para imortalizar Bogart quando o filmou em ‘Casablanca’, voltando a trabalhar com ele em 'Passage to Marseille’. Onze anos depois, em 1955, quer Curtiz quer Bogart estavam em fases descendentes das suas carreiras. Bogart faleceria em 1957, pelo que apenas faria mais três filmes depois de ‘We’re No Angels’. Já Curtiz, que para além de ‘Casablanca’ havia realizado obras primas como ‘The Adventures of Robin Hood’ (1938); ‘Yankee Doodle Dandy’ (1942) ou ‘Mildred Pierce’ (1945) também faleceria pouco tempo depois, em 1962. Isso não o impediu contudo de realizar ainda mais doze filmes nos seis anos seguintes (sempre foi muito prolífero), como por exemplo ‘King Creole’ (1958) com Elvis, ou ‘The Comancheros’ (1961) com John Wayne, o seu derradeiro filme, muito embora longe da qualidade e da imortalidade dos seus filmes da década de 1940.

Assim sendo, ‘We’re No Angels’ surge para ambos, realizador e actor principal, como uma tranquila obra tardia, que raramente merecerá lugar de destaque nas suas filmografias mas que contudo pode ser descoberta como a agradável surpresa que é. Curtiz havia realizado no ano anterior um dos mais icónicos filmes de Natal clássicos, o musical ‘White Christmas’ (1954) com Bing Crosby e Danny Kaye, pelo que é curioso que o seu projecto seguinte tenha sido um filme que, pelo menos em forma e aspecto, se distancia do habitual modelo dos filmes de Natal. O genérico de ‘We’re No Angels’ até partilha do garrido Technicolor das obras mais fantasiosas da época, com azuis e vermelhos fortes e uma música simpática, mas depois ocorre uma gigantesca antítese. Não estamos em paisagens gélidas, nem ao redor de aconchegadoras lareiras. Estamos no século XIX na Guiana Francesa, mais precisamente na colónia penal conhecida por Devil’s Island; um local quente e sujo e suado.

Baseada na peça de teatro de Albert Husson e passado entre a véspera e o dia de Natal, a premissa de ‘We’re No Angels’ é bastante simples e o filme restringe-se praticamente a dois cenários. Primeiro estamos junto ao porto, onde uma pequena cidade proliferou à volta da economia da prisão e onde a sociedade está claramente dividida entre os ex-prisioneiros e os nobres (geralmente empertigados) franceses. Três prisioneiros acabaram de escapar da prisão e tentam passar despercebidos por entre as hordas de ex-presidiários ou presos em liberdade condicional, inevitavelmente condenados a vaguearem pela cidade e pela ilha sem possibilidade de apanharem o tão cobiçado barco para outro país ou de volta à Europa.

"É Bogart que mais brilha (era um excelente actor cómico quando queria, pena não ter tido muitas oportunidades). Momentos memoráveis incluem (...)  o envergar de um avental cor-de-rosa. (...) Só por esse momento único, este filme vale a pena, e prova-se também que para proporcionar bons momentos, quer Bogart quer o filme não se importam nada de não se levar totalmente a sério. Na onda do espírito de Natal, faz todo o sentido"

Joseph (Humphrey Bogart) é o líder do grupo. Apesar de Bogart o interpretar de forma soft (pelo menos quando comparado com os seus gangsters das décadas anteriores) não deixa de ser um trapaceiro sem escrúpulos que mais tarde descobrimos ser um génio falsificador que adulterava relatórios de contas para seu próprio proveito. Jules (Peter Ustinov com o seu habitual misto de comicidade, nervosismo e subtil ameaça) é um especialista arrombador de cofres (fá-lo de forma hilariante) que foi preso por matar a mulher. Por fim Albert (o menos conhecido Aldo Ray, que não tem tanta energia nem capacidade para a comédia negra como os outros dois actores), também foi preso por matar o tio por dinheiro. Apesar dos três serem assassinos (Joseph lamenta na primeira cena o guarda da prisão não ter morrido quando o tentou matar), são sempre retratados de forma simpática. A sua vilania é geralmente dirigida contra quem “merece” (guardas que abusam o poder ou snobs da alta sociedade) o que ajuda a tornar as suas personalidades mais apelativas para o público. E são. O seu sangue frio e os seus diálogos geralmente sarcásticos não gelam o espectador. Antes geram algumas boas risadas (não necessariamente inconvenientes) como só uma boa comédia negra pode proporcionar.

Os três esperam assim arranjar um modo de entrar no barco que acabou de atracar no porto e que regressará a França no dia seguinte. Assim, decidem ir assaltar a loja de conveniência local para arranjarem dinheiro, roupas de civil e material que permita a Joseph falsificar os bilhetes e os documentos de identificação. Neste que é o segundo cenário do filme (no qual ficará praticamente até ao seu final) dão de caras com o dono da loja, Ducotel, uma humilde e nervosa personagem interpretada por Leo G. Carroll. Para sua surpresa Ducotel trata-os bem, e até aceita que eles permaneçam na loja a supostamente “arranjar o telhado” nesta véspera de Natal. Do telhado, os três prisioneiros (e o espectador) ficam a conhecer a família, a Sra. Ducotel (a outrora femme fatalle Joan Bennett) e a filha Isabelle (Gloria Talbott); e ao ouvirem as suas conversas descobrem os seus problemas. Graças à personalidade excessivamente branda e crédula de Ducotel, a loja corre o risco de falência e a família de ruína. Ainda para mais, o dono da loja, o abastado primo afastado de Ducotel, Andre Trochard (o mítico Basil Rathbone num papel típico de vilão empertigado) chegou no barco que acabou de atracar e prepara-se para vir inspeccionar as contas. O seu filho Paul (John Baer), por quem Isabelle está apaixonada, virá com ele.

Os três prisioneiros ficam tão sensibilizados com a forma como a família Ducotel os trata que decidem proporcionar-lhes uma condigna ceia de Natal antes de serem confrontados nessa noite com a chegada dos Trouchard. Esta é a parte mais tranquila – mas também a mais lenta – do filme, com tudo a passar-se de forma pausada, a história a ser revelada aos poucos e os três prisioneiros com amplas oportunidades para ouvirem os problemas da família e oferecerem os seus comentários incisivos; comentários de quem não está propriamente preso pelas convenções da vida, mas também já viveu o suficiente para se arrepender das escolhas que fez. De forma engraçada estes prisioneiros provam que são mais vítimas do sistema do que propriamente más pessoas, e são decisivos para dar um novo sopro de vida a esta família. É Bogart, como não podia deixar de ser, que mais brilha (era um excelente actor cómico quando queria, pena não ter tido muitas oportunidades). Momentos memoráveis incluem a forma como aldraba clientes para obter dinheiro, como “arranja” um gigantesco manjar para o jantar, e a melhor de todas: a sua abordagem à cozinha, que inclui o envergar de um avental cor-de-rosa. Sim, é verdade, neste filme Humphrey Bogart, o mítico Humphrey Bogart, coloca um avental cor-de-rosa. Só por esse momento único, este filme vale a pena, e prova-se também que para proporcionar bons momentos, quer Bogart quer o filme não se importam nada de não se levar totalmente a sério. Na onda do espírito de Natal, faz todo o sentido.

"Não está a tentar ser subtilmente irónico e inteligente, criticando a sociedade através do exagero situacional que apresenta. O filme é demasiado relaxado para tentar atacar ou defender o que quer que seja. Pelo contrário, está apenas a ser levemente divertido. Não tão divertido que faça rir a bandeiras despregadas (nunca é hilariante), mas o suficiente para que disponha bem à custa dos “maus” terem o que merecem nas vésperas de Natal."

Depois, quando os Trouchard finalmente chegam e provam ser, quer o pai quer o filho, uns egocêntricos snobs que só se interessam pelo dinheiro que a loja pode render e tratam os Ducotel literalmente “abaixo de cão”, os três “não-anjos” tomam a si a missão de obter duradoira felicidade para esta família neste dia de Natal. Para isso, terão de fazer o que fazem melhor, ou seja, conspirar em conjunto e reverter aos seus “melhores” instintos. Claramente com prazer, Jules tem cofres para arrombar, Joseph tem pessoas para manipular e contas para falsificar e Albert… bem, digamos que a cobra venenosa de estimação de Albert poderá ter um papel crucial, especialmente quando chegam à conclusão que a melhor solução de todas é Trouchard ter um acidente mortal…

Descrito desta forma, o filme parece ser muito mais macabro do que aquilo que realmente é. Não há dúvidas que a segunda parte da película encaixa no epíteto de “comédia negra”, mas a leveza e naturalidade dos eventos é tanta que quase nem nos apercebemos disso. De facto, há muito pouca acutilância nesta alegoria e sinceramente isso parece ser uma falha propositada. Ou seja, tal como está escrito, filmado e montado, o filme não está a tentar ser subtilmente irónico e inteligente, criticando a sociedade através do exagero situacional que apresenta. É demasiado relaxado para tentar atacar ou defender o que quer que seja. Pelo contrário, está apenas a ser levemente divertido. Não tão divertido que faça rir a bandeiras despregadas (nunca é hilariante), mas o suficiente para que disponha bem à custa dos “maus” terem o que merecem nas vésperas de Natal. Um tema familiar que nos leva de volta à questão do espírito, algo que este filme tem aos magotes. Não é a condição que uma pessoa tem que a define. Os presos ou os pobres Ducotel provam ser muito melhores pessoas que os bem-educados e ricos Trouchard. É o que fazem pelos outros quando os outros mais precisam que os define. É esse sentimento que percorre o filme.

Claro que o desenlace parece ser um pouco exagerado e descabido. Não era preciso ser tão macabro quando uma boa lição de moral aos vilões serviria perfeitamente. Mas aí está talvez uma das nuances mais interessantes da obra. Sem nos apercebermos disso entra num reino perigoso para com igual rapidez voltar à placidez habitual das fantasias de Natal. O que se passou pelo meio foi um interlúdio que toma o espectador de surpresa. Isto é uma bem-vinda injecção de energia, num filme que no geral é moroso. Tudo se passa muito lentamente e sentimos que se tivesse 45 minutos em vez de 100, chegaria perfeitamente para contar exactamente a mesma história, com a mesma emoção e os mesmos twists. Porque o filme não se está a construir para inesperadamente fazer rebentar a sua bolha de comédia negra (e não fazer isso é a sua maior falha). Vai-se arrastando com vagar, misturando estes elementos aos pouquinhos, em longas cenas de diálogos que só por breves momentos conseguem ser realmente fascinantes. O final do filme também é desapontante porque é anti-climático, mas não haja dúvidas que ajuda a alimentar a posição alegórica que estes três “não-anjos” assumem no contexto desta história.

"O filme não se está a construir para inesperadamente fazer rebentar a sua bolha de comédia negra (e não fazer isso é a sua maior falha). Vai-se arrastando com vagar, misturando estes elementos aos pouquinhos, em longas cenas de diálogos que só por breves momentos conseguem ser realmente fascinantes (...) Se tivesse 45 minutos em vez de 100, chegaria perfeitamente para contar a mesma história, com a mesma emoção e os mesmos twists."

Assim sendo, podemos dizer que ‘We’re no Angels’ não é propriamente um grande filme nem uma grande comédia, nem mesmo uma grande comédia negra. Mas é certamente um bom clássico de Natal, porque tem o coração no sítio certo. Substitui o típico anjo ou misterioso benfeitor de inúmeros outros filmes por três prisioneiros, mas o sentimento que prevalece é o mesmo. O facto destes prisioneiros nunca se regenerarem (ou seja, não se tornam “bonzinhos” graças ao espírito de Natal), mas mesmo assim se conseguirem redimir graças à forma como usam os seus “talentos” para servir o bem, é um dos pormenores mais interessantes da obra, e quiçá a sua melhor moral. O que se mantém na memória do espectador é o sentimento de tranquilidade que a noite de Natal em casa dos Ducotel proporciona. É essa chama que arde no nosso coração natalício e esse momento que guardamos do filme. A subsequente comédia negra, e a simplicidade do enquadramento e a estereotipização das personagens (nenhuma é muito profunda apesar de algumas, nomeadamente a de Bogart e a de Ustinov, serem interessantes), são apenas produtos secundários ao qual o filme recorre para aumentar o seu tempo de duração, mas que realmente pouco contribuem para o seu apelo ou longevidade.

Resta a constatação de que neste mês festivo em que milhares de filmes, ano após ano, tentam captar a magia do Natal, está aqui um de apenas um conjunto limitado de obras que verdadeiramente o consegue fazer. Três prisioneiros proporcionam a ceia de Natal perfeita a uma família em dificuldades. Mais não é preciso. O pacote podia ser mais engraçado do que é. Podia. Podia ser mais acutilante. Também. Podia ser mais interessante e ritmado. Sem dúvida. E podia estar filmado com muito mais inventividade. Certo. Mas nunca se poderá dizer que este não é um filme de Natal, na verdadeira acepção do termo. Uma esquecida comédia de costumes, uma sugestão completamente diferente que deveria figurar em qualquer lista desta quadra festiva. Esqueça a neve, caro leitor. Ver Bogart de avental cor-de-rosa é a melhor prenda que terá este Natal. Bem, talvez não seja, mas não deixa de ser um momento impagável.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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