Realizador: Omer Fast
Actores principais: Tom Sturridge, Cush Jumbo, Ed Speleers
Duração: 103 min
Crítica: O projecto Scope 100 Portugal terminou a semana passada, poucos dias antes do Natal. Dos sete filmes a concurso: ‘Baden Baden’, ‘Suntan’, ‘Ema’, ‘Wild’, ‘La prunelle de mes yeux’, ‘Hjartasteinn’ e ‘Remainder’, o islandês ‘Hjartasteinn’, com o título internacional de ‘Heartstone’, foi o grande vencedor. Ou seja, foi aquele que os cem cinéfilos não profissionais portugueses que constituíam o painel de jurados desta iniciativa (e nos quais me incluí), escolheram para ser lançado comercialmente em Portugal no início de 2017, através da distribuidora Alambique Filmes, a promotora deste projecto a nível nacional.
‘Hjartasteinn’ foi sem dúvida o justo vencedor no cômputo geral, embora pessoalmente o tenha colocado na segunda posição, atrás de ‘Suntan’. Mesmo assim, na minha crítica chamei-lhe “a maior revelação de 2016; uma lírica, pungente e extremamente bem construída e bem filmada história sobre o crescimento, a amizade, o despertar sexual e a tolerância". De resto, o leitor nas passadas duas semanas teve a oportunidade de partilhar comigo a experiência deste projecto, através das críticas que fui publicando. Mas como vi o último filme, ‘Remainder’, somente no último dia, apenas a tempo de enviar o meu voto e as minhas notas críticas finais, e depois parti para umas bem merecidas férias de Natal, faltava rematar as coisas aqui em EU SOU CINEMA. Como quem diz, faltava a crítica de ‘Remainder’. Portanto, aqui vai ela.
"‘Remainder' é um daqueles filmes que hoje em dia estaria muito mais em casa no Netflix, no AXN ou no Sci-fi do que propriamente no grande ecrã. Toda a sua aura, todo o seu tom, todo o seu estilo de filmagem são de um telefilme de baixo orçamento, entre a ficção científica e o art-house, que há duas décadas (...) faria todo o sentido nos meios independentes (...), mas não agora."
Sinceramente, fiquei bastante desapontado com ‘Remainder’. ‘Suntan’, ‘Hjartasteinn’ e ‘Wild’ estavam constantemente a encimar os tops dos vários membros do júri, e claramente se destacavam dos restantes, mas pensei que ‘Remaider’ se poderia aproximar mais destes filmes da frente do que propriamente dos da retaguarda. Contudo, tal não aconteceu. Na realidade, apesar de uma premissa relativamente interessante, que me cativou quer quando li a sinopse quer durante os primeiros minutos, o filme nunca consegue fazer jus a essa ideia. Ou melhor, já não trás nada de novo à sétima arte. ‘Remainder' é um daqueles filmes que hoje em dia estaria muito mais em casa no Netflix, no AXN ou no Sci-fi do que propriamente no grande ecrã. Toda a sua aura, todo o seu tom, todo o seu estilo de filmagem são de um telefilme de baixo orçamento, entre a ficção científica e o art-house, que há duas décadas, quando os DVDs eram virgens e praticamente não havia descarregamentos pela internet, faria todo o sentido nos meios independentes e nas mais pequenas salas destinadas a um público mais selecto (trouxe-me à memória a aura do mini-clássico de culto ‘Cypher’, 2002), mas não agora. Definitivamente não agora, quando já vimos e revimos filmes muito semelhantes.
‘Remainder’ é o primeiro filme do israelita Omer Fast. Dividindo o seu tempo entre a Alemanha e Inglaterra, Fast ganhou fama e prémios internacionais por fazer instalações em formato vídeo em vários conceituados museus de arte moderna a nível mundial. Naturalmente, voltou-se para o cinema e ‘Remainder’ surge após algumas curtas-metragens como ‘Continuity’ (2012, vencedor do festival de curtas de Hamburgo) e ‘Everything That Rises Must Converge’ (2014). Mas uma coisa é fazer instalações vídeo e curtas-metragens no mesmo comprimento de onda artístico. Outra coisa é tentar transpor estas noções para o formato de longa-metragem. O cinema não precisa de ser necessariamente linear nem existir para narrar uma história. Pode ser um meio de expressão artística, intento em provocar uma troca de emoções entre criador e espectador. Mas os grandes artísticas cinematográficos que conseguiram levar avante uma coisa destas (Godard, Tarkovsky, etc) tinham muita bagagem, e muito génio. Pode ser que Fast lá chegue um dia, mas não é já agora. Principalmente, digo eu, porque decidiu apoiar-se num romance já existente em vez de seguir a sua própria inspiração.
‘Remainder’ é baseado no livro do mesmo nome de Tom McCarthy datado de 2005. Nunca o li mas é notório que as complexidades intrínsecas a este romance experimental (por definição sempre complicadas de passar para a tela) acabam por ser inevitavelmente perdidas pela inexperiência deste realizador nos pouco mais de 90 minutos que o filme dura. O filme quer ser várias coisas ao mesmo tempo: thriller inteligente, esteticamente intelectual e artístico, avant-garde. Mas acaba com muito pouco e o que sobra é uma amálgama sem grande ritmo. Mas há algo pior. Para o cinéfilo (quer para os mais, quer para os menos experimentados), o filme acaba por passar como uma cópia menor de outros filmes bem conhecidos como 'Memento' (2002) de Nolan ou principalmente 'Synedoche, New York' (2008), muito embora o romance de McCarthy anteceda o filme de Kaufman por três anos. Kaufman bem que pode ter roubado a ideia a McCarthy, mas ganhou a precedência no mundo cinematográfico, o que tira grande parte do interesse a ‘Remainder’.
"O filme quer ser várias coisas ao mesmo tempo: thriller inteligente, esteticamente intelectual e artístico, avant-garde. Mas acaba com muito pouco e o que sobra é uma amálgama sem grande ritmo. Mas há algo pior. Para o cinéfilo (...), o filme acaba por passar como uma cópia menor de outros filmes bem conhecidos como 'Memento' (2002) ou principalmente 'Synedoche, New York' (2008)"
Tudo isto faz com que, verdadeiramente, seja difícil de imaginar que ‘Remainder' alguma vez se torne num filme de culto, como se supõe que era suposto. Aliás, é difícil de imaginar que este filme se torne objecto de qualquer tipo de discussão intelectual, filosófica ou existencialista entre cinéfilos. Retirada a fachada de mistério e a construção propositadamente elusiva e artística do filme (que realmente só resulta nalguns planos, notavelmente no escritório de arquitectura pós-modernista do advogado), ficamos com a impressão de que a montanha pariu um rato, e o filme revela, na minha perspectiva, ser oco e desprovido de verdadeira raison d'être.
A premissa do filme, como disse, até é relativamente interessante. Na primeira cena começamos por seguir um homem relativamente novo, Tom (o actor Tom Sturridge, que me recordo de ver como criança em ‘Gulliver's Travels’, 1996, e que recentemente tem sido secundário em filmes ingleses como ‘On the Road’, 2012, e ‘Far from the Madding Crowd’, 2014). Tom sai de um edifício a correr, arrastando uma mala, mas é atingido na cabeça por detritos que caem desse mesmo edifício. A mala, focada pela câmara, fica no passeio, abandonada, enquanto Tom permanece inconsciente, caído na rua. Amnésico, vai ter um grande período de convalescença no Hospital. Assistimos à sua recuperação, entrecortada com pedaços soltos de memória e com as suas conversas com o advogado (Shaun Prendergast), que o convence a aceitar a indemnização milionária que lhe é oferecida para manter o caso fora dos tribunais.
Poucos minutos de filme depois, Tom sai do Hospital, ainda com a memória aturdida e com graves dificuldades de locomoção, mas milionário. Em casa a sua namorada (Cush Jumbo) aparece e desaparece incitando a sua desconfiança, tal como acontece com as atitudes do seu suposto amigo (Ed Speleers). Sozinho em casa, as suas visões, os breves vislumbres de memória que vai tendo e que podem ser a chave para o seu passado; uma velhota saindo de uma porta, um miúdo dando-lhe um objecto, vão lentamente obcecando-o. Portanto, como se nada fosse, Tom decide usar a sua recém arrecadada fortuna para lentamente descortinar o seu passado e encontrar uma explicação lógica para as visões que tem e para a atitude dos outros perante si. Para tal, contrata a peso de ouro uma espécie de mega-secretário, Naz, um faz-tudo interpretado com um inesperado carisma por Arsher Ali, para mim a mais interessante personagem do filme (muito mais interessante que Tom), com uma interpretação a condizer.
"Tudo isto faz com que seja difícil de imaginar que ‘Remainder' alguma vez se torne num filme de culto, como se supõe que era suposto (...) Retirada a fachada de mistério e a construção propositadamente elusiva e artística, ficamos com a impressão de que a montanha pariu um rato, e o filme revela, na minha perspectiva, ser oco e desprovido de verdadeira raison d'être."
Contudo, a forma como o filme explora esta premissa original não faz o menor sentido. Ao contrário de filmes como 'Memento' em que a personagem segue as pistas do seu passado e da sua memória para se redescobrir, em ‘Remainder’ a personagem dá uma volta enorme que, na realidade, parece extremamente forçada e desnecessária. Com todos os recursos financeiros de que dispõe, e se o objectivo fosse apenas preencher os vazios da sua existência passada como se insinua que é, então Tom poderia incumbir-se ele próprio dessa tarefa investigatória, ou então contratar alguém (como Naz) para a fazer por si, por mais secretos que fossem os segredos a ser revelados.
Em vez disso, Tom concebe uma ideia completamente insustentada (pelo menos no filme, talvez no romance faça mais sentido) para reavivar a sua memória. Literalmente, quer reviver “ao vivo” esses pequenos fragmentos, aplicando a sua fortuna e o génio de gestão de Naz para construir cenários altamente realistas dos locais de que se recorda, que inunda de actores criteriosamente escolhidos para reproduzir os movimentos das sombras da sua memória. Obrigando os actores a repetir esses pequenos momentos com uma monotonia cíclica, e circulando por entre os takes “reais”, Tom espera entrar dentro da sua própria cabeça para descobrir as respostas a todas as suas perguntas…
Sinceramente, isto parece apenas uma desculpa demasiado artificial para complicar o filme quando ele não precisava de complicação, se escolhesse desenrolar-se como um puro thriller psicológico/existencialista. Pior ainda, esta parte 'Synedoche, New York’ do argumento está realizada de forma extremamente enfadonha. Por esta altura o mistério, que ainda conseguira até então minimamente cativar pela promessa do mistério em si, rapidamente deixou de o fazer. Não, note-se, por a ideia ser desinteressante (não é), mesmo que pouco justificada no contexto do filme, e mesmo que já tenha sido vista no filme de Kaufman. Mas sim por o filme não ter ritmo ou qualquer tipo de energia intrínseca, e por ser tão pesaroso como a sua personagem principal. Tom arrasta-se balbuciando cena após cena enquanto obriga Naz a adicionar cada vez mais pormenores realistas aos cenários, até que realidade e ficção quase não se distinguem.
"Sinceramente, isto parece apenas uma desculpa demasiado artificial para complicar o filme quando ele não precisava de complicação, se escolhesse desenrolar-se como um puro thriller psicológico/existencialista. Pior ainda (...) o filme não tem ritmo ou qualquer tipo de energia intrínseca, e acaba por ser tão pesaroso como a sua personagem principal. (...) E a a ideia-base continua a ser desenvolvida muito abaixo do seu potencial."
E depois nota-se com ainda mais pesar que a ideia-base continua a ser desenvolvida muito abaixo do seu potencial. Os artifícios escolhidos para expandir a história (e note-se que só com dificuldade o filme passa dos 90 minutos) ainda menos sentido fazem, mesmo considerando todas as possíveis implicações e ramificações metafísicas, psicológicas ou metafóricas existentes que poderiam, se bem trabalhadas, salvar a obra. Em algum momento, por exemplo, se compreende porque motivo a personagem deixa de recriar os eventos do seu passado (que logicamente seria o que devia fazer) para passar, de repente, a recriar os eventos do seu presente; cenas a que já assistimos e que se passaram, temporalmente, depois do seu acidente que abriu o filme. E em algum momento se compreende porque, de repente, a personagem tem necessidade de recriar eventos em que nem sequer, supostamente, esteve presente. Não é preciso explicar tudo (senão ninguém gostava de David Lynch), mas é preciso que o que é exibido tenha o mínimo de, pelo menos, lógica interna, no universo do filme. Em ‘Remainder’ não existe essa lógica e a cadeia de eventos cíclica que nos leva até ao final (que tenta ser chocante) parece suceder-se apenas porque “seria super avant guard se agora fizéssemos isto ou aquilo”… Pode ser tudo muito "à frente" para o comum dos mortais, mas reitero que convenientemente esmiuçado a psicologia do argumento não faz sentido absolutamente nenhum e que o seu eventual significado é oco. Quanto muito é a arte pela arte, mais nada, valendo o que vale. Mas é, na minha opinião, um tipo de arte pobre e pouco estimulante.
‘Remainder’ procura, desesperadamente e sem sucesso, ter um significado muito maior do que aquele que advém da sua ideiazinha de artístico sci-fi de baixo orçamento. Se talvez devemos culpar a obra de base, e não o realizador, deste problema, a verdade é que o realizador também não está isento de culpas. O filme não possui outras valências ao nível da realização (desenxabida), da fotografia (monótona) ou da actuação (pouco memorável) para compensar esta falha forte ao nível argumental e estrutural.
No fundo ‘Remainder’ é um filme datado que chega aos cinemas mais de uma década atrasado. Há quinze anos seria uma pequena perolazinha que podia originar umas discussões interessantes (embora efémeras) que permitiriam passar um bom serão da boa e velha 'cultura' numa pequena sala de cinema alternativa. Agora este tipo de obra já perdeu o seu lugar no grande ecrã, não só porque já se viu muito disto de 2000 em diante (e a televisão por cabo encheu as medidas deste género), como também o próprio filme não tem muita qualidade intrínseca para mais. Quando o tema era novidade ainda podia passar como qualquer coisa. Mas não agora. Sem grande propósito, o filme falha redondamente o seu objectivo principal: estimular intelectualmente o espectador através da sua pequena expressão pseudo-artística, pseudo-alegórica, pseudo-avant-garde. E falhando esse objectivo, tudo o resto se desmorona como um castelo de cartas na areia.
"O filme não possui outras valências ao nível da realização (desenxabida), da fotografia (monótona) ou da actuação (pouco memorável) para compensar esta falha forte ao nível argumental e estrutural. (...) O filme falha redondamente o seu objectivo principal: estimular intelectualmente o espectador através da sua pequena expressão pseudo-artística, pseudo-alegórica, pseudo-avant-garde. E falhando esse objectivo, tudo o resto se desmorona"
Caro leitor, obrigado por me ter acompanhado nesta odisseia pela primeira edição do projecto Scope 100 Portugal. Para o ano, segundo dizem, há mais. E se houver eu vou fazer os possíveis para estar lá outra vez. Fica a minha ordenação final dos sete filmes, com todos os links para que possa rever as críticas. ‘Hjartasteinn’ foi o grande vencedor, e concordo com essa escolha, mas no íntimo gostei mais de ‘Suntan’. Ambos, juntamente com ‘Wild’, são filmes a não perder.
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