Realizador: Edgar Wright
Actores principais: Simon Pegg, Nick Frost, Martin Freeman
Duração: 121 min
Crítica: Não é fácil criar um fenómeno cinematográfico de culto. Muitos tentam fazê-lo, pensando em todos os pormenores exaustivamente – da roupa, à maquilhagem, às frases icónicas de diálogo, aos cenários estilizados – e não conseguem. Porque não é o próprio filme em si que dita as regras; é o público e a forma como o aceita. Em 2004 o público aceitou que o agora “clássico” ‘Shaun of the Dead’ (acho que já o podemos chamar assim) se tornasse um desses filmes. Por conseguinte, o realizador Edgar Wright e a dupla de actores cómicos Simon Pegg e Nick Frost, então apenas relativamente conhecidos no Reino Unido através do meio televisivo, foram subitamente catapultados para o palco mediático.
Sinceramente, não creio que ‘Shaun of the Dead’ seja o genial filme de culto que os fãs fizeram dele. Contudo, é também verdade que é muito mais do que uma paródia aos filmes de zombies. O facto de nunca se assumir completamente como uma comédia (recordemos que o filme tem momentos de gore intensos), e focar-se muito mais nas personagens do que na acção propriamente dita, tornam-no muito mais fascinante e acutilante. Claro que funciona como um bem conseguido pedaço de entretenimento, que homenageia este género particular com um seguríssimo conhecimento de causa, e onde humor é fluído e natural (nunca joga baixo), embora nunca seja realmente hilariante. Mas o segredo do sucesso do filme está principalmente no facto de ser uma excelente sátira social, nomeadamente da classe média inglesa. É esse o centro da obra e tudo o resto; o estilo de montagem, a paródia e a acção advêm daí, dando-lhe uma grande consistência.
"Hot Fuzz’ é um digno sucessor de ‘Shaun of the Dead’ porque existe no mesmo universo temático. Mas é mais do que isso. É um filme mais maduro e mais bem trabalhado (...) tendo mais tempo para saborear as personagens, os diálogos e as múltiplas homenagens cinematográficas que faz. (...). Se algum filme misturou Miss Marple com League of Gentleman com blockbusters como ‘Point Break’ (1991) ou ‘Bad Boys II’ (2003), então é este."
Deste modo, seria difícil de imaginar que alguma vez Edgar Wright e Simon Pegg (que escreveram os argumentos em co-autoria) pudessem tirar algo melhor da cartola. Inúmeros realizadores não conseguem repetir a irreverência dos seus primeiros sucessos, porque a fama torna-os mais conscientes e tentativa de repetição de estilo vem associada a uma inevitável artificialidade. A pureza virgem perde-se, bem como a excitação da experiência cinematográfica. Mas quando ‘Hot Fuzz’ (em português 'Hot Fuzz - Esquadrão de Província') foi lançado três anos depois, o espectador descobriu que Wright e Pegg estavam apenas a aquecer. ‘Hot Fuzz’ é um digno sucessor de ‘Shaun of the Dead’ porque existe no mesmo universo temático. Mas é mais do que isso. É um filme mais maduro e mais bem trabalhado. Achei isso quando o vi na altura do seu lançamento e acho isso agora que o revi quase uma década depois.
‘Hot Fuzz’ é o segundo daquela a que Wright chamaria a trilogia do Cornetto (completada com ‘World’s End’, 2013; embora ‘Paul’, 2011 seja a quarta roda desta odisseia). E, como filme do meio, mais do que cumpre o seu papel. É o ‘The Empire Strikes Back’ da comédia de costumes inglesa. Não precisa de repetir todas as nuances do filme original (por exemplo o estilo de montagem de Wright está mais contido, sendo exagerado apenas em cenas estratégicas), porque sabe que tem uma bagagem suficientemente sólida. Nomeadamente, o realizador está mais confiante e Pegg e Frost estão no cumprimento de onda ideal para que a sua comédia e o seu bromance funcionem em pleno. Assim, ‘Hot Fuzz’ consegue ser muito mais focado, tendo mais tempo para saborear as personagens, os diálogos e as múltiplas homenagens cinematográficas que faz. Se ‘Shaun of the Dead’ era a definitiva sátira “inglesa” aos filmes de zombies, ‘Hot Fuzz’ é a definitiva sátira do humor inglês aos filmes de investigação criminal e aos blockbusters de acção, com um elemento que o torna ainda mais comicamente apelativo. Passa-se numa pequena vila da Inglaterra rural, o cenário ideal para a conspiração e o mistério desde as obras de Agatha Christie ou Father Brown. Se algum filme misturou Miss Marple com League of Gentleman com blockbusters como ‘Point Break’ (1991) ou ‘Bad Boys II’ (2003) (particularmente estes dois são sobejamente referenciados), então é este. É possível fazer esta mistura e ter sucesso? Como ‘Hot Fuzz’ prova, é.
Simon Pegg é mais uma vez a personagem principal do filme. Desta vez interpreta Nicholas Angel, inicialmente quase o oposto da sua personagem em ‘Shaun of the Dead’. Angel é um jovem polícia londrino extremamente dedicado ao seu trabalho e cuja eficiência o torna num dos mais bem-sucedidos agentes da cidade. Contudo essa eficiência, apesar de louvada pelos múltiplos prémios que recebe, prejudica-o a nível pessoal. A sua namorada Janine (nunca lhe vemos a cara mas é Cate Blanchett!) deixa-o porque o acusa de ser casado com o trabalho, e torna-se também alvo de inveja dos seus companheiros e superiores, onde se incluem pequenos cameos de Bill Nighy, Martin Freeman e Steve Coogan. Assim, estes três conspiram para transferir Angel para o local mais remoto que conseguem encontrar. Nomeadamente a pequena vila de Sandford, reputada como a vila mais segura de Inglaterra, que há mais de duas décadas não tem um crime grave e que ganha recorrentemente o prémio de vila do ano. Sem escolha, Angel é obrigado a relocalizar-se. Mas como o espectador já está à espera, e Angel rapidamente irá descobrir, nem tudo o que parece é…
"Pegg e Frost estão no cumprimento de onda ideal para que a sua comédia e o seu bromance funcionem em pleno. (...) Danny é muito como a personagem de Frost em ‘Shaun of the Dead’ (...) mas se no primeiro filme não passava disso (era mero escape cómico), aqui evolui. (...) Não estamos a falar de algo muito profundo, obviamente (não é esse tipo de filme), mas é bom vermos isto a acontecer no ecrã. Adiciona camadas ao filme."
Em retrospectiva é curioso notar que o massivo sucesso de bilheteira ‘Bienvenue chez les Ch'tis’ (2008) de Danny Boon, onde um carteiro convencido da grande cidade é forçado a ir trabalhar para uma aldeia do norte de França, tenha sido lançado um ano depois de ‘Hot Fuzz’. A premissa dos filmes é semelhante, mas se o francês se contenta em ser uma comédia de costumes, o inglês é muito mais multifacetado. Há um óbvio choque cultural quando Angel chega à pequena aldeia e se tem de adaptar aos seus ritmos. Mas há também coisas que não soam bem e demasiadas personagens peculiares, até para aquilo que é a convenção estereotipada da ruralidade inglesa.
Neste sentido, a cadência do filme é inteligente. Inicialmente, Angel nota apenas pequenos pormenores “desculpáveis”, seja a excentricidade da sua nova senhoria, menores a beberem num bar local, ou a excessiva placidez dos polícias locais, pouco habituados à acção, comandados pelo Inspector Butterman (Jim Broadbent). As atitudes de rigidez ética e policial de Angel (não quebra as regras por ninguém) fazem com que seja um pouco admoestado pelos populares e pelos convencidos detectives locais. Assim é forçado a fazer trabalhos menores como procurar gansos desaparecidos.
Mas nesta vila perfeita ninguém guarda rancores por muito tempo. Principalmente, Angel vai criar uma relação com o polícia Danny (Nick Frost), o filho do Inspector. Inicialmente, Danny é muito como a personagem de Frost em ‘Shaun of the Dead’; preguiçoso, infantil, embora com uma boa alma. Mas se no primeiro filme não passava disso (era mero escape cómico), aqui a sua personagem evolui. Para fazer a coisa acertada, para satisfazer o seu sonho de ser parte de um icónico duo de polícias à imagem de ‘Lethal Weapon’ ou ‘Bad Boys’ (um universo que dá a conhecer a Angel), tem de ganhar consciência das suas falhas e usar esse conhecimento para crescer. E graças a essa amizade inesperada Angel também cresce, também evolui, e começa a perceber que há mais na vida do que ser o polícia perfeito. Não estamos a falar de algo muito profundo, obviamente (não é esse tipo de filme), mas é bom vermos isto a acontecer no ecrã. Adiciona camadas ao filme.
"Um dos melhores elementos de ‘Hot Fuzz’, para lá da sátira cómica e do ambiente fílmico, é que o mistério tem interesse por si. (...) Talvez o excessivo gore seja desnecessário (...) mas o ritmo do filme é sempre cativante. Não tanto pelo estilo de montagem, mas pela mistura eficaz de humor e ironia, comédia de situação e subtis referências (...), usadas inteligentemente para servir os propósitos desta história. E é assim que deve ser."
Aos poucos, o filme vai dando pequenas pistas de que a idílica imagem da vila não é o que parece. Há acidentes a mais, demasiado convenientes, e Angel começa a suspeitar. Um actor de teatro sofre um acidente de viação. Um jornalista é morto quando uma estátua cai em cima dele. A dona da loja de flores é morta com umas tesouras de podar. E porque é que o charmoso dono do hipermercado local, Simon Skinner (o ex-James Bond Timothy Dalton num papel fácil – para ele – mas eficaz) aparece sempre no local dos acidentes, como que por acaso? É dele que Angel suspeita e aos poucos começa a deslindar o mistério que a vila esconde, embora ninguém, incluindo todos os seus colegas da polícia, acreditem nele.
Um dos melhores elementos de ‘Hot Fuzz’, para lá da sátira cómica e do ambiente fílmico, é que o mistério tem interesse por si. Geralmente neste género de filme o “segredo” é algo simplório, um mero contexto para as cenas de acção cómica. Mas aqui tem mérito próprio já que este mesmo tipo de trama podia estar num filme com ambições muito mais dramáticas. Talvez o excessivo gore seja desnecessário (como em ‘Shaun of the Dead’) mas o ritmo do filme é sempre cativante. Não tanto pelo estilo de montagem típico de Wright, mas pela mistura eficaz de humor e ironia, comédia de situação e subtis referências aos dois géneros que aborda – “mistério em aldeia inglesa” e “buddy-cop” – que os fãs imediatamente identificarão. Não é mera cópia (outro ponto a favor) mas um uso inteligente de referências para servir os propósitos desta história em particular. E é assim que deve ser.
Contra a passividade e a incredulidade de toda a aldeia Angel, com a ajuda de Danny, irá descobrir o bem guardado segredo e quem são os vilões desta história. Não é propriamente um choque (aos poucos já tínhamos adivinhado), mas abre o caminho para o último acto do filme, esse sim surpreendente. Quando tudo parece já em vias de estar terminado, o filme oferece-nos praticamente mais meia hora, tornando-se um fantástico send-off aos blockbustes de acção dos anos 1990. Armados até aos dentes, Angel e Danny têm um showdown no centro da vila contra os vilões. E aqui sim all hell breaks loose [perdoem-me todos os estrangeirismos, mas é esse tipo de filme...].
"Creio sinceramente que nunca houve uma homenagem cómica tão bem conseguida ao universo de (...) tantas obras icónicas dos anos 1980 e 1990. É delicioso. A acção é dinâmica, os one-liners hilariantes (...) Pegg e Frost tornam-se Smith, Lawrence, Gibson, Willis, Stallone ou Reeves perante os nossos olhos, encarnam essas personalidades não apenas como uma paródia de costumes, mas como se realmente tivessem sido heróis de acção nessa era."
Creio sinceramente que nunca houve uma homenagem cómica tão bem conseguida como estes largos minutos ao universo de ‘Point Break’, ‘Die Hard’, ‘Lethal Weapon’, ‘Speed’, ‘Bad Boys’ e tantas outras obras icónicas dos anos 1980 e 1990. É delicioso. A acção é dinâmica, os one-liners hilariantes. Que mais se pode querer? Pegg e Frost tornam-se Smith, Lawrence, Gibson, Willis, Stallone ou Reeves perante os nossos olhos, encarnam essas personalidades não apenas como uma paródia de costumes, mas como se realmente tivessem sido heróis de acção nessa era.
É isso que distingue ‘Hot Fuzz’ de outras supostas épicas homenagens como ‘The Expendables’. Esse filme era entretenimento acéfalo, superficial, que confiava nos nomes do seu elenco mas esquecia-se de compensar com personagens apelativas cenas de acção dinâmicas. Porque oferece ambas estas coisas, ‘Hot Fuzz’ é muito mais vibrante. É uma homenagem com substância que se consegue erguer a um patamar completamente diferente, a um universo próprio de comicidade surreal, onde o que é “normal” é transformado numa ilusão estereotipada que aceitamos porque, como espectadores, estamos completamente habituados a este tipo de realidades cinematográficas. E essa ilusão torna-se a realidade também para as personagens. Pegg e Frost estão completamente cientes deles próprios e dos lugares comuns que representam (veja-se como de repente Pegg começa a falar com voz grossa) mas nunca quebram o tom. Vivem cada momento com seriedade, o que mais enfatiza a componente humorística e de surrealismo desta obra. Eles não são heróis de acção “de Hollywood”. Não é uma pré-condição. Tornam-se heróis de acção “de Hollywood” graças ao arco argumental que o filme percorre. E aqui reside o elemento chave da homenagem.
Tudo somado, ‘Hot Fuzz’ não é propriamente uma obra prima da comédia porque não faz rir a bandeiras despregadas, cena a cena. O seu humor é subtil e inteligente (é, digamos, britânico) e portanto não cairá nas graças de todos os espectadores. Nem é uma obra prima do cinema de acção como essas obras dos anos 1990 que homenageia, porque não é um pedaço de entretenimento somente movido por testosterona explosiva. Mas é um filme inteiramente convincente que se move entre estes meios com uma enorme destreza e um enorme foco. Não quer tanto ser engraçado (embora acabe por o ser), como contar uma boa história, que por sua vez vale não pela história em si mas pelas memórias que ela instiga no espectador. As memórias de grandes policiais “rurais” ingleses. As memórias de grandes blockbusters de Hollywood. Em ‘Hot Fuzz’ temos uma carta de amor a ambos.
"‘Hot Fuzz’ não é propriamente uma obra prima da comédia (...) nem do cinema de acção (...) mas é um filme que se move entre estes meios com uma enorme destreza. Não quer tanto ser engraçado (embora acabe por o ser), como contar uma boa história, (...) que vale pelas memórias que instiga no espectador. As memórias de grandes policiais “rurais” ingleses e de grandes blockbusters de Hollywood. Em ‘Hot Fuzz’ temos uma carta de amor a ambos."
Por isso, para o espectador que sempre amou este género de películas, não importa muito que o filme salte entre estilos, nem que acabe por ter um desenlace algo previsível, nem que a maior parte das personagens secundárias não sejam mais do que a sua mera superfície (pedia-se mais Timothy Dalton, por exemplo). Porque o universo fílmico de ‘Hot Fuzz’ permite que isso faça sentido, pois mistura as regras de um filme de mistério, com as regras da comédia inglesa, com as regras que importa dos blockbusters de acção, somente para depois as quebrar. O filme existe no seu próprio género de humor-homenagem e ao mesmo tempo tem a contenção e a consciência suficiente (ao contrário de ‘The Expendables’) para saber que não pode almejar ser mais do que isso. E por isso mesmo, não há nada em ‘Hot Fuzz’ que destoe, que esteja a mais, que seja demasiado ambicioso para o simples material que o filme apresenta, apesar dos óbvios exageros fantasiosos e gore que o filme contém.
Desta forma, é-nos oferecida uma fantasia apelativa e desfrutável, que seduz cena a cena. Volta e meia notamos que estamos a abanar a cabeça imperceptivelmente para o ecrã em sinal de cumplicidade e reconhecimento, como se tivéssemos uma ligação directa a Pegg e Frost. Volta e meia apercebemo-nos que estamos a sorrir. Volta e meia temos vontade de reler um livro de Miss Marple ou de pôr ‘Bad Boys II’ no leitor de DVD (como eles o fazem) e desfrutar de um pouco de explosividade de Hollywood. É assim que percebemos que o filme funciona. Pois é precisamente esse o seu objectivo. Partilhar connosco a paixão por este universo. E se desfrutamos de ‘Hot Fuzz’ é porque somos apaixonados por ele. O filme traz-nos esse prazer de volta à memória. Talvez seja por isso que o aprecie mais que ‘Shaun of the Dead’, pois é uma temática cinematográfica que mais me apela (não sou grande fã ou conhecedor dos filmes de zombies). Mas isso significa que o filme é uma bem-sucedida homenagem e um triunfo para o seu público-alvo.
"Não importa muito que o filme tenha um desenlace algo previsível ou personagens secundárias superfíciais (...) Porque o universo fílmico de ‘Hot Fuzz’ permite que isso faça sentido, pois mistura todas as regras cinematográficas somente para depois as quebrar (...) Volta e meia temos vontade de reler um livro de Miss Marple ou ver ‘Bad Boys II’ (...). É assim que percebemos que o filme funciona. Pois é precisamente esse o seu objectivo."
‘Hot Fuzz’ não é propriamente um filme para a posteridade, e obviamente há melhores comédias rurais inglesas e até melhores comédias de acção. Mas isto é se considerarmos os géneros separadamente. Se os juntarmos, ‘Hot Fuzz’ torna-se um filme único e sem rival; uma irreverente mas respeitosa homenagem que é também uma resposta assertiva, no momento em que foi lançado, à queda abrupta do estilo de acção de Hollywood dos anos 1980 e 1990 na década de 2000, em favor dos filmes de fantasia ricos em efeitos especiais. Isso torna-o talvez um produto do seu tempo em termos conceptuais, mas a sua capacidade para entreter não é datada. Resultará sempre numa tarde de sábado para ver e desfrutar, acomodado no sofá. Pessoalmente, não me importo nada com isso. Here come the fuzz.
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