Realizador: Lewis Seiler
Actores principais: Humphrey Bogart, Kay Francis, James Stephenson
Duração: 67 min
Crítica: Toda a gente (ou pelo menos os adeptos do cinema clássico – e infelizmente há cada vez menos) conhecem Humphrey Bogart. O grande Boggie não foi o actor mais versátil da história do cinema, mas foi certamente um dos mais carismáticos que alguma vez existiu. ‘Casablanca’ (1942) não seria o mesmo sem ele, nem outros clássicos como ‘The Maltese Falcon’ (1941), ‘The Big Sleep’ (1946) ou ‘The Treasure of the Sierra Madre’ (1948). E nos últimos anos da sua carreira, antes da sua morte prematura em 1957 causada pelo excesso de cigarros e bebida, Bogart demonstrou que o seu estilo não era tudo; era também um intenso e hipnotizante intérprete. Recordemos a mestria das suas interpretações em ‘In a Lonely Place’ (1950), ‘The African Queen’ (1951, pelo qual ganhou o seu único Óscar), ‘The Caine Mutiny’ (1954 – a mítica cena dos morangos!), ‘The Barefoot Contessa’ (1954), ou ‘The Harder They Fall’ (1956), a sua última obra. Seguramente, nunca haverá outro como Bogart.
Contudo, como muitos actores clássicos, Bogart teve de subir a custo até atingir o estrelato. Sem o look de um galã, Bogart passou toda a década de 1930, desde o seu primeiro filme ‘Up de River’ (1930), até aos seus primeiros sucessos como actor principal em ‘High Sierra’ e ‘Maltese Falcon’ (ambos 1941), a viver a vida do actor secundário, inúmeras vezes em filmes de série B. O seu estilo tornava-o mais do que adequado para os filmes de gangsters, e o estúdio como qual tinha contrato, a Warner Brothers, era o rei desse género. Assim, e depois da sua impactante performance como o gangster em ‘The Petrified Forest’ (1936), Bogart tornou-se um vilão par excelence, e assumiria esse papel (morrendo constantemente no final dos filmes às mãos dos heróis) numa dúzia de obras famosas como ‘Angels with Dirty Faces’ (1938) ou ‘The Roaring Twenties’ (1939).
"É um filme esquecido mas importante na carreira de Bogart. É o primeiro em que o seu nome surge creditado em primeiro lugar (...) De facto, como o gangster Joe Gurney, Bogart está absolutamente hipnotizante desde o primeiro segundo em que surge no ecrã, e não é nada de espantar que dois anos depois teria uma ascensão meteórica para o topo de Hollywood"
Nesse sentido, o pequeno ‘King of the Underworld’ (1939) (em português ‘Contra a Lei’) realizado por Lewis Seiler, um especialista destes dramas de gangster de série B, é um filme esquecido mas importante na carreira de Bogart. É o primeiro em que o seu nome surge creditado em primeiro lugar, antes do nome do filme (o famoso top billing). Ou seja, é o primeiro em que, para todos os efeitos, é o actor principal. Reza a lenda que só conseguiu isso porque o estúdio estava a tentar penalizar e humilhar Kay Francis, com quem contracena. Outrora uma actriz de grande popularidade, tendo entrado por exemplo em ‘Trouble in Paradise’ (1932) ou em ‘Another Dawn’ (1937) com Errol Flynn, Francis estava em declínio (os seus últimos filmes haviam sido um fiasco) mas contratualmente ainda auferia um grande salário. Assim, Jack Warner, o presidente da Warner Brothers, estava a tentar obrigá-la a entrar em filmes menores para ver se conseguia que ela rescindisse o seu contrato.
Reza a lenda também que Bogart não estava nada satisfeito por ter obtido o primeiro top billing da sua carreira desta forma, mas nem ele nem Francis (que estava longe de querer quebrar um contrato tão vantajoso), se fizeram rogados. Ambos aproveitaram esta oportunidade e tentaram tornar ‘King of the Underworld’, um drama de gangsters de série B com apenas 64 minutos e um período de filmagens de apenas duas semanas, no melhor filme possível. Ninguém no estúdio estavam a prestar muita atenção ao filme, apenas mais um de uma bem oleada linha de montagem. Mas estes dois actores, juntamente com o argumentista Louis Bromfield tinham outras ideias e juntos fizeram um extenso trabalho não creditado de reescrita do argumento.
O resultado está à vista. O filme não ficou para a posteridade, principalmente porque foi lançado pela porta pequena. Mas apesar do seu baixo orçamento e de um argumento relativamente directo, ‘King of the Underworld’ é um filme que extravasa muito facilmente a sua condição de first feature de série B para ser, não uma memorável entrada no género gangster, mas pelo menos um deveras interessante estudo de carácter. De facto, como o gangster Joe Gurney, Bogart está absolutamente hipnotizante desde o primeiro segundo em que surge no ecrã, e não é nada de espantar que dois anos depois teria uma ascensão meteórica para o topo de Hollywood, mesmo apesar (ou talvez por causa) da sua dicção e do seu ar rugoso.
"Extravasa muito facilmente a sua condição de first feature de série B para ser, não uma memorável entrada no género gangster, mas pelo menos um deveras interessante estudo de carácter (...) Bogart usa na perfeição todas as armas da sua linguagem interpretativa, ou seja, envolve o ecrã com a aura que o tornou famoso (...) Tem um impacto imediato, no espectador e no filme"
Logo na primeira cena em que surge, Bogart usa na perfeição todas as armas da sua linguagem interpretativa, ou seja, envolve o ecrã com a aura que o tornou famoso como gangster e que anos mais tarde lhe daria a força para ser um grande anti-herói e por fim um herói. Gurney tem um impacto imediato, no espectador e no filme. Não é que seja muito mais esperto ou musculado que o séquito de capangas que o rodeia. Mas tem uma implacável ambição. Mata pelas costas um homem que o traiu e é essa falta de escrúpulos que mantém os seus homens na linha. Igualmente, a sua obsessão pela figura de Napoleão torna-o uma personagem ainda mais complexa. A ignorância que demonstra ao longo do filme (o seu conhecimento do verdadeiro Napoleão é bastante superficial) não é de todo caricata; é ameaçadora. Isto porque o pretensiosismo, que esconde medo e ignorância, tornam-no ainda mais duro, mais maléfico e mais arrogante, principalmente quando alguém o desdiz ou ousa saber mais do que ele. Contra homens como Gurney que sempre disparam primeiro e fazem perguntas depois, o conhecimento é perigoso.
A história despoleta quando um dos homens de Gurney é alvejado e levado para o hospital. Lá é operado pelo médico Niles Nelson (John Eldredge) e a sua assistente, a sua esposa Carol (excelente interpretação de Kay Francis) que o salvam miraculosamente. Como forma de agradecimento, Gurney contacta Niles e oferece-lhe uma grande recompensa financeira e uma proposta irrecusável. Quer que ele passe a ser o médico do seu gangue. Inicialmente Niles parece relutante, mas para alimentar o seu vício de apostar nas corridas de cavalos e também para subir na vida, acaba por aceitar. Na cena a seguir, algum tempo mais tarde, já Niles vive num apartamento muito mais luxuoso e tem uma prática médica de renome, embora ninguém, nem mesmo Carol, saibam a verdadeira origem da sua fortuna.
Contudo, Carol sente o marido a afastar-se cada vez mais e a negligenciar os pacientes da sua clínica. Supõe que isso se deve ao vício do jogo e numa cena forte (Kay Francis demostra a sua força e a sua emancipação) tenta convencê-lo a enfrentar os seus problemas. A verdade é que Niles está a ficar com remorsos e a tentar cortar os seus laços com os gangsters. Mas o destino está contra ele. Nessa noite, quando trata mais um membro do gangue de Gurney e lhe diz que é o último trabalho que fará para ele, a polícia invade o covil e na escaramuça Niles é morto. Gurney foge e Carol, que havia seguido o marido nessa noite, é presa. Pouco depois é libertada embora não consiga provar completamente perante a justiça, os tablóides e a sociedade que não sabia a vida dupla que o marido levava.
"A interacção entre Carol e Gurney (ou melhor dizendo entre Bogart e Francis) é fascinante. São duas personagens muito bem escritas e dois actores no pico da forma que se olham olhos nos olhos (...) Da mesma forma, é fascinante a interacção entre Gurney e Bill (James Stephenson). ‘King of the Underworld’ tem menos a tensão de um filme de gangsters (...) e assenta mais na disputa de personalidades que se gera entre as três personagens principais."
Depois deste preâmbulo, a “aventura” do filme realmente começa quando Carol decide tentar começar uma nova vida como médica numa pequena terriola. Há aqui alguma consciente crítica social, na forma como Carol é ostracizada por alguns membros desta pequena comunidade que não acreditam na sua inocência. Nesse sentido, Carol tem também duas semanas para conseguir provar a sua inocência antes de ser expulsa da Ordem dos Médicos. Mas desta vez o destino dá-lhe uma ajuda, quando o próprio Gurney vai parar à mesma terriola, foragido depois de mais um encontro com a polícia. É nesse momento que Carol decide aproveitar a sua oportunidade, não só para se vingar como para limpar o seu nome.
Demonstrando toda a força da sua personalidade, Carol cuida de Gurney quando este é ferido e tenta convencê-lo que pode substituir o marido como médica do seu gangue, de forma a ganhar a sua confiança e descobrir a melhor maneira de o apanhar. É aqui que o filme atinge os seus melhores momentos porque a interacção entre Carol e Gurney (ou melhor dizendo entre Bogart e Francis) é fascinante. São duas personagens muito bem escritas e dois actores no pico da forma que se olham olhos nos olhos (embora um estivesse em declínio e outro em ascensão). Da mesma forma, é fascinante a interacção entre Gurney e Bill (James Stephenson, embora o actor não esteja no calibre dos outros dois). Bill é um escritor em maré de azar que Gurney encontra na rua a pedir boleia e decide “adoptar” quando descobre que aquele já escreveu um livro sobre Napoleão. Não só o força a viver com o seu gangue, como o força a começar a escrever a sua autobiografia. Obviamente, Bill e Carol vão encontrar pontos comuns e juntos têm de encontrar uma maneira de trazer Gurney perante a justiça.
‘King of the Underworld’ tem menos a tensão de um filme de gangsters, embora haja um climático final que envolve os malfeitores e a polícia, e assenta mais na disputa de personalidades que se gera entre as três personagens principais. Joe tem a força, mas não tem a classe de Bill nem a inteligência de Carol. O facto de Joe querer adquirir essa classe e essa inteligência é o que mantém Bill e Carol vivos, e é também aquilo que, no final, vai levar à sua queda. É raro ver um filme de gangsters deste período em que o criminoso principal não se move apenas por malvadez, o dinheiro ou uma necessidade de aceitação. Aqui, move-o também essa sede de ser refinado como as grandes figuras históricas, de atingir algo que não consegue obter através da força, da ameaça ou do poder das armas. Obter dinheiro é fácil. Quando Gurney precisa dele, rouba-o. Mas não pode fazer o mesmo com a classe.
"Na natural contenção da sua condição, o filme tem ramificações emocionais suficientes para conseguir ser convincente, e cria tensão suficiente para conseguir ser excitante (...) Não é um filme para a eternidade mas é um filme que envelheceu de forma saudável (...) Mas acima de tudo ‘King of the Underworld’ vale pelo seu rei do submundo. Vale por Humphrey Bogart"
Na sequência final, Carol vai usar a sua inteligência para conceber uma simples armadilha que apanha Gurney de vez. Apesar de ter o seu quê de fascinante e demonstrar a coragem desta personagem, na realidade não é mais do que um truque ingénuo (embora engenhoso) que talvez seja demasiado desadequado para um filme desta natureza. Afinal, o mesmo método podia estar presente numa comédia de gangsters e ser usado para fazer rir o espectador. Contudo, não levamos muito a mal, como não levamos a mal a linearidade da história e a sua rotineira produção, realização e fotografia. No contexto deste filme, e daquilo que ele pretende e pode ser, resulta. Na natural contenção da sua condição, o filme tem ramificações emocionais suficientes para conseguir ser convincente, e cria tensão suficiente para conseguir ser excitante.
O filme funciona exactamente da mesma forma que um episódio de um drama criminal televisivo, num período em que não havia televisão. É um mini-estudo de uma fascinante personagem criminosa entrecruzado com uma mini-aventura em que a heroína, depois de perder o marido nas primeiras cenas, consegue o seu pedaço de justiça para conseguir obter, no final, o seu pedaço de felicidade. Nada de novo. Mas o que distingue ‘King of the Underworld’, e que o coloca a par daqueles que são os grandes dramas noir de série B da história do cinema clássico como por exemplo ‘Out of the Fog’ (1941), ‘Detour’ (1945), ‘Follow Me Quietly’ (1949) ou ‘The Narrow Margin’ (1952) é que as duas personagens principais têm dimensão, profundidade e arcos credíveis, e o seu jogo interpretativo constitui a maior riqueza da obra. Bogart está em excelente forma e não apenas no piloto automático da sua persona gangster da década de 1930. É já aqui a estrela que seria dentro em breve. E Francis, com a sua força intrínseca, dá um inesperado (e raro por esta altura) toque de emancipação feminina ao papel, nunca perdendo a sua integridade para conseguir fazer justiça.
Tudo somado, ‘King of the Underworld’ não é um filme para a eternidade mas é um filme que envelheceu de forma saudável (como um bom episódio de uma série, é 1h que passa a voar) e é um bom ponto de paragem para os estudiosos e amantes do cinema clássico. Não só convence como um bom drama de gangsters de série B, como é um surpreendente estudo de carácter, antecedendo outros filmes mais famosos que a Warner Brothers faria como por exemplo ‘White Heat’ (1949) com James Cagney, que por acaso até partilha semelhanças estruturais com este filme.
Mas acima de tudo ‘King of the Underworld’ vale pelo seu rei do submundo. Vale por Humphrey Bogart. Se Francis hoje já foi esquecida, Bogart é ainda uma das personagens mais icónicas da história da sétima arte. E aqui, nesta pequena obra de 64 minutos, uns meros dois anos antes de se tornar uma super-estrela, Bogart prova como o conseguiu. Se o caro leitor é fã de Humphrey Bogart então esta pequenina pérola é algo que não pode perder. Se não o conhece, porque não começar por aqui antes de passar para ‘Casablanca’ ou ‘The African Queen’? Comprei recentemente o DVD de ‘King of the Underworld’ numa loja portuguesa por 2 euros. Nunca o tinha visto. Agora já o vi duas vezes. É o que eu chamo um bom investimento.
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