Realizador: Tony Scott
Actores principais: Gene Hackman, Denzel Washington, Viggo Mortensen
Duração: 116 min
Crítica: Aqui há umas semanas escrevi uma crítica sobre aquele que é para mim o melhor blockbuster de acção dos anos 1990: ‘Speed’ (1994). Pois bem, embalados pela pioneira abordagem de ‘Speed’, os grandes realizadores do género conceberam logo a seguir obras que não lhe ficaram muito atrás e que elevaram o entretenimento de acção ao verdadeiro patamar de arte. Michael Bay estava prestes a fazer ‘Bad Boys’ (1995) e ‘The Rock’ (1996), ambos produzidos pela dupla vencedora de Don Simpson e Jerry Bruckheimer. E estes mesmos produtores já há muito trabalhavam com Tony Scott, o irmão mais novo de Ridley Scott e um especialista do género, havendo assinado ‘Top Gun’ (1986), ‘Days of Thunder’ (1990) ou ‘The Last Boy Scout’ (1991). Mas a sua colaboração nesse preciso ano de 1995 é para mim a melhor da carreira de Scott, o que mais enfatiza o grande momento que o género vivia.
‘Crimson Tide’ (em português ‘Maré Vermelha’) apresenta-se, praticamente desde a primeira cena, como um excitante, intenso e (pelo menos na maior parte do tempo) inteligente filme de um género muito específico: o de acção a bordo de um submarino. Foi um género que surgiu aquando da Segunda Guerra Mundial com obras como ‘Destination Tokyo’ (1943) com Cary Grant, e foi esse mesmo conflito que continuou a ser o pano de fundo de outros clássicos como ‘Run Silent, Run Deep’ (1958) com Burt Lancaster, ou mais humorístico ‘Operation Petticoat’ (1959) de novo com Grant. Já agora, muitos destes filmes clássicos são referenciados em ‘Crimson Tide’ numa cena mais relaxada entre os militares, cortesia de Quentin Tarantino que limou o argumento de forma não creditada.
"‘Crimson Tide’ apresenta-se, praticamente desde a primeira cena, como um excitante, intenso e (pelo menos na maior parte do tempo) inteligente filme de um género muito específico: o de acção a bordo de um submarino (...) embora não se afaste muito do modelo de inúmeros blockbusters militares dos anos 1990 (...) e tenha inúmeras e suspeitas parecenças com ‘The Hunt for Red October’ (1990)."
Mas apesar desta sucessão de obras, na realidade só podemos dizer que o género atingiu a sua modernidade com ‘Das Boot’ (1981), o poderoso épico alemão de Wolfgang Petersen. Quando algo corre bem fora de Hollywood, esta fica atenta, principalmente se logo depois um autor americano escreve um bestseller também passado a bordo de um submarino. Assim sendo, o final da década de 1980 veria aquele que é provavelmente o melhor filme de submarinos da história de Hollywood, trocando a Segunda Guerra Mundial pela Guerra Fria: ‘The Hunt for Red October’ (1990), baseado na obra homónima de Tom Clancy.
Precisamente, ‘The Hunt for Red October’ apareceu na altura ideal na história do cinema americano. O cinema de acção estava a ser redefinido pelos heróis másculos como Stallone, Schwarzenegger, Gibson ou Russell; e filmes como ‘Lethal Weapon (1987), ‘Die Hard’ (1988) e o próprio ‘The Hunt for Red October’ abriam as portas para a espectacularidade do cinema dos anos 1990; um cinema com uma mistura jamais replicada de familiaridade e explosividade, mistura essa que tanta falta faz no contexto actual excessivamente digitalizado e com constantes, mas muitas vezes ocos, tons semi-apocalípticos.
Esta dupla vertente estaria presente em todos os grandes espectáculos de acção da década, mas ‘The Hunt for Red October’, com a sua magnifica gestão da tensão, seria particularmente influente na concepção do molde do “filme-submarino”. As temáticas da guerra fria e do jogo de xadrez bélico entre americanos e russos (ou outra qualquer nação), e dos dramas a bordo do próprio submarino (as inundações, a falta de ar, os motins) que ‘The Hunt for Red October’ re-introduziu, estariam em maior ou menor escala presentes nos restantes filmes-submarino de Hollywood deste período como ‘U-571’ (2000), ‘K-19: The Widowmaker’ (2002) e claro, de permeio, ‘Crimson Tide’.
"Há uma surpreendente nuance na forma como o drama de acção é construído. O inimigo, os russos, nunca são vistos (...), e o filme está muito mais preocupado com os dilemas morais e os jogos de poder dentro da própria marinha americana e entre os homens que nela servem. Pode não ser totalmente bem-sucedido em termos psicológicos, mas a ousada escolha de se focar nesta vertente em vez de ser um mero espectáculo bélico merece ser elogiada."
Por um lado ‘Crimson Tide’ não se afasta muito do modelo de inúmeros blockbusters militares dos anos 1990, o que pode ser um turn off. Temos um texto de enquadramento inicial que tenta ser tão intenso que se torna caricato. Temos pouco ou nenhum tempo para a construção das personagens. Temos um típico herói, neste caso o oficial da marinha Hunter (interpretado com excessiva solenidade e gravitas por Denzel Washington), que assume o peso do dever numa situação inesperada e nunca parece duvidar de si próprio um único segundo. Temos, principalmente no início, inúmeras frases-cliché ao estilo camaradagem militar que parecem saídas direitinhas de um mau argumento de um filme de Michael Bay. E temos inúmeras e suspeitas parecenças logo à cabeça com o próprio ‘The Hunt for Red October’.
De facto, em muitos aspectos ‘Crimson Tide’ é uma cópia descarada desse filme seminal. Veja-se a referência à cor vermelha nos dois títulos. Veja-se as semelhanças nos posters, ambos inundados de vermelho e negro, com a cara dos homens a surgir por detrás da silhueta do submarino. Vejam-se algumas manobras bélicas, praticamente tiradas a papel químico. Veja-se como a de resto excelente banda sonora de Hans Zimmer inclui uma série de coros (claramente a imitar os coros russos de ‘Red October’) que são totalmente desadequados a um submarino americano. Veja-se o facto do capitão interpretado por Gene Hackman se chamar Ramsey – recorde-se que o capitão interpretado por Sean Connery em ‘The Hunt for Red October’ se chamava Ramius. E se quisermos mesmo ser picuinhas até podemos especular sobre o nome da personagem de Washington: Hunter. Coincidências? Claro que não.
Contudo, se todos estes elementos podem distrair o espectador numa primeira instância, à medida que o filme prossegue (principalmente depois dos homens embarcarem no submarino), ocorre uma inesperada transformação. Esquecemos que o filme está a seguir a típica cadência dos filmes de acção dos anos 1990 em geral e de ‘The Hunt for Red October’ em particular, para ficamos agarrados à trama, e isso é o melhor elogio que se lhe pode dar. Há uma surpreendente nuance na forma como o drama de acção é construído. O inimigo, os russos, nunca são vistos (são o proverbial McGuffin de Hitchcock), e o filme está muito mais preocupado com os dilemas morais e os jogos de poder dentro da própria marinha americana e entre os homens que nela servem. Pode não ser totalmente bem-sucedido em termos psicológicos, mas a ousada escolha de se focar nesta vertente em vez de ser um mero espectáculo bélico merece ser elogiada.
"O filme oferece discursos moralistas não tanto como o cliché típico de inúmeros outros filmes sobre militares, mas com uma subtil ponta de ironia. Esta visão auto-crítica do sistema americano, que se manterá pelo resto da obra, é raríssima encontrar neste tipo de blockbusters patrióticos, o que adiciona camadas ao filme."
A primeira cena, em tom de peça jornalística, introduz-nos um clima semi-fictício de tensão militar entre os Estados Unidos e a Rússia. Um dissidente russo está a criar o seu próprio exército e tem acesso a armas nucleares. As suas ameaças de que irá atacar os Estados Unidos parecem reais o que leva o Presidente a accionar o nível de segurança máxima. Assim, o submarino nuclear USS Alabama tem ordens para se fazer ao mar. O seu comandante, Ramsey, um homem cheio de excentricidades (como todos os grandes génios, quer o filme dizer), é um verdadeiro animal militar. É um homem que nasceu para a guerra e que só parece acreditar em duas coisas: no dever e na glória da nação americana. O filme oferece os seus iniciais discursos moralistas não tanto como o cliché típico de inúmeros outros filmes sobre militares, mas com uma subtil ponta de ironia. Esta visão auto-crítica do sistema americano, que se manterá pelo resto da obra, é raríssima encontrar neste tipo de blockbusters patrióticos, o que adiciona camadas ao filme.
Porque o seu primeiro oficial está com apendicite, Ramsey é forçado a aceitar um substituto, que chega na forma do Hunter de Denzel Washington. Este é um homem muito mais introspectivo e cauteloso, cujo sentido de dever move-se menos pelo fanatismo militar e mais pelo desejo de fazer a coisa acertada, pela sua família (temos umas breves cenas de enquadramento familiar que cedo esquecemos), pelo seu país e pelos seus homens. Assim junta-se a uma tripulação que inclui actores talentosos como Viggo Mortensen, James Gandolfini ou o jovem Lillo Brancato (o que é que lhe aconteceu?!); cada um terá a sua própria importância no decorrer dos eventos.
A vida a bordo é filmada de uma forma algo inconstante. Por um lado a pressão sob a qual os homens vivem está muito bem retratada; vemos constantemente o suor do seu rosto, sentimos o peso do dever, e tememos pela hesitação da tripulação que fica impotente perante o desenrolar dos acontecimentos. Por outro lado há algumas cenas algo forçadas (so nineties…) para estabelecer as personalidades das personagens principais. Por exemplo, quando um fogo deflagra na cozinha, Hunter corre a apagá-lo num ousado momento de heroísmo. Mas como primeiro oficial cabia a si essa responsabilidade?! Provavelmente não. Enquanto isso o capitão Ramsey está constantemente a levar os seus homens ao limite, sem consideração por nada ou ninguém. Hackman interpreta-o com um gusto megalómano que lhe assenta bem, embora as suas razões nunca sejam tão bem explicadas como o filme faz querer.
"A pressão sob a qual os homens vivem está muito bem retratada (...) Por outro lado há algumas cenas algo forçadas (so nineties…) para estabelecer as personalidades das personagens principais (...) Mesmo assim, o foco mantém-se sempre nos marinheiros americanos e nas suas reacções, que o filme vai mostrando numa estranha mistura de excessiva teatralidade (...) e subtileza emocional que fica a cargo dos principais actores.
Inicialmente, o submarino recebe ordens para lançar mísseis nucleares contra a frota russa. Sentimos o significado desta missão – o início de uma guerra nuclear – em todos os homens do navio. O subaquático jogo de gato e rato desembocará num primeiro embate com um submarino russo, que diga-se é extremamente copiado de ‘Red October’, embora seja uma boa decisão nunca vermos o inimigo. O foco mantém-se sempre nos marinheiros americanos e nas suas reacções, que o filme vai mostrando numa estranha mistura de excessiva teatralidade (o rapaz do sonar parece um locutor de basebol) e subtileza emocional que fica a cargo dos principais actores.
Contudo, logo a seguir o submarino recebe uma segunda mensagem que infelizmente é transmitida de forma incompleta. Há a possibilidade desta mensagem estar a contrariar a ordem inicial e assim evitar a génese do holocausto nuclear. É nisso que Hunter acredita, e por isso pede veementemente ao seu Capitão para que se aproximem da superfície para tentar receber a mensagem por inteiro. Mas Ramsey não está minimamente interessado em restabelecer comunicações, ou pelo menos em perder o tempo que seria necessário para isso. Acredita estar em estado de guerra pelo que está disposto a cumprir as ordens iniciais de lançamento dos mísseis, custe o que custar. Não é propriamente uma atitude paranóica. É, como o filme salienta, um excesso de zelo patriótico. Mas quando a sua atitude ditatorial começa a ficar fora de controlo, e na iminência de um desnecessário lançamento nuclear, Hunter lidera um motim a bordo do submarino.
O que se segue é uma frenética e claustrofóbica luta contra o tempo e uma intensa batalha de poder e lealdades. Hunter tem de lidar com a sua nova posição de comando num navio dividido entre duas facções, que realmente não fazem ideia do que se está a passar à superfície. Ao mesmo tempo tem de evitar o ataque dos submarinos inimigos e tentar restabelecer comunicações com os EUA para conseguir receber a mensagem por completo – o ataque nuclear deve ou não deve ser iniciado? O problema é que alguns homens mantêm a sua lealdade ao Capitão Ramsey e conspiram para fazer um novo coup d'état. Em breve ambos estes homens vão ter que se confrontar no espaço confinado do navio, tomar decisões duras, sacrificar vidas e fazer aquilo que acham é acertado, de acordo com os seus próprios códigos de honra e a sua devoção ao seu país e aos seus homens… Conseguirão fazê-lo antes que seja tarde demais? Para combater o inimigo, primeiro é preciso combater o inimigo dentro de nós próprios…
"Tal como ‘Speed’, é um filme onde a música tensa nunca para e o ritmo acelerado também não. É o encadeamento de uma série de sequências excitantes (...) que fazem este filme, muito mais do que os diálogos propriamente ditos ou a força das personagens. (...) Apesar de Washington viver cada segundo e Hackman claramente desfrutar do papel, nunca conseguem sustentar tão bem o filme como a mestria da sua montagem."
‘Crimson Tide’ foi nomeado para três Óscares nas categorias técnicas: Som, Montagem e Efeitos Sonoros, não tendo ganho nenhum (perdeu o primeiro para ‘Apollo 13’ e os outros dois para ‘Braveheart’). Basicamente, é o reconhecimento habitual que a Academia dá aos melhores blockbusters do ano, e não haja dúvida que este é um deles. De facto, é neste nível mais basilar do cinema de acção que este filme mais facilmente pode ser lido. Tal como ‘Speed’, é um filme onde a música tensa nunca para e o ritmo acelerado também não. É o encadeamento de uma série de sequências excitantes, seja a proximidade de um míssil, mais um motim ou contra-motim ou o desespero para saber o que a mensagem diz, que fazem este filme, muito mais do que os diálogos propriamente ditos ou a força das personagens.
Talvez por isso Tarantino se divirta a escrever alguns diálogos fora de contexto, como a discussão sobre qual é o melhor Silver Surfer. Claro que isso permite oferecer alguma humanidade aos marinheiros (bem melhor que os habituais lugares comuns que dizem noutros filme) mas são pouco mais que apartes que soam sempre desgarrados. E o mesmo se pode dizer dos diálogos tensos entre Ramsey e Hunter (incluindo uma discussão sobre a origem de um cavalo: Portugal ou Espanha!). O objectivo é que sejam um simbolismo para o duelo de egos entre os dois homens, mas apesar de Washington viver cada segundo e Hackman claramente desfrutar do papel, nunca conseguem sustentar tão bem o filme como a mestria da sua montagem.
Este é claramente um filme que ganha vida a um nível técnico, e a vertente humana simplesmente não consegue acompanhar essa qualidade, mesmo que o que o distinga seja precisamente esse enfoque na ambiguidade dos soldados americanos a bordo do submarino. A questão é que este enfoque não está na essência de cada personagem por si, em Hunter, Ramsey ou no Weps de Viggo Mortensen. Está na simbologia de cada um como entidades do imaginário heróico americano. Louva-se que o filme procure ter substância, sendo uma alegoria crítica à própria América e ao seu sistema militar (como a sequência final no tribunal prova). Mas é pena que as personagens escolhidas para essa representatividade não sejam mais poderosas, mais ricas por si, pois estão rigidamente controladas pelas regras clássicas do blockbuster. É uma bipolaridade que o filme nunca consegue resolver.
"Não estamos a falar de um filme pioneiro. Nem estamos a falar de uma obra prima. (...) Mas estamos a falar de um blockbuster inteligente e bem realizado que soube transformar uma história relativamente linear numa excitante luta contra o tempo que prende o espectador à cadeira. Pedir mais seria ser injusto. ‘Crimson Tide’ continua a ser uma agradável surpresa no universo dos blockbusters bélicos dos anos 1990."
Mas a vantagem é que, apesar de ser essa a sua ambição, o filme não precisa dela para funcionar. Seguiu o molde do blockbuster até ao final (incluindo um estranho desfecho “tudo está bem quando acaba bem”) mas ao mesmo tempo não teve medo de arriscar e explorar novos caminhos. Não estamos a falar de um filme pioneiro. Nem estamos a falar de uma obra prima. Mas estamos a falar de um blockbuster extremamente convincente que proporciona duas horas de intensa excitação e cujas camadas não se esgotam com o final das suas cenas de acção. Estamos a falar de um blockbuster inteligente e bem realizado que soube transformar uma história relativamente linear numa excitante luta contra o tempo que prende o espectador à cadeira. Pedir mais seria ser injusto. ‘Crimson Tide’ continua a ser uma agradável surpresa no universo dos blockbusters bélicos dos anos 1990. E não me parece que vá deixar de o ser, nos próximos tempos.
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