Realizador: Martin McDonagh
Actores principais: Frances McDormand, Woody Harrelson, Sam Rockwell
Duração: 115 min
Crítica: Como sempre, chegamos a esta altura do ano e toda a gente está interessada em ver o maior candidato aos Óscares, eu incluído. Claro que os Óscares estão longe de ser o que outrora foram (como já me queixei inúmeras vezes em críticas anteriores), e os verdadeiros melhores filmes do ano não estão, definitivamente, entre os nomeados, mas o poder da sua mística de 90 anos ainda não esmoreceu. Os fãs do cinema, eu incluído, ainda não conseguiram deixar de ter aquela curiosidade, nem que seja para se queixarem, precisamente, de que os Óscares estão longe de ser o que outrora foram.
Obviamente, nem todos os filmes dos Óscares são maus, ou pelo menos nem todos são enfadonhos melodramas comerciais baseados em histórias verídicas, abordando temas sociais da moda e que fingem ter uma classe que qualquer cinéfilo com cabeça sabe perfeitamente que não têm. Alguns são realmente bons filmes mas poucos são verdadeiramente dignos de um Óscar de Melhor Filme, ou pelo menos daquilo que o Óscar de Melhor Filme já significou. É só olhar para os anteriores vencedores; ‘Spotlight’, ‘Birdman’ ou ‘Argo’, para constatar isso mesmo. Não são filmes com uma grande longevidade como um ‘Casablanca’, um ‘Lawrence of Arabia’ ou um ‘Braveheart’. São, dentro dos critérios pelos quais os Óscares hoje se regem (esses que impedem que um “mero” musical possa ganhar, mesmo que esse musical seja uma obra-prima), o melhor que se conseguiu arranjar.
"A pergunta que se coloca é se é um bom filme? Claro que é, sem dúvida alguma (...) Mas é um grande filme? Aqui já tenho um pouco mais de dúvidas. Tem um intrínseco charme discreto, um excelente argumentista e realizador ao leme, fantásticas interpretações e ainda mais fantásticas personagens. Mas está longe de ser um filme perfeito ou um filme que encha as medidas do cinéfilo como por exemplo ‘Dunkirk’."
Este ano as apostas apontam para ‘Three Billboards Outside Ebbing, Missouri’ (em português com o mais simples título ‘Três Cartazes à Beira da Estrada’). Nomeado para 7 Óscares; Melhor Filme, Actriz, Actor Secundário (duas vezes), Argumento, Montagem e Banda Sonora (embora curiosamente não Melhor Realizador), ‘Three Billboards’ já ganhou quer os BAFTA quer os Globos de Ouro nas principais categorias. Portanto a pergunta que se coloca é se é um bom filme? Claro que é, sem dúvida alguma. Os filmes que ganham, os ‘Spotlight’, os ‘Birdman’ ou os ‘Argo’ nunca são propriamente maus. Mas é um grande filme? Aqui já tenho um pouco mais de dúvidas. Tem um intrínseco charme discreto, um excelente argumentista e realizador ao leme, fantásticas interpretações e ainda mais fantásticas personagens. Mas está longe de ser um filme perfeito ou um filme que encha as medidas do cinéfilo como por exemplo ‘Dunkirk’. Contudo, o consolo é que está num nível bastante superior ao de outros nomeados/vencedores recentes, mas outra coisa não seria de esperar, vindo de quem vem.
‘Three Billboards’ é o terceiro filme do inglês Martin McDonagh. Um dramaturgo de grande sucesso nos anos 1990, McDonagh ganhou logo um Óscar com a sua curta-metragem de estreia, ‘Six Shooter’ (2004). Já o seu primeiro filme foi a soberba sátira negra 'In Bruges’ (2008), que diga-se merecia muito (mas mesmo muito) mais um Óscar do que o ridículo vencedor desse ano ‘Slumdog Millionaire’. Depois de ‘Seven Psychopaths’ (2012) no mesmo registo, McDonagh muda agora de velocidade, acomodando-se ao ritmo mais lento da pequena América e do género de cinema que a retrata (recorda em tom o último grande vencedor deste “género”, ‘No Country for Old Man’). Mas o seu extraordinário talento para escrever diálogos, construir personagens e conceber os ambientes onde elas se movem mantêm-se, o que dá um apelo imediato a esta obra. Este é sem dúvida alguma um daqueles filmes que prende o espectador do início ao fim pela força do seu ambiente cinematográfico.
Estamos numa pequena terriola algures no Missouri. Mildred, uma mulher de rosto imperscrutável mas visivelmente marcado pelo tempo e pela vida, entra numa agência publicitária gerida por Welby (Caleb Landry Jones) com um pedido invulgar. Quer alugar os três gigantescos cartazes à beira da estrada que leva a Ebbing para neles colocar uma provocação ao chefe da polícia local, Willoughby (Woody Harrelson). A sua filha foi violada e morta há quase um ano e o culpado ainda não foi encontrado. Ela anseia por justiça e depois, à medida que o filme avança, sangue. Mildred é interpretada por Frances McDormand, numa interpretação à Frances McDormand; ou seja é uma personagem forte sem necessitar de chamar as atenções para si própria. A trágica convicção do seu rosto é subtilmente suficiente, e os seus movimentos e diálogos minimalistas. Merece o seu segundo Óscar (depois de ter vencido por ‘Fargo’ em 1995)? Provavelmente não. A sua interpretação ajusta-se ao papel como se ajustaria a de qualquer outra grande actriz. Mas não ficarei incomodado se ela o vencer.
"Frances McDormand tem uma interpretação à Frances McDormand; ou seja é uma personagem forte sem necessitar de chamar as atenções para si própria. A trágica convicção do seu rosto é subtilmente suficiente, e os seus movimentos e diálogos minimalistas. Merece o seu segundo Óscar? Provavelmente não. A sua interpretação ajusta-se ao papel como se ajustaria a de qualquer outra grande actriz. Mas não ficarei incomodado se ela o vencer."
Com um ritmo vagaroso mas nunca moroso ou enfadonho, o filme não tem propriamente uma grande história. “Limita-se” a debruçar-se sobre os efeitos que estes cartazes, e o consequente recordar da tragédia, têm na pequena e adormecida comunidade, que já se tinha acomodado à ideia de que o assassinato nunca iria ser resolvido. Há aqui o recordar dos ambientes de obras como ‘The Sweet Hereafter’ (1997) ou ‘Affliction’ (1997), onde a beleza quase idílica do interior da América é o pano de fundo para um micro-cosmos da condição humana.
Tal como os filmes anteriores de McDonagh, é na inter-relação entre as personagens, e através das suas intrínsecas peculiaridades que o filme ganha vida. A própria evolução dos eventos é sempre focada não nas acções em si, mas sim nas suas consequências emocionais. Não há nenhuma personagem que esteja completamente definida à partida; todas podem evoluir e mudar as suas perspectivas porque têm falhas, porque são humanas. E o realizador consegue encontrar em cada uma delas particularidades (que vão muito para além das frases escritas no argumento) que as tornam ainda mais vividas e realistas para o espectador.
Em casa Mildred tem que lidar com o seu filho adolescente Robbie (Lucas Hedges) revoltado pelas acções da mãe e pelas repercussões que sofre na escola. O seu marido Charlie (John Hawkes) que a maltratava, agora mora com uma jovem de 19 anos protagonizada por Samara Weaving, que saliento apesar da sua brevíssima aparição. Honestamente, tem para mim a melhor interpretação do filme. É muito mais do que uma “bimba” que serve para dar cor local à obra ou ser um escape cómico. Dá realistas camadas a este ambiente. E o mesmo se pode dizer dos vários momentos de humor que são obtidos às custas das mais lentas e racistas personagens deste universo algo retardado do interior americano.
"Tal como os filmes anteriores de McDonagh, é na inter-relação entre as personagens, e através das suas intrínsecas peculiaridades que o filme ganha vida. A própria evolução dos eventos é sempre focada não nas acções em si, mas sim nas suas consequências emocionais. Não há nenhuma personagem que esteja completamente definida à partida; todas podem evoluir e mudar as suas perspectivas porque têm falhas, porque são humanas."
E nenhuma funciona melhor do que bronco e racista agente da polícia Dixon, interpretado com grande eficácia por Sam Rockwell, que finalmente tem a aclamação que já merece há mais de uma década (recordemos a sua grande interpretação em ‘Moon’, 2009). O facto do filme se divertir às custas da sua burrice e da sua devoção à mãe (Sandy Martin) com quem ainda vive, não impede que seja sério quando retrata a forma violenta como reage àquilo que é diferente e desconhecido sob a cobertura do seu distintivo policial. Pela hábil actuação de Rockwell, mais do que através de qualquer outra personagem, a veia da comédia negra e da crítica social do cinema de McDonagh conseguem coexistir, e o seu impacto é ainda mais acutilante.
Na minha perspectiva, isto é muito mais interessante do que outros dramas que o filme explora, principalmente o do chefe da polícia interpretado por Woody Harrelson (no seu mais simpático modo sulista). Inicialmente parece ser um oficial mais preocupado com a sua reputação e que coaduna com os métodos abusivos de Dixon, mas vai-se revelando mais multifacetado. Ele quer realmente ajudar Mildred (como acabara por fazer) e vê em Dixon um potencial que mais ninguém vê (que originará a surpreendente catarse deste no terceiro acto), enquanto trava a sua própria batalha com um cancro que em breve poderá deixar a sua jovem esposa viúva (Abbie Cornish, na interpretação mais interessante que vi dela até hoje).
Mas está aqui precisamente uma das grandes falhas, se assim se pode chamar, de ‘Three Billboards’. A sua exploração em mosaico das várias personagens é soberba no contexto do ambiente desta comunidade mas tira, propositadamente, foco à história principal. Ou melhor, o objectivo do filme é muito mais aprofundar a psicologia destas personagens do que realmente resolver o mistério do assassinato. E portanto o habitual processo investigatório de um whodunit e a análise de algumas pequenas pistas que de quando em quando vão aparecendo, são conscientemente postas de lado (o que poderá desapontar muitos espectadores) em prol da exploração da condição humana.
"A exploração em mosaico das várias personagens é soberba no contexto do ambiente desta comunidade mas tira, propositadamente, foco à história principal. (...) O filme não perde contudo o seu ritmo ponderado e opta por inserir excitação visual não através de cenas intensas de montagem rápida, mas através de enquadramentos cenograficamente ricos."
Lentamente, a pacata comunidade vai explodir, à medida que as personagens vão perdendo o controlo de si próprias e eventos mais trágicos se sucedem. O problema de saúde de Willoughby agrava-se; Dixon irá longe de mais no seu abuso policial; e Mildred deixa a provocação para passar à acção pelas próprias mãos. O filme não perde contudo o seu ritmo ponderado e opta por inserir excitação visual não através de cenas intensas de montagem rápida, mas através de enquadramentos cenograficamente ricos. Veja-se a cena em que Dixon, fora de si, esquece que é polícia e vai dar um enxerto de porrada a Welby, toda filmada num único take. E veja-se a cena nocturna em que Mildred tenta extinguir o fogo que alguém ateou aos cartazes. É poderoso cinema. Mesmo assim isto é entrecortado por outras cenas menos interessantes, como a presença do anão apaixonado por Mildred (Peter Dinklage), que lhe tenta devolver alguma humanidade, ou o desenlace do drama do chefe Willoughby.
Mas nesta constatação está também a justificação para a aceitação crítica e mediática deste filme. Por toda a mestria na sátira, na intimidade emocional e na realização (uma vergonha McDonagh não estar nomeado para Melhor Realizador) o filme não cumpriria o molde do filme-Óscar se não tivesse estes apartes sociais, como a luta de Willoughby contra o cancro ou o racismo dos polícias; nem algumas decisões excessivamente comerciais, fora de tom para aquilo que tinha sido até agora o estilo sem cedências de McDonagh. Veja-se por exemplo a cena em flashback (a única em que a filha morta aparece) em que chateada a mãe lhe grita “espero que sejas violada”. Too much. Já o enfoque excessivo no drama de Willoughby apenas é desculpável porque acaba por ter consequências directas quer em Dixon quer em Mildred, mas o desenlace, em que estas duas personagens no limite das suas respectivas cordas formam uma parceria improvável, já não é tanto.
A verdade é que não gostei nada do final de ‘Three Billboards’. Não por ser um final aberto – não sou do tipo de espectador que tem de ter tudo limpinho e explicadinho – mas precisamente pelo contrário; por não ser ainda mais aberto. O filme poderia ter acabado dois minutos antes, e se calhar estava aqui a descrevê-lo como uma obra prima. Mas as últimas frases de diálogo minimizam o impacto dos eventos, e tornam tudo, digamos assim, menos “polémico”, pelo menos da perspectiva de um público alargado. Não é que não seja bom entrarmos de novo em contacto com a humanidade destas personagens, que por momentos pareceu irremediavelmente perdida para sempre. Mas parece ser uma cedência não em prol da história e das personagens, mas em prol do público. E esta mesma decisão parece ocorrer em várias outras escolhas que aqui e ali pontilham o filme, o que não deixa de ser algo decepcionante.
"Por toda a mestria na sátira, na intimidade emocional e na realização (...) o filme não cumpriria o molde do filme-Óscar se não tivesse estes apartes sociais (...) nem algumas decisões excessivamente comerciais, fora de tom para aquilo que tinha sido até agora o estilo sem cedências de McDonagh. (...) Parecem ser cedências não em prol da história e das personagens, mas em prol do público (...) o que não deixa de ser algo decepcionante."
Não se engane caro leitor. ‘Three Billboards Outside Ebbing, Missouri’ é um bom filme, dos melhores que verá sair este ano das fornalhas de Hollywood. É um estudo de personagens muito bem trabalhado, de incríveis ambientes cénicos e que tem charme e classe em todos os departamentos da arte cinematográfica. Destacam-se as interpretações (principalmente a de Rockwell) e a forma como a realização torna todos os planos fascinantes, prendendo o espectador à imagem como só o grande cinema – um meio artístico de expressão visual – pode prender. O seu ritmo lento e os seus planos artísticos não são simples pedantismo como acontecia em filmes-Óscar recentes passados nestes meios pequenos como ‘Winter’s Bone’ (2010) ou ‘Brokeback Mountain’ (2005). Têm dimensão.
Mas há algo que não é completamente coeso na narrativa desta obra. O partir do foco por quase meia dezena de personagens é algo que distrai (muito embora as acções de todas tenham influência em Mildred) e o assassinato por resolver da sua filha deixa de ser um catalisador para ser uma espécie de MacGuffin à medida que a história avança. As personagens mergulham tanto no cego egoísmo dos seus próprios problemas, do seu desespero e de uma infinita vontade de vingança que em determinado ponto já não sabem porque o estão a fazer, ou seja, é quase como já tivessem esquecido o assassínio, e o fazer justiça deixa de ser o principal motivo que as impele.
Mas talvez o problema seja meu, talvez esteja a ler mal o filme (já que isso é sempre uma questão de interpretação pessoal). Talvez estivesse à espera de outro tipo de filme e outro tipo de desenlace. Mas talvez também resida aí a própria mestria e a grande mensagem deste filme: o raio de luz que aos poucos surge em cada personagem, mesmo que o final para algumas seja trágico. Lido assim ‘Three Billboards’ pode ser tido quase como uma alegoria esperançosa (daí a sua adequabilidade aos Óscares) mas lamenta-se (ou pelo menos eu lamento) que se tenha optado por uma solução mais confortável no final. É arte. Da boa. Mas estarei eu próprio a ser pedante se disser que é arte que tem medo de ser arte por completo para não melindrar um público alargado?
"É um estudo de personagens muito bem trabalhado, de incríveis ambientes cénicos e que tem charme e classe em todos os departamentos da arte cinematográfica. (...) Mas há algo que não é completamente coeso na sua narrativa. O partir do foco por quase meia dezena de personagens é algo que distrai (...) e o assassinato por resolver deixa de ser um catalisador para ser uma espécie de MacGuffin à medida que a história avança"
Não é que eu tenha visto muitos filmes este ano (pai de filhos é assim) mas pessoalmente daria o prémio mais a ‘Dunkirk’ do que a ‘Three Billboards’. Mas todos sabemos como a América adora as histórias sobre o seu interior. E se essa história envolve racismo, violações, cancro entre outras coisas, então tanto melhor. E no meio deste espectáculo, infelizmente, a qualidade do filme em si (que a tem, não haja dúvidas) muitas vezes é pouco notada. Porque ‘Three Billboards Outside Ebbing, Missouri’ tem ambas estas vertentes (a consciência social e a arte de fazer bom cinema) ao qual se aliam algumas cedências às regras enraizadas de Hollywood, é o candidato ideal e provavelmente o vencedor ideal dos Óscares. No dia 4 saberemos. Mas salvo uma reviravolta de última hora (“Moonlight, you guys won best picture!”) deve ser este o nome que se acrescentará à grande lista histórica desta cerimónia.
Excelente post, gostei muito tambe o filme ancho que vale a pena assistir. Este filme é um dos melhores do gênero de drama que estreou o ano passado. É impossível não se deixar levar pelo ritmo da historia. Eu tambem assisti o filme O conto e simplesmente adorei o tema é muito interessante. O conto é um dos melhores filmes drama quem fez possível a empatia com os seus personagens em cada uma das situações, o elenco faz um excelente trabalho. Sem dúvida a veria novamente.
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