Ano: 2017
Realizador: Jordan Peele
Actores principais: Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford
Duração: 104 min
Crítica: Há cerca de um ano vi o trailer de ‘Get Out’ (em português ‘Foge’) e pensei: “ora aqui está um filme que parece interessante”. Hoje é tão raro ver-se um trailer apelativo que quando surge um não nos esquecemos. Mas o tempo não dá para tudo e acabei por o não ver no cinema quando passou de fugidia em Portugal, sem grande atenção mediática, em Maio do ano passado. Foi para a minha lista mental, como tantos outros filmes, e realmente não pensei mais no assunto durante uns tempos.
Mas aconteceu uma coisa que no mundo cinematográfico moderno é cada vez menos recorrente. Em vez de se falar imenso do filme antes de estrear e pouco ou nada depois (como ocorre com a maior parte dos blockbusters), ‘Get Out’ seguiu uma trajectória oposta. Com prazer fui acompanhando como o filme começou a ganhar uma grande reputação. A palavra de boca foi passando e quer o público, quer os críticos não o esqueceram. Tanto que, quase um ano depois, começou a ganhar prémios e atingiu mais um feito notável: foi nomeado para os Óscares (algo dificílimo para filmes que estreiam no início do ano). ‘Get Out’ está nomeado para as quatro estatuetas principais: Filme, Actor, Realizador e Argumento.
"Podemos desfrutar confortavelmente de ‘Get Out’ como um bom thriller de semi-horror (e não nos enganemos, é um filme imensamente desfrutável). Mas fica sempre um sabor amargo na boca (...) porque não se foi mais longe na construção do terror psicológico. Kubrick faria uma obra macabramente assustadora com este material. Não tanto Peele porque, infelizmente, está mais preocupado com a alegoria racial do que com a história que conta."
Claro que se pode argumentar que isto é consequência directa da actual necessidade que os Óscares têm de incluir pelo menos um filme de e com afro-americanos entre os principais nomeados (independentemente da qualidade do filme em si), única e exclusivamente para refutar acusações de racismo. Mas olhando para o trailer de ‘Get Out’ e as entusiásticas críticas, parecia que o filme tinha realmente algo mais substancial, um mérito de direito próprio. Seria verdade? Pois bem, este fim de semana finalmente tirei essa teima. E tenho a dizer que fiquei divido. Não pela qualidade do filme em si (essa é incontestável, pelo menos dentro do seu género), mas porque não é uma obra-prima para merecer o estatuto de “melhor filme”.
Há muitos filmes com uma história semelhante a esta. Muitos mesmo. É verdade que não há muitos com a qualidade de ‘Get Out’, mas sabemos perfeitamente que não foi esse o factor diferenciador. Infelizmente, o factor diferenciador foi mais uma vez a existência de nuances raciais. Podemos desfrutar confortavelmente de ‘Get Out’ como um bom thriller de semi-horror (e não nos enganemos, é um filme imensamente desfrutável). Mas fica sempre um sabor amargo na boca. Claro que se é para incluir todos os anos um filme de afro-americanos entre os nomeados, então é bem melhor que seja algo como ‘Get Out’ do que os habituais melodramas inspiradores que continuam a chantagear os brancos ("ou dizes que o filme é bom ou eu chamo-te racista"). Mas em parte ‘Get Out’ faz o mesmo, e isso tira mérito ao resto, pelo menos da perspectiva de quem não é racista nem está interessado em “provar” ao mundo que não é racista escrevendo uma crítica favorável, e só está interessado, realmente, em bom cinema.
‘Get Out’ marca a estreia na realização de Jordan Peele, um reputado comediante afro-americano. Para realizador estreante Peele merece aplausos, já que a sua realização é um sóbrio trabalho de classe. Sempre atento ao pormenor, Peele deixa o filme e os actores percorrerem o seu curso sem grandes intromissões, em vez de optar por planos forçados e espalhafatosos só para arrancar reacções ao espectador. A criticar, contudo, é o facto de não ter ido mais longe na construção do terror psicológico que a história acarreta. Kubrick faria uma obra macabramente assustadora com este material. Não tanto Peele. Mais uma vez porque, infelizmente, está mais preocupado com a alegoria racial do que com a história que conta. E isso é uma pena, porque o realizador tem um óbvio potencial (é merecida a sua nomeação para essa categoria; a mais merecida das quatro que obteve).
"Para realizador estreante Peele merece aplausos, já que a sua realização é um sóbrio trabalho de classe. Sempre atento ao pormenor, Peele deixa o filme e os actores percorrerem o seu curso sem grandes intromissões, em vez de optar por planos forçados e espalhafatosos só para arrancar reacções ao espectador."
A história é incrivelmente simples, emulando inúmeros thrillers ou filmes de terror da história do cinema. Na primeira cena assistimos ao rapto de um afro-americano numa noite escura, num afluente subúrbio. Muahahahah. Corta para o genérico e alguma música tensa. Depois ficamos a conhecer Chris, um jovem fotografo afro-americano de maneiras calmas e ponderadas, interpretado de forma interessante por Daniel Kaluuya, mas não tão interessante ao ponto de ser nomeado para Óscar de Melhor Actor. Quer dizer, é fixe ver alguém a ser nomeado por interpretar uma personagem absolutamente normal, sem ser inspirada numa personagem real nem ser deficiente, homossexual, drogado ou possuir qualquer outro tipo de rótulo social. Mas c’mon. Qualquer outro actor minimamente competente faria o que ele faz aqui.
Chris está prestes a ir passar o fim-de-semana a casa dos pais da sua namorada branca Rose (a bela e multifacetada Allison Williams da série ‘Girls’), precisamente num remoto subúrbio (seria o mesmo do início? Pois claro!). Chris está um bocado receoso que o fim-de-semana descambe numa espécie de ‘Guess Who’s Comming to Dinner’ (1967) mas Rose assegura-lhe que os pais dela não são racistas. Aliás, o filme sai do seu caminho para estabelecer que a própria Rose não o é. Demasiado. Uma forma do realizador se defender estabelecendo que nem todos os brancos são racistas? Ou algo mais?
Com um ritmo tranquilo o filme vai construindo a sua premissa com clássicos pequenos sustos (como quando um veado se atravessa à frente do seu carro). Não seria um thriller se a banda sonora não nos pregasse um valente susto com acordes intensos e inesperados, um truque ao qual o filme vai recorrer uma e outra vez. Mas tudo bem. Faz tudo parte dos arrepios da espinha que este género de obras tem de dar. E este ambiente semi-assustador e incomodativo continua mal chegam ao seu destino. Os pais de Rose, Missy (Catherine Keener) e Dean (Bradley Whitford) têm um comportamento demasiado simpático, mas também demasiado artificial, quando descobrem que o namorado da filha é afro-americano.
Para além do mais, parecem passar-se coisas muito estranhas naquela pequena comunidade praticamente só de brancos. Os únicos afro-americanos existentes, quer os criados da casa, quer um homem que é em tudo semelhante àquele que foi raptado na cena inicial, comportam-se de uma forma muito, muito peculiar. Não é surpresa nenhuma para o espectador quando Chris se começa a aperceber de que algo de muito errado se passa ali. E que ele próprio pode estar em verdadeiro perigo. Poderá estar na altura, como uma personagem o adverte, de “get out!”, ou seja, de fugir! Mas não será assim tão fácil, porque a verdadeira conspiração pode estar mais próxima do que ele realmente pensa.
"Apesar de tudo ser dado sem pressas (é realmente um argumento bem estruturado), são 100 minutos que passam com um estalar de dedos, porque o surreal universo alegórico que é criado, constituído pelo enquadramento e pelas personagens, é cativante (...) Para além do mais, o filme consegue balancear relativamente bem as suas várias componentes (...) Há um pouco de tensão, um pouco de sustos verdadeiros e vários escapes de comédia"
Há dois óbvios níveis nos quais se pode ler ‘Get Out’. O primeiro, e para mim muito mais interessante, é o do filme de horror. Não é que nunca se tenha visto anteriormente uma personagem a ser atraída para um local aparentemente idílico que se torna nefasto. E não é que nunca se tenha visto uma personagem recatada a encontrar uma força que nunca teve para superar os males que a rodeiam para se conseguir salvar. É o pão nosso de cada dia neste género, de ‘Hostel’ a ‘Evil Dead’, passando por tantos outros pelo meio. Mas de entre essa grande panóplia de filmes, ‘Get Out’ destaca-se pela segura subtileza da sua realização. Tudo surge como uma parte natural do surreal universo alegórico que é criado, e é nele que espectador se envolve. Apesar de tudo ser dado sem pressas (é realmente um argumento bem estruturado), são 100 minutos que passam com um estalar de dedos, porque esse universo, constituído pelo enquadramento e pelas personagens, é cativante. Não é essa a força do verdadeiro cinema?
Para além do mais, o filme consegue balancear relativamente bem as várias componentes “clássicas” que este tipo de obra deve conter. Há um pouco de tensão, um pouco de sustos verdadeiros (ou seja, surpreendentes) e vários escapes de comédia. Estas são assumidas de forma brilhante e hilariante por LilRel Howery (esse sim merecia uma nomeação ao Óscar de Melhor Actor Secundário), que interpreta o balofo e algo bronco melhor amigo de Chris. As suas conversas a telefone são mais do que mera “cor local de comédia”. São das melhores cenas do filme e adicionam um necessário toque de autoconsciência, dentro dos clichés do próprio género.
Mas começa aqui a ruir a excelente estrutura que superficialmente, e apenas superficialmente, ‘Get Out’ monta. O que se nota é que o filme gere bem mas explora pouco cada uma das suas componentes, provavelmente porque nunca decide bem o que quer ser. As partes cómicas são realmente cómicas, mas vêm e vão pois o filme não pretende ser uma comédia negra. As partes tensas nunca são muito tensas. As partes assustadoras nunca são muito assustadoras. E a parte de horror inclui uma forçada componente de “fantástico” que na minha opinião era completamente desnecessária, já que por ser claramente fantasiosa torna tudo muito menos assustador (afinal é só um filme). E de facto, o filme poderia claramente ter ido muito mais longe.
"O filme gere bem mas explora pouco cada uma das suas componentes, provavelmente porque nunca decide bem o que quer ser (...) Fica a marinar num surpreendente meio termo onde, uma vez explicada, a história torna-se tão banal como a de qualquer outro slasher (...) Não almeja nenhuma reflexão, mais ou menos profunda. Não propõe ramificações, nem emocionais (as personagens são todas elas unidimensionais), nem de crítica social."
Com imensa facilidade ‘Get Out’ poderia ter mergulhado muito mais profundamente no terror psicológico e tornar a odisseia de Chris muito mais árdua (para ele e para o espectador). Ou, com igual facilidade, poderia enviar tudo para o espectro oposto e tornar-se uma fantástica comédia negra. Mas fica a marinar num estranho e surpreendente (pelo menos para mim) meio termo onde, uma vez explicada, a história torna-se tão banal (ou tão boa como preferirem) como a de qualquer outro slasher. Contudo, não é difícil perceber porque isso acontece, o que nos leva ao segundo nível no qual se pode ler este filme: o nível alegórico.
No fundo, ‘Get Out’ encontra uma maneira subtil e segura de exprimir os sentimentos da comunidade afro-americana relativamente ao clima de intolerância racial na América, que se degradou depois do início da presidência de Trump. Pensemos na história do filme no seu mais básico. Simplesmente, é sobre um afro-americano que, perdido numa comunidade rica só de brancos, se vê vítima de um plano macabro. Ainda mais simplesmente, é sobre um afro-americano que é perseguido por brancos. E no final, o que é que acontece? Esse afro-americano vinga-se dos brancos, tendo que matar todos aqueles que surgem à sua frente para conseguir escapar. E é isto e apenas isto. O conteúdo supostamente alegórico do filme começa e termina aqui. Não almeja nenhuma reflexão, mais ou menos profunda. Não propõe ramificações, nem emocionais (as personagens são todas elas unidimensionais), nem de crítica social. Note-se, por exemplo, que não há um único branco “bom” em todo este filme. Note-se que não há um único afro-americano “mau”. Se fosse ao contrário o filme geraria uma enorme polémica e seria queimado na praça pública. Assim, o filme é aclamado como uma grande alegoria, nomeado para prémios e teve uma quase unânime recepção crítica (99% no rottentomatoes). Sinais dos tempos?
Claro que todos os filmes são um produto do seu tempo, mas também temos de pensar na sua intemporalidade. Portanto a questão que se coloca é se ‘Get Out’ é assim tão intemporal, ou seja, se continua a ser um bom thriller de horror se excluirmos a contextualização dos conflitos raciais da era em que foi feito. Esse é o busílis da questão, porque é a pergunta sensível que a maior parte dos críticos não quer fazer porque tem medo da resposta, ou melhor dizendo, tem medo do que poderá ser acusado de ser, se der uma determinada resposta.
"Gostei de ‘Get Out’ (...) É um bom entretenimento no género do ‘drama cómico de horror’, que dá para rir e soltar um gritinho assustado de vez em quando. Mas não espere algo mais, porque simplesmente não há mais. A sua mediática dimensão provém de algo que é extra-filme (...) Há muitos melhores filmes por aí. Mas não há nenhum que tenha afro-americanos a matar brancos. E aí reside toda a diferença."
Pessoalmente, estou-me a marimbar para estas picardias de Hollywood. É-me igual se o filme é sobre afro-americanos a matar brancos ou sobre brancos a matar afro-americanos. Aceito tudo dentro de uma obra fílmica desde que tenha qualidade e não seja racista nem ofensivo. Ora ofensivo e racista ‘Get Out’ não é, nem de perto nem de longe. Nem realmente para com os brancos. As boquitas que manda são perfeitamente naturais e justificadas. E tem, como aliás fui defendendo nesta crítica, bastante qualidade em termos de realização, actuações e construção do enredo. Mas para mim há dois grandes problemas. O primeiro é que a sua contenção natural (quer temática, quer fílmica) faz com que não seja tão ousado quanto podia ser, em termos de “factor de susto”. E segundo é que o seu grande potencial como sátira negra fica condicionado por coisas que são totalmente externas ao filme.
Se pensarmos bem, todas as questões raciais são pouco pertinentes para o conteúdo do filme em si. O filme não ganha nada com elas, porque não são propriamente uma parte integrante da trama. Chris podia ser índio, asiático ou sul-americano (ou até mesmo um branco, note-se!) que o filme processar-se-ia exactamente da mesma forma, praticamente com o mesmo argumento. E portanto manteria os mesmos problemas. ‘Get Out’ é um filme de horror bem conseguido, que diverte, entretém e assusta quanto baste, mas que na realidade não passa disso. A história é linear. As personagens são superficiais. A profundidade psicológica é parca. O toque de macabro é praticamente inexistente. A premissa é vencedora, o enquadramento também, a realização também. Mas o filme simplesmente não evolui a partir daí e limita-se a prosseguir certo e seguro até ao final sem variar de tom ou de ritmo.
Mesmo assim, gostei de ‘Get Out’. É um bom filme. Mas quando digo bom filme digo-o com a mesma convicção que digo que ‘Scream’ é um bom filme ou ‘Evil Dead’ é um bom filme. Não o digo com a convicção com que digo que ‘The Shinning’ é um bom filme. Veja ‘Get Out’, caro leitor. Veja-o com a minha bênção. É um bom entretenimento no género do ‘drama cómico de horror’, que dá para rir e soltar um gritinho assustado de vez em quando. Mas não espere algo mais, porque simplesmente não há mais. A sua mediática dimensão provém de algo que é extra-filme. E as suas nomeações na era pós #oscarsowhite infelizmente justificam-se da mesma forma. Melhor estar ‘Get Out’ entre os nomeados do que os ‘King’s Speech’ ou ‘The Imitation Game’ desta vida. Mas há muitos melhores filmes por aí. Até de terror. Mas não há nenhum que tenha afro-americanos a matar brancos. E aí reside toda a diferença.
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