Ontem à tarde estava a correr no ginásio, minding my own business, quando numa das televisões começou a dar o filme ‘Oz the Great and Powerful’ (2013) de Sam Raimi. Só vi este filme uma vez, no já longínquo ano de 2013 (originou uma das primeiras críticas desta página) e portanto já há muito me tinha esquecido de um pequeno pormenor que contém e que é extremamente ilustrativo da diferença, de qualidade e de classe, que existe entre o cinema de outrora e o actual. Passo a explicar.
Quer o filme de 1939 com Judy Garland quer esta re-imaginação mais recente começam no mundo “real”, que é retratado a preto e branco. Só quando Dorothy (no filme original) e o Oz de James Franco (no filme de 2013) chegam à mágica Terra de Oz é que um arco-íris de cores garridas inunda a tela, ilustrando o universo de fantasia sonhadora que esta terra representa. Mas há uma gigantesca diferença entre a forma como Victor Fleming e Sam Raimi concebem esta transição entre mundos, esta passagem do p/b para a cor.
A ideia é simples. O mundo real é a p/b e a Terra de Oz é a cores. Tranquilo. Todos os espectadores, dos mais novos aos mais idosos, conseguem entender isso. Sem qualquer tipo de efeitos especiais, o filme de 1939 faz essa transição com uma enorme subtileza. Observe a cena, caro leitor:
Quando a casa aterra em Oz o filme ainda é a p/b porque Dorothy ainda está dentro dela. A casa é um elemento do mundo “real” que o tornado levou para o universo de fantasia, portanto faz sentido que assim seja. Note-se o plano aos 28 segundos deste vídeo. Dorothy abre a porta e, magicamente, o mundo lá fora, o mundo de Oz, está a cores. Então ela transita, como o simples transpor da porta para o exterior, de um mundo para outro, do p/b para a cor. Esteticamente faz todo o sentido.
Claro que este plano crucial (Garland dentro de casa a abrir a porta) primeiro tem um inteligente truque de fotografia e depois já está filmada a cores, embora a fotografia disfarce isso muito bem. Todo o interior da casa está em sombra e as paredes estão pintadas em tons de sépia, para que se conceba a ilusão de óptica da passagem do p/b para a cor. E note-se como essa ilusão é mantida no plano aos 37 segundos, do ângulo inverso. Dorothy, o cãozinho Toto e a flor ao seu lado estão fotografados com cores vivas, enquanto que a desfocada parede da casa ao fundo continua a parecer, devido à cor com que está pintada, a p/b. Brilhante.
Mas agora analisemos a cena análoga no filme de 2013. Supostamente este mesmo efeito poderia ter sido obtido muito mais facilmente recorrendo à tecnologia digital. Supostamente. Mas quando não existe a mesma classe, a mesma mestria, a mesma devoção; quando se está completamente dependente dos efeitos especiais e só se quer exibi-los à maluca, então perde-se a percepção daquilo que realmente constitui a arte de fazer (bom) cinema: a subtileza da ilusão. Observe com atenção esta segunda cena, caro leitor:
James Franco está no seu balão de ar quente no meio do ciclone que o leva à Terra de Oz. A imagem ainda é a p/b e em 4:3. Quando a tempestade amaina, ele acorda e olha para cima. Note-se o plano aos 39 segundos deste vídeo. Toda imagem está ainda a p/b, apesar do mundo que se vê fora do balão já ser a Terra de Oz! Franco levanta-se e espreita para fora com um ar espantado. Mas tudo permanece a p/b incluindo o céu e as nuvens atrás de si.
Então, por volta dos 52 segundos deste vídeo, Franco começa a sorrir e leva a mão ao coração. A câmara afasta-se rapidamente e, ao fazê-lo, a cor começa subitamente a ser injectada na tela e a imagem começa a alargar-se para o rácio moderno. Com todo o esplendor do CGI e toneladas de efeitos visuais, a colorida Terra de Oz é exibida ao espectador e continuará a ser, pelos minutos seguintes.
Mas se pensarmos bem, não houve a transição de um mundo para o outro, como no filme de 1939. Aí a porta de casa era a fronteira entre os dois mundos. Para trás o Kansas e o p/b. Para a frente Oz e a cor. No filme de 2013 não há fronteira. Há apenas o carregar de um botão num computador para que a imagem passe a ser a cores. No filme de 1939 havia uma coerência estética na transição entre os dois mundos. No filme de 2013 não há. Dorothy nunca viu Oz a p/b. Viu essa terra sempre a cores. Já Franco vê-a a p/b durante uns segundos, embora na realidade esteja já a vê-la a cores, como o seu sorriso demonstra. O espectador é que a está a ver a p/b até ao momento em que o realizador, para fazer um plano "bonito", decide mostrá-la a cores. Faz sentido? Não. Portanto, qual das duas transições é a melhor, qual das duas melhor resulta para transportar o espectador para dentro da fantasia? Para mim não há qualquer dúvida.
Assim sendo, qual é a lição que se tira da análise destas duas cenas? Apenas esta: não são os efeitos especiais que fazem um filme, nem mesmo quando esse filme é uma alegoria fantasiosa. 74 anos separam os dois filmes, mas o primeiro continua a fascinar gerações e gerações de espectadores, enquanto que o segundo, apesar de completar agora apenas 5 anos de existência, já praticamente foi esquecido.
O primeiro era uma obra mágica de cinema em que todos os pormenores estavam cuidadosamente pensados e trabalhados para estimular a nossa imaginação. E isso passa também por permitir que o espectador entre com as personagens na fantasia. A subtil cena do filme clássico permite precisamente isso mesmo. Nós passamos com Dorothy a porta de sua casa. Nós transitamos com ela do p/b para a cor. Mas não fazemos isso no filme de 2013, porque o próprio filme não nos dá essa oportunidade. Os efeitos especiais são sempre a sua maior preocupação, mas realmente não estamos interessados na espectacularidade de um reino de fantasia se não acreditarmos nele. O filme de 1939 pode estar cheio de artificiais cenários de estúdio, mas cada um deles têm a magia suficiente para que acreditemos, realmente acreditemos na magia. No filme de 2013 apenas desfrutamos da beleza dos efeitos especiais enquanto pensamos “isto é apenas um filme”. E isso faz toda a diferença.
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