Realizador: Jacques Demy
Actores principais: Anouk Aimée, Marc Michel, Jacques Harden
Duração: 90 min
Crítica: Imagine, caro leitor, um dos mais sumptuosos musicais de Hollywood. Mas num glorioso preto e branco. E em francês. E, pormenor importante, sem músicas. Se conseguir imaginar tudo isto, pode começar a ter uma ideia daquilo que é ‘Lola’ (1961), o filme de estreia do genial Jacques Demy, nos anos de big bang da Nouvelle Vague.
Algures em 2008 ou 2009 tornei-me um jovem ainda mais feliz. Depois de anos e anos indisponível no mercado de cinema em casa (o que o tornava também impossível de encontrar por outras vias), ‘Lola’ foi finalmente lançado numa versão restaurada em DVD por uma distribuidora inglesa. Hoje em dia a Castelo Lopes já lançou o DVD de ‘Lola’ no mercado português mas na altura esse DVD inglês era uma raridade, uma raridade que me apressei a obter. Isto porque quando tinha vinte e poucos anos descobri, e apaixonei-me, pelo cinema de Jacques Demy. Na minha critica a ‘Les Demoiselles de Rochefort’ (1967), o meu filme preferido (excepto a obra de Chaplin), já discuti porque motivo o seu cinema tanto me fascina. Eram filmes sobre inadaptados sonhadores, sobre encontros e desencontros, sobre cenas de vida de jovens buscando um ideal e um rumo num mundo descompensado, como a maior parte do cinema dos mestres da Nouvelle Vague. Mas Demy acrescentava a esta temática o seu cunho pessoal, que provinha da mistura invulgar entre o melodrama teatral, perigosamente perto do estilo novela (Demy era um apaixonado pelos clássicos de Ophüls ou Sirk), e o exuberante musical, inspirado na época de ouro dos musicais de Hollywood (1940-1950). Se adicionarmos a isto muita cor, épicas bandas sonoras de Michel Legrand, o contexto (real) das cidades médias francesas (para quê filmar em Paris como os outros?!), alguma crítica social (mas nunca a perda da individualidade das personagens) e uma ponta de perversidade subtil (sexual por exemplo) está feito o cocktail para um dos pedaços de cinema mais perfeitos de que há memória.
Contudo é estranho notar que Demy não é um nome muito recordado. Até há meia dúzia de anos os seus filmes eram extremamente difíceis de encontrar e quando se recorda a Nouvelle Vague fala-se de Truffaut, Godard, Malle, Renais, mas raramente de Demy. Talvez precisamente pelas razões que citei no parágrafo anterior. Não há muitos críticos fãs de musicais. Não há muitos críticos fãs de melodramas. Não há muitas pessoas que consigam suportar o concilio de ambos estes géneros, em filmes que nos comovem e inspiram em partes iguais, e com pontadas de ironia trágica. Quanto Demy foi ao pico da ópera melodramática, ganhou a Palma de Ouro de Cannes com ‘Les Parapluis de Cherbourg’ (1964). Depois foi à ponta oposta fazer o maior filme feel good de todos os tempos ‘Les Demoiselles de Rochefort’ (1967), e são estas as suas duas obras mais famosas e mais citadas. Mas estes dois filmes formam uma espécie de trilogia das ‘cidades médias francesas’ com um primeiro, o seu primeiro, ‘Lola’.
Graças ao extenso trabalho da sua viúva Agnés Varda (ela própria também excelente realizadora e ainda vida), Demy tem vindo a ser redescoberto, após a sua morte em 1990. Primeiro Varda fez ‘Jacquot de Nantes’ (1991), o soberbo documentário biográfico sobre Demy. Depois iniciou o longo processo de restauro dos seus filmes, que foram sendo relançados aos poucos, culminando na magnífica exposição ‘LE MONDE ENCHANTÉ DE JACQUES DEMY’, que a Cinemateca de Paris exibiu em 2013 e que eu tive a enorme felicidade de poder ver. Agora todos os seus filmes estão disponíveis em DVD, mas é sempre bom regressar aonde tudo começou. É sempre bom regressar a ‘Lola’, que mais uma vez revi na passada sexta-feira.
Como escrevi na minha crítica a ‘Demoiselles de Rocherfort’, Demy proveio do anonimato de uma pequena aldeia francesa, onde se dedicava, na adolescência, a fazer curtas-metragens em stop motion (ver ‘Jacquot de Nantes’ para uma reprodução idílica desta infância). Graças a esses trabalhos, Demy ganhou uma bolsa de estudos de cinema em Paris. Quando a Nouvelle Vague despertou, Demy estava no epicentro, um jovem com vontade de fazer cinema e com enorme sensibilidade para a arte. Com 30 anos, em 1961, Demy conseguiu ter o financiamento de dois grandes produtores; Georges de Beauregard (que tinha acabado de produzir o primeiro filme de Godard, ‘À bout de souffle’) e Carlo Ponti, um dos produtores de excelência de Fellini, Godard e Antonioni. Em Demy viram um novo talento, que desejava, desde o seu primeiro filme, emular as suas grandes paixões cinematográficas. Aliás, a primeira coisa que lemos no genérico de ‘Lola’ é que o filme é dedicado a Max Ophüls, o realizador de famosos (e fabulosos) melodramas da alta sociedade como ‘Letter from an Unknown Woman’ (1948), ‘Madame D…’ (1953) ou ‘Lola Montés’ (1955), e que tinha falecido em 1957. Pode-se dizer que a Lola de Demy é uma homenagem a Lola Montés, mas também, provavelmente, à Lola de Marlene Dietrich em ‘Der blaue Engel’ (1930, também já criticado), já que também ela é uma cantora de cabaret. Contudo, a Lola de Demy nunca será tão interesseira, nem tão trágica como as Lolas anteriores. Porque não era esse o espírito da época. Lola é mais uma jovem francesa inconformada, perdida e inadaptada que busca o ‘ideal Demy’; a felicidade, o amor, o preenchimento do vazio interior, a satisfação do proverbial ennui.
‘Lola’ era suposto ser um grande musical a cores. Mas a falta de fundos obrigou Demy a trocar a cor pelo preto e branco e transformou-o no único musical da história sem música. Contudo, nas mãos de Raoul Coutard, o director de fotografia por excelência da Nouvelle Vague (filmaria por exemplo ‘Le Mepris’) o filme fica com uma composição belíssima e a falta de números musicais (com excepção de um, onde Lola se introduz num misto de sensualidade e desajeito – c'est moi... c'est moi Lola!) não é necessariamente mau. ‘Lola’ poderá ter a desvantagem de ter uma história simples que se repete ao longo do filme, e que os números musicais, a haver, ajudariam a estimular, como acontece em inúmeros filmes musicais. Sem eles, o filme pode tornar-se algo moroso em certas partes, e principalmente no início o espectador mais céptico pode ficar desapontado, especialmente se já tiver lido a unânime opinião crítica de que o filme é uma obra prima em bruto.
Mas aos poucos o filme vai-nos seduzindo. Demy estava a aprender a sua arte e obviamente o filme nunca satisfará tanto como quando ganhou experiência e financiamento para fazer as suas obras-primas subsequentes. Mas há algo de puro, intangível, em ‘Lola’, que escapa até às suas obras mais famosas. Provavelmente é a excitação da descoberta, a virgindade da criação. Em ‘Lola’ todos os temas do cinema futuro de Demy já existem, com uma delicadeza inata, com uma profundidade tão simples que quase não parece credível. E, paradoxalmente, é a ausência da estrutura musical que permite que o filme se torne mais intimista, dando assim mais força e mais realismo a uma história que, ao estilo de Demy, é um conto de fadas moderno. Mas por assim ser o filme já é mágico, já é balético, mesmo sem números de canto e dança. E nas entrelinhas, no pano de fundo, existe sempre a fabulosa banda sonora de Michel Legrand (juntos fariam história nos seus musicais seguintes) que nos guia emocionalmente. O filme confunde-nos precisamente por isso, porque balanceia a clássica abordagem intimista e realista de Demy à vida e ao amor, com uma aura de fantasia que não conseguimos sacudir.
O filme passa-se ao longo de três dias na cidade de Nantes. Começamos por acompanhar a manhã de Roland Cassard (interpretado com contenção por Marc Michel, e que tem um papel secundário em ‘Les Parapluis de Cherbourg’, unindo asisim os filmes). Roland arrasta-se em casa e depois num café até chegar ao emprego, atrasado, perdendo-o. No café ficamos a conhecer a sua personalidade preguiçosa, que desliza pela vida sem rumo, sem objectivos. É no café igualmente que ouvimos pela primeira vez a história de Michel (Jacques Harden), filho da dona, que desapareceu há sete anos, depois de saber que ia ser pai, e nunca mais regressou. Será ele o misterioso homem que anda de descapotável pela cidade e que o filme vai mostrando de vez em quando?
Depois de nos introduzir Roland, o filme vira-se para Lola, a bela Anouk Aimée, que consegue equilibrar (sabe-se lá como) a sua inconstância emocional, quase infantil, com uma profundidade sentida. Lola dança num local entre o cabaret e a casa de alterne, satisfazendo as fantasias dos marinheiros americanos (outro fetiche de Demy) atracados na cidade. Rapidamente percebemos que foi ela quem Michel abandonou há sete anos. Passando os dias entre o pequeno apartamento em que vive com o filho e o cabaret, Lola não faz segredo de que vive na esperança que um dia Michel retorne para ela com a sua fortuna feita. Os diálogos do filme debruçam-se muitas vezes sobre a felicidade idílica do primeiro amor e Lola, como uma criança, agarra-se a essa crença. Com um toque de nostalgia e alguma amargura, percebemos que diversas personagens, em diversos estados da vida, sentem o mesmo. Mas a esperança não pode impedir ninguém de viver a vida, e Lola sabe disso. Por isso, envolve-se com um marinheiro americano, Frankie (Alan Scott), só porque ele a faz recordar Michel e é simpático para com o seu filho. Mas ambos sabem que o seu romance só irá durar poucos dias, até a marinha ser realocada para Cherburgo.
Ao mesmo tempo, Lola encontra Roland na rua (foram velhos amigos de infância) e este, talvez porque não tem mais nada a que se agarrar, apaixona-se por ela. Lola não está muito interessada, mas à falta de mais ninguém quando Frankie partir, estará disposta a dar-lhe uma oportunidade quando ele voltar da Africa do Sul, para onde irá em breve num trabalho dúbio que consegue arranjar. Há ainda na trama uma mãe (Elina Labourdette) e a sua filha Cécile (Annie Duperoux) que Roland encontra numa livraria. A mãe, mais velha e só, também parece ter uma pequena paixão por Roland, ou pelo menos sente o reavivar de uma chama por este ser provavelmente o primeiro homem em muito tempo que lhe presta o mínimo de atenção. Por isso convidando-o para jantar. Já a filha, mais rebelde, acaba por mais tarde encontrar Frankie e parece representar a repetição cíclica da história de Lola com Michel.
Aliás, o círculo parece ser a geometria fundamental de ‘Lola’. Por mais que tentem convencer-se do contrário, ou sonhar com outras vidas, as personagens regressam sempre aos seus estados basilares e mantêm-se fiéis às suas personalidades. As promessas do passado são cumpridas no futuro, e o tempo de permeio é esquecido, como se nunca tivesse acontecido, e a vida continua. Isto é, pelo menos para Lola. Para as outras personagens, isto poderá não funcionar perfeitamente, e em vez disso vêm-se misteriosamente atraídas por Cherburgo (Frank irá para lá com a marinha, Cécile segui-lo-á, a mãe irá atrás dela, e Roland fará lá escala a caminho da África do Sul). Nessa cidade, outros dramas e outros romances acontecerão (como veremos em ‘Les Parapluis de Cherbourg’), e estas personagens poderão eventualmente descobrir a felicidade. Nunca o saberemos. Mas em Nantes só o sonho de Lola se poderá concretizar, só o seu conto de fadas acontece.
Por isso mesmo é que o filme fica um pouco dividido. Por mais de uma hora, segue estas cinco personagens principais (Lola, Roland, Frankie, Cécile e sua mãe) pelas ruas e os interiores estilizados de Nantes (com a fotografia ‘realista’ tão típica da década, aqui com um lustro particular correspondente ao tom da película), onde se vão encontrando umas com as outras sem saberem dos seus conhecimentos cruzados. Em conversas íntimas vão revelando os sonhos, os desejos e as esperanças que formam os seus caracteres, e por momentos parece que o filme não terá um grande propósito para além disso, para além deste retrato em mosaico de anónimos perdidos na sociedade, buscando algo mais, esperando por algo mais. Mas à custa das outras personagens das quais perdemos o rumo, o filme, e todas as histórias, eventualmente se centram em Lola. E aí sim, de repente, tudo faz completo sentido neste filme.
Sem cenas dramáticas, sem picos emocionais, e com uma certa leveza despreocupada e desgarrada, Demy produz uma obra honesta, simples e delicada, um conto de esperança e de fé no primeiro amor. Num mundo moderno, numa França em revolução social, Lola nunca será uma puritana agarrada fielmente à memória de Michel. Se ele algum dia voltar ela dar-se-á a ele incondicionalmente. Se não ela continuará a sua vida, conhecerá outros homens, fará o que tem de fazer para criar o seu filho. Mas isso não implica que ela alguma vez tenha deixado de o amar. O filme pode ser um conto de fadas moderno, e o seu final (pelo menos o de Lola) demasiado fantasioso e esperançoso, mas existe esta credibilidade na história de amor, precisamente porque tem essa base de realidade, por vezes amarga, por vezes pungente, mas por vezes também extasiante. E por isso é uma credibilidade que comove e inspira. Por isso é que neste filme Demy consegue decompor, simplesmente através de diálogos, através destas histórias cruzadas, a essência do amor, a essência do primeiro amor, a essência de precisar e de esperar pelo verdadeiro amor, e os desejos e sonhos associados, as glórias e as tristezas.
No final, o filme não é tão mágico (não poderia ser) como muitos filmes de Demy subsequentes. Para mim, é precisamente por isso que o filme se ‘deixou’ perder nas outras personagens, para dar o contraponto, para que saibamos que para cada história que acaba bem, muitas outras acabarão mal, pelo menos por agora. Cada uma terá o seu dia e o seu local. Poderá ser em Cherburgo (ou não, como se vê no filme seguinte). Poderá ser em Rochefort. Mas será. Se há algo que Demy nos diz é que será. Existe esta subcorrente de esperança que atravessa toda a sua obra. Talvez por isso a personagem de Rolan, a mais, digamos, ‘injustiçada’ deste filme, tem o seu lugar em ‘Les Parapluis de Cherbourg’. E desta forma, Demy embala-nos, caminhando a passos largos para a celebração de vida, a grande obra prima que é ‘Les Demoiselles de Rochefort’.
Apenas podemos imaginar o quão magnificente seria ‘Lola’ se Demy o tivesse filmado como inicialmente queria; com opulência, cor e música. Mas esta essência pura que o filme acabou por conter, manter-se-ia se assim fosse? Provavelmente não. Por vezes as grandes obras do cinema surgem assim, do acaso, do instinto. Por isso é que as obras de estreia de muito realizadores são as mais honestas, as mais verdadeiras das suas carreiras. Em ‘Lola’ Demy vai à essência da sua filosofia cinematográfica, e produz uma simpática e pitoresca história de amor com uma enganadora simplicidade, mas um gigantesco significado. Como muitos filmes do início da década de 1960, representa na perfeição o espírito da década com uma incrível, e por vezes desconcertante, sensação de realidade (um Ophüls para as classes mais baixas), mas ‘Lola’ distingue-se porque tem, já, aquele toque mágico do cinema de Demy. No final de contas é uma obra inspiradora, e abre perfeitamente o caminho para os mágicos espectáculos que Demy iria produzir nos anos seguintes e que tanto amo. Que mais se pode querer de um filme de estreia no seio da Nouvelle Vague? Demy iria ser diferente dos restantes, e é precisamente essa diferença, essa réstia de fantasia e esperança, que existe em ‘Lola’ e que o distingue de outras estreias como ‘À bout de souffle’ (1960) de Godard ou ‘Les quatre cents coups’ (1959) de Truffaut. Como escrevi na minha crítica a ‘Les demoiselles de Rochefort’ cabe agora ao leitor/espectador decidir se capitula ao universo cinematográfico de Demy ou não. Eu capitulo e não tenho vergonha nenhuma de o admitir.
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