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Black Mass

Ano: 2015

Realizador: Scott Cooper

Actores principais: Johnny Depp, Benedict Cumberbatch, Dakota Johnson

Duração: 122 min

Crítica: ‘Black Mass’ (em português ‘Jogo Sujo’…) é um filme sobre a ascensão e queda do gangster James 'Whitey' Bulger, que na vida real foi finalmente apanhado em 2011, com 81 anos de idade, após estar várias décadas foragido da polícia mundial. Nesse sentido, ‘Black Mass’ não se afasta muito do estilo que caracteriza os filmes de gangsters desde os primórdios do cinema sonoro: ‘The Public Enemy’ (1931), ‘Little Caeser’ ou o original ‘Scarface’ (1932), embora claro, com violência muito mais explícita como aquela que caracteriza entradas mais recentes como ‘Departed’ (2006). Ou seja, vemos o culto da personalidade do gangster, as intrigas dentro da ‘família’ e contra gangues rivais, assassinos variados de denunciadores, traidores, infiltrados ou de homens que se atravessam no caminho dos mafiosos e depois o outro lado, o lado policial, dividido entre os corruptos e os agentes heróis. ‘Black Mass’ cumpre todas as expectativas de um filme deste género (segue os trâmites previsivelmente), mas não as supera. No final de contas, acaba por ser apenas mais um, acaba por não ser muito mais que rotina.

Os filmes de gangsters são populares. Como escrevi na minha crítica a ‘Tropa de Elite 2’, “por muito que a reprovem na vida real, as pessoas gostam de ver violência no cinema”. Do mesmo modo que todos brincávamos aos cowboys e aos índios como éramos novos, e como adoramos a adrenalina da explosão dos filmes de acção ou de um showdown de um western, o culto da personalidade de um gangster no cinema satisfaz um desejo macabro dentro de todos nós. Claro que há “desculpas” para a existência e o sucesso destes filmes; nos primórdios, os filmes que citei no parágrafo anterior tinham precisamente o objectivo contrário, de lutar contra o crime e mostrar como os gangsters pereciam no fim, mas ninguém se lembra deles por causa disso. Lembram-se sim por causa da força das suas interpretações e da dimensão (muitas vezes maior que a vida) da personagem central. E são precisamente estas duas dimensões, aliadas a histórias fortes ou a “épicos” estilos de montagem cinematográfica, que fizeram suster os grandes filmes de gangsters até hoje.

Scorsese, DePalma ou Coppola elevaram a fasquia do filme de gangster nos anos 1970, 1980 e ainda 1990, e isso levou a um novo despertar do género no novo milénio. Mas há um fina linha entre o gratuítismo da violência e a arte. No pico, estes homens geraram arte, em filmes como ‘The Godfather’ (1972), ‘Goodfellas’ (1989) ou ‘Carlito’s Way’ (1993). Todos são levemente baseados em histórias reais, mas isso era o menos importante. O importante era a forma como a história era dada, mais ou menos glamorosa, mais ou menos embelezada, mais ou menos violenta, da ascensão e queda da personagem principal. Tudo somado, a personagem, a interpretação, e a força da história valem muito mais do que a forma mais ou menos criativa, mais ou menos explicita como se decide mostrar as várias mortes ou cenas de violência que estes filmes invariavelmente contêm. Por isso é que muitos filmes de gangsters que se fazem todos os anos são esquecidos enquanto outras variantes ainda são recordadas, como o mais urbano ‘Snatch.’(2000) ou mais cómicos ‘Staten Island’ (2009). Porque perceberam perfeitamente que um bom filme de gangsters não tem que ter apenas violência, frases citáveis ou dizer que é baseado numa história real. Precisa de um cunho pessoal. É precisamente isto que parece falhar em ‘Black Mass’. O filme tem algumas dúvidas existenciais, nomeadamente decidir-se entre a convenção daquilo que supostamente faz um bom filme de gangsters e uma ambição artística centrada na sua personagem principal. É uma dúvida que o argumento nunca consegue superar e isso torna-o algo pobre no final, apesar de se construir em bases inegavelmente sólidas.

‘Black Mass’ é o terceiro filme da carreira do actor menor tornado realizador Scott Cooper. Estava ainda na casa dos trinta anos quando lançou o seu primeiro filme como realizador; ‘Crazy Heart’ (2009), que valeu o Óscar de Melhor Actor a Jeff Bridges e que, para estreia, é bastante bem conseguido, com uma simplicidade e lirismo invulgar numa obra de Hollywood. Seguiu-se ‘Out of the Furnace’ (2013) com Christian Bale, um filme que não vi mas que não teve muita aceitação crítica. Com ‘Black Mass’, pelo menos à primeira vista, Cooper volta a realizar um filme fortemente dependente da sua interpretação central: a de Johhny Depp como Bulger. E de afirmar que é uma grande parvoíce dizer, como se diz por aí agora, que este filme marca o regresso de Depp. Depp nunca foi a lado nenhum. Lá por os seus filmes recentes não terem sido sucessos de bilheteira, isso não implica que ele não tenha dado neles excelentes performances. Sim, ‘Transcendence’ (2014) era fraquíssimo, mas a culpa não era de Depp. E os seu papéis em ‘The Lone Ranger’ (2013) ou ‘Dark Shadows’ (2012) podem existir no mesmo universo do seu Jack Sparrow, mas e depois? Não eram extremamente divertidos? E para o serem não é preciso um enorme esforço da sua parte? Aliás, até creio que exigem maior talento que a sua interpretação maioritariamente taciturna como Bulger, tal como quando fez de outro gangster, Dillinger, em ‘Public Enemies’ (2009). Mas em ambos os casos, quando precisa de explodir, Depp fá-lo soberbamente e há que admitir que atinge patamares neste filme completamente assustadores; um psico e um sociopata como nunca foi nos vários papéis “fora” ao longo da sua carreira. 

O filme começa com planos apertados de muitos rostos. Estamos numa sala de interrogatório do FBI. O interrogador é sempre o mesmo. Os interrogados vão mudando. São todos aqueles que trabalharam para Bolger ao longo da sua vida e que agora, apanhados, funcionam como narradores da história à medida que debitam tudo o que sabem. Mas na realidade não é bem assim e a grande incongruência estrutural do filme é logo revelada. Por um lado, o filme parece querer estabelecer que é, não sobre os factos tintim por tintim (graças a Deus tem a autoconsciência para perceber que isso seria pura especulação), mas sobre a lenda de Bulger, tal como vista da perspectiva destes homens que o conheceram. Mas por outro, o filme parece ter receio de que isto não seja suficiente, e usa este artifício apenas como uma conveniência para introduzir as cenas e justificar a passagem do tempo. O filme é exímio a perder-se nestas duas vertentes incoerentemente. Muitas vezes vemos eventos pessoais de Bulger que estes homens não teriam possibilidade de saber. Mas o filme usa as mesmas desculpas para não aprofundar assim tanto a sua vida pessoal e para ostensivamente se focar na sua vida criminal. Então em que ficamos? Neste filme, geralmente no meio-termo.

É embalados por estes antigos capangas de Bulger, começando pelo "armário" violento Weeks (o actor Jesse Plemons) que voltamos aos anos 1970 e começamos a ver a ascensão deste pequeno mafioso, descendente de irlandeses, no sul de Boston (Sulito, como lhe chamam). A sua personalidade é mostrada primeiro com distanciamento, enquanto nos apercebemos da logística costumeira destes filmes de gangsters (quem manda em quê, como o negócio se processa) e depois mais intensamente, através de cenas impactantes, para nos apercebermos da força violenta e intimidatória da sua personalidade. Bulger não hesita em matar quem o trai ou quem está no seu caminho e o filme não se acanha a mostrar isso.

Na primeira parte, o filme atinge o pico em termos emocionais, e Depp consegue dar profundidade, e até alguma vulnerabilidade ao seu papel. Vemos os laços familiares, o código de honra e de sangue, que une estes mafiosos que cresceram nas ruas. O contraste é notório. Bulger pode ajudar uma velhota que foi simpática para ele em criança mas não hesita em matar quem o contraria. É dessa forma também que somos apresentados a três personagens chave; Billy, o seu irmão, um político em ascensão que quer manter as mãos limpas (Benedict Cumberbatch com um estranho sotaque); Lindsay, a jovem esposa de Bulger e mãe do seu pequeno filho (Dakota ’50 Shades’ Johnson); e John, um antigo amigo de infância, agora regressado à cidade como agente do FBI (Joel Edgerton). Todas estas pessoas são família, e portanto quer o irmão senador quer o polícia são bem-vindos em sua casa, e estes retribuem o afecto, mesmo sabendo como Bulger ganha a vida. Uma das grandes mensagens que o filme passa com sucesso é que os laços de sangue são maiores que quaisquer outros na vida. Ao mesmo tempo, a forte relação afectiva de Bulger com o seu filho pequeno é salientada. Tudo isto é alternado com cenas soltas, não necessariamente seguindo um encadeamento lógico, sobre as disputas territoriais e de poder entre os mafiosos.

Então ocorrem dois momentos de viragem. O primeiro é quando John propõe um acordo a Bulger, em nome do FBI. Se ele lhe der informações sobre o sub-mundo bostoniano e a máfia italiana, em troca o FBI fechará os olhos às suas actividades. No início ambas as partes ficam contentes; o FBI conseguirá informações que lhe permitirá acabar com a máfia italiana, e Bulger vê o FBI a dar-lhe cabo da concorrência. O segundo momento de viragem é quando o jovem filho de Bolger fica gravemente doente, sem hipóteses de recuperar.

Mas é aqui também que o filme abandona a sua vertente emocional para nunca mais voltar a ela e, quase paradoxalmente, também praticamente abandona o próprio Bulger, focando-se em vez disso no lado policial e em John. Por exemplo, é quase escandaloso como Dakota Johnson (que tem um papel surpreendentemente interessante; quem sai aos seus não degenera…) desaparece completamente de cena (e eu quero dizer completamente), depois da morte do filho. O que é que lhe aconteceu? Separou-se de Bulger? Ou foi ele que se afastou dela? O filme não mostra, nem sequer refere isso uma única vez, nem nos clássicos textos finais ‘onde estão eles agora’. Ela pura e simplesmente desaparece do filme. O filme pode usar a morte do miúdo para justificar o endurecimento de Bulger, mas há toda uma componente emocional chave da sua personagem à qual inexplicavelmente falta dar seguimento.

Já o arco de John está completamente definido, quer em termos de explicitação na história, quer em termos emocionais. Lentamente, começa a ver as vantagens da sua posição e quase inadvertidamente começa a ficar corrupto, falsificando informação e surfando a onda da ascensão de Bulger. É a perspectiva de John à qual sempre regressamos na segunda metade do filme, enquanto Bulger só aparece para mais rasgos de violência, que fica cada vez mais desesperada à medida que os anos passam, o poder aumenta, mas o cerco do FBI também. É notório como o tempo de antena que tem acaba por ser muito menor que o de John e o quão pouco o filme desenvolve a sua personalidade nestes anos finais. A indecisão entre mostrar a ‘lenda’, o homem fugaz que ninguém realmente conheceu, e mostrar um gangster icónico, digno de suceder a uma longa linha de anti-heróis cinematográficos, é uma constante que o filme nunca consegue ultrapassar e que, na minha opinião, lhe tira poder. Percebe-se a ideia. Os factos da investigação policial são conhecidos. A vida privada de Bulger e as suas artimanhas mafiosas nem tanto. Mesmo assim, o filme é sobre quem afinal? E enquanto o filme fica completamente satisfeito em mostrar Bulger apenas nas cenas em que usa a violência para estabelecer o seu poderio, John até tem direito a uma grande dimensão familiar, representada pelo alheamento da sua mulher (boa performance de Julianne Nicholson). Este contraste é incompreensível. Bulger perde-se num estatuto de lenda, e quase passa a ser o criminoso secundário num filme sobre o polícia. E de dizer que achei patético a forma como John se torna um autêntico idiota (que a voz arrastada de Joel Edgerton só exacerba) quando o FBI começa a descobrir a sua corrupção. Como é possível um polícia corrupto comportar-se desta maneira, sem o mínimo de luta, e sem qualquer capacidade para mentir?!

Tudo somado ‘Black Mass’ é um filme de contrastes. As interpretações são todas de primeira água (destaca-se ainda Kevin Bacon como o chefe do FBI ou Peter Sarsgaard como um pequeno traficante de droga), a realização é sóbria e directa, evitando embelezamentos desnecessários, e, mesmo sendo ostensivamente ‘baseado numa história real’, destramente evita juízos de valor e morais de trazer por casa. Mas depois há o reverso da medalha. A sobriedade do contar dos factos faz com que o filme acabe por dar muita mais importância às cenas de violência exagerada do que às partes dramáticas, violência essa nunca inteiramente justificada. A justificação, claro, é que realmente terá acontecido, mas o filme assume essa realidade e nunca a questiona nem se preocupa em construí-la credivelmente no seio das suas personagens. O filme pode deixar o espectador fazer os seus próprios julgamentos sobre a moral da história, mas ao terminar com a profundidade de uma peça jornalística, não fecha os arcos das suas personagens. Certamente não saberia como fazê-lo, a não ser que especulasse, mas a verdade é que no caso de Bulger já haviam abandonado essa intimidade há quase uma hora. A consequência é que o filme nunca nos consegue inteiramente intimidar ou seduzir com a sua personagem principal, com ou sem uma grande performance de Johnny Depp (que é grande, sem dúvida).

Portanto o que sobra? Um filme à margem da sociedade comum, que se situa num meio fechado da polícia, dos políticos e da máfia, e onde todas as vítimas, pelo menos as imediatamente perceptíveis (com raríssimas excepções) são de uma forma ou de outra marginais. É um filme inteligentemente filmado, mas que não deixa de ser apenas uma sucessão de cenas embelezadas para criar uma lenda, mais humana do que em muitos filmes análogos é certo, mas no fundo inevitavelmente oca, pois está extremamente dependente do imaginário do Bulger verdadeiro, que acaba por não ser icónico. Não está aqui um Corleone nem um Carlito. Sem grandes ramificações, sem universalidade, sem uma moral forte no final, sem o culto da personagem central, e mais importante que isso, sem aquele cunho pessoal de que falava mo início, o filme tem pouca mais profundidade que um documentário sobre Bulger do Canal História. 

Assim, ‘Black Mass’ não é um filme de gangsters de excelência, não é um policial, nem é um filme centrado numa forte personagem principal, já que Depp é relegado para segundo plano na segunda metade do filme. É sim um drama criminal rotineiro que conta uma história verídica com intensidade mas sem grande mestria, com paixão mas sem grande fascínio nem chama. No final de contas é isso que parece faltar; chama. A chama de, num breve momento de prazer pecaminoso, torcermos pelo gangster e assim rendermo-nos ao filme. Um filme para ver, desfrutar e esquecer, e que não merece, nem de perto nem de longe, estar nos nomeados nas próximas cerimónias de prémios. Nem mesmo Depp. E por falar em Depp, quem mais acha que a sua maquilhagem e as lentes que lhe puseram nos olhos fazem-no parecer igualzinho, não ao Bulger verdadeiro, mas a Ray Liotta?! Eis um tipo que tinha dado uma boa interpretação como Bulger. Talvez melhor até que a de Depp…

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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