Realizador: Neil Jordan
Actores principais: Colin Farrell, Alicja Bachleda, Dervla Kirwan
Duração: 111 min
Crítica: No início de 2010 passei umas férias maravilhosas que me levaram à Irlanda. Aí, não pude deixar de notar a enorme publicidade que se fazia por toda a Dublin de um filme com um poster belíssimo chamado ‘Ondine’. Movido pela curiosidade, aproximei-me de um desses posters e li o nome do seu argumentista/realizador: Neil Jordan, o mais afamado artista cinematográfico irlandês da actualidade.
A minha relação com Jordan tem sido uma de altos e baixos. O homem que nos últimos anos se tem dedicado em exclusivo à série ‘The Borgias’ teve o seu pico internacional na sétima arte há mais de 20 anos, em 1992. Após uma série de filmes interessantes nos anos 1980 como ‘The Company of Wolves’ (1984) ou ‘Mona Lisa’ (1986), Jordan foi o vencedor surpresa do Óscar de Melhor Argumento Original pelo igualmente surpreendente ‘The Crying Game’ (1992). Verdade que a qualidade de ‘The Crying Game’ estava mais no seu twist do que no restante filme, e essa característica recorrente, a de histórias assentes numa boa ideia, caracteriza o cinema de Jordan. O problema é que por vezes os seus filmes só tem isso, a ideia, e vivem dela.
Com a fama de ‘The Crying Game’, Jordan teve umas oportunidades em Hollywood, como ‘Interview with the Vampire’ (1994) ou ‘The End of the Affair’ (1999), mas sinceramente sempre achei que esteve melhor de volta à Irlanda, a realizar filmes de teor mais pessoal. Mas mesmo aí foi inconstante. É só comparar o socialmente consciente ‘Breakfast in Pluto’ (2005), um filme não gostei e que vive quase em exclusivo do facto de Cillian Murphy interpretar um transexual, com o absolutamente fantástico ‘The Butcher Boy’ (1997), para mim a sua grande obra-prima. ‘The Butcher Boy’, para além de ter a componente social da pobre infância irlandesa, vive de muito mais, encontrando um enorme poder e uma enorme dimensão nas suas personagens, na sua pungente alegoria, na sua estrutura fílmica e claro, na fabulosa interpretação do jovem Eamonn Owens.
Mas quer goste ou não goste da obra final, há três coisas que identifico e aprecio no cinema irlandês de Jordan: i) uma qualidade mágica ou fantasiosa (real ou imaginada pelas personagens); ii) o facto dessa fantasia colidir, primeiro de mansinho e depois abruptamente com o mundo real, e com os problemas de gente vulgar na Irlanda e iii) a presença de Stephen Rea, o intenso actor irlandês que é uma constante na maior parte dos filmes de Jordan (foi nomeado para o Óscar em ‘The Crying Game’). Quando me apercebi que estes três elementos se mantinham em ‘Ondine’; que depois do thriller de Hollywood ‘The Brave One’ (2007) com Jodie Foster, Jordan regressaria a um filme mais pessoal e mais íntimo na calmaria da sua Irlanda natal; e por fim que Colin Farrell era o actor principal (digam o que disserem acho-o um dos melhores actores da nossa geração) então ver ‘Ondine’ tornou-se uma prioridade. Infelizmente, tive muito que esperar e confesso que já estava a pensar que só o iria conseguir ver em casa. Mas em Outubro desse ano, oito meses depois de ter estado em exibição na Irlanda, um ano depois de ter sido exibido em festivais, chegou finalmente às salas portuguesas. Fui ver e não saí da sala nada desapontado. Aliás, entretanto já comprei o DVD por apenas 1 euro num dos hipermercados deste país, e já o revi umas ou duas vezes no conforto do lar. De cada vez descubro novos pormenores e gosto um bocadinho mais, que basicamente é o que se quer de um filme.
‘Ondine’ é um típico produto do Jordan irlandês, e tem todas as boas características do seu cinema; a história simples e delicada com componentes fantasiosas e que tem uma maior profundidade do que aquela que parece existir à primeira vista, um excelente olho para a composição cénica, e actuações sentidas e verdadeiras. Logo na primeira cena percebemos bem que isto não é um produto de Hollywood. Dez segundos depois do filme começar, um pobre pescador chamado Syracuse (Farrell), no seu decrépito barco de pesca ao largo de uma pequena aldeia piscatória no norte da Irlanda, ergue as redes da água e encontra presa nelas a belíssima Ondine (Alicja Bachleda), tal sereia desprotegida e amedrontada. Um filme de Hollywood certamente nos daria algumas cenas introdutórias da personagem de Farrell, a sua rotina matinal antes de sair de barco em que trocaria uns piropos com outros pescadores ou se queixaria da sua vida diária num bar. Mas para quê perder tempo com isso quando a personagem pode ser construída ao longo do filme, e ser descoberta pelo publico à medida que a própria Ondine a descobre? Mais cedo ou mais tarde o filme precisaria deste momento, a mulher presa na rede de pesca, para poder realmente começar. Jordan dá-o logo à cabeça para o filme se poder dedicar desde o início a coisas mais relevantes.
Syracuse salva então a rapariga e leva-a para a sua cabana isolada junto à água, fora dos limites da cidade. Alimenta-a e arranja-lhe roupas (o que proporciona um ou outro escape cómico), mas ela recusa-se a falar do seu passado, de onde veio, e de como é que apareceu na vida dele em circunstâncias tão peculiares. Timidamente apenas lhe diz o seu nome, Ondine (que significa “aquela que veio do mar”), e deixa que Syracuse tome conta dela. Syracuse é um pobre pescador, conhecido na aldeia pelo seu passado alcoólico e de distúrbios, e que agora está a tentar emendar humildemente a sua vida. Pelo contrário, a sua ex-mulher ainda bebe constantemente com o novo namorado, mas a filha de ambos, Annie, numa cadeira de rodas, ficou ao cuidado da mãe, o que nas presentes circunstâncias não parece fazer muito sentido para Syracuse. Mesmo assim, sempre que pode, Syracuse passa tempo com Annie. Esta, interpretada brilhante e inteligentemente pela estreante Alison Barry (o seu único filme até hoje, o que é uma pena enorme) é talvez demasiado inteligente para uma criança filha de um pescador e de uma bêbada, mas podemos pensar que ela teve de compensar a sua deficiência com imenso trabalho intelectual. Se o fizermos, a sua personagem, neste contexto, já se torna minimamente credível.
No início Syracuse apenas está a tentar fazer uma boa acção por uma mulher desprotegida, mas que obviamente o fascina e seduz. Inevitavelmente, Annie descobre a mulher que está a partilhar casa com o pai e torna-se amiga dela. A história do filme realmente despoleta quando a criança começa a acreditar piamente que Ondine é uma selkie, ou seja, uma espécie de sereia, uma criatura mágica da mitologia Celta que consegue oscilar entre ser marinho e ser humano pondo e retirando uma capa feita de pele de foca. À medida que Syracuse e Ondine lentamente se apaixonam um pelo outro, o espectador acompanha a perspectiva de Syracuse enquanto ele tenta compreender quem é esta bela mulher, e gerir a nova relação no contexto de uma pequena aldeia onde todos sabem da vida (e do passado) de todos os outros. Claro que no princípio nem o espectador nem Syracuse acreditam por um segundo que Ondine é uma criatura mágica, mas aos poucos o filme faz-nos mudar de opinião. Primeiro há a inabalável convicção da personagem de Annie, que nada forçadamente vai racionalizando todas as provas para o pai e para nós, espectadores. Depois há as subtis imagens, truques cénicos de Jordan, como quando Ondine está deitada sobre umas rochas e a forma destas faz parecer que ela tem uma cauda de sereia. E há ainda os eventos misteriosos que ocorrem quando Ondine está por perto. Por exemplo, quando um dia Ondine acompanha Syracuse no seu barco de pesca e este está sem sorte, ela começa a cantar (uma voz etérea e melodiosa numa língua estranha) e de repente as suas redes enchem-se de peixe. Magia? Coincidência? Ou há uma justificação real e credível para os eventos? Quem é Ondine? E quem é o homem misterioso que a observa ao longe? Estará relacionado com o seu passado? Ou é, como Annie suspeita mais tarde, outro ser mágico que a quer levar de volta para o mar?
O filme vai-nos tentando com estas questões à medida que introduz outras mais profundas. O próprio poster do filme diz “a verdade não é aquilo que sabemos. É o que acreditamos”. E o mesmo se pode perguntar acerca da magia. É aquilo em que acreditamos realmente, ou aquilo em que queremos acreditar? Ondine ser ou não ser uma selkie influencia o amor que despoleta entre ela e Syracuse? Não devia, mas o passado que uma pessoa luta por esconder é sempre algo que pode lançar um manto negro sobre o futuro, se o deixarmos. Um dos toques de génio do filme é não deixar que o segredo de Ondine seja o único ponto relevante do argumento (tal como o era o segredo de Dil em ‘The Crying Game’). Em vez disso as questões da pobreza da cidade, os inevitáveis mexericos, a doença da pequena Annie, e a dependência do álcool que Syracuse já ultrapassou (e espera não recair), mas que a sua ex-mulher e o novo namorado ainda mantêm, dão sabor e dimensão ao argumento, ao mesmo tempo que se interligam com a história principal. Tudo isto vai pesar no arco da personagem de Syracuse, o que torna a sua viagem emocional ao longo do filme bastante credível. E depois há ainda as geniais idas de Syracuse à igreja para confessar-se ao padre, que é interpretado precisamente por Stephen Rea. As conversas entre os dois pela janela do confessionário são uma verdadeira delícia e são muito mais do que escapes cómicos; são escapes de humanidade.
Por fim, a química entre Farrell e Bachleda é também de salientar. Farrell como Syracuse está absolutamente brilhante e não é por acaso que ganhou prémios de Melhor Actor num ou noutro festival. Para mim, como disse, ele é um dos melhores actores da nova geração e acho incrível como não é reconhecido como tal. É por ser bad boy? É por ter feito alguns blockbusters? Acho inacreditável, por exemplo, que nem sequer tenha sido nomeado para Óscar de Melhor Actor Secundário em 2007 pela sua interpretação em ‘Cassandra’s Dream’ de Woody Allen, um prémio que lhe devia ter sido dado sem discussão. E que dizer de ‘In Brugges’ (2008) pelo qual ganhou o Globo de Ouro mas nem sequer foi nomeado para Óscar?! Em ‘Ondine’ Farrell mais uma vez prova a sua enorme capacidade e subtileza de actuação, desta vez com o seu original sotaque irlandês cerrado, que costuma esconder nos seus filmes americanos e ingleses. Ao seu lado, Bachleda é também uma presença fascinante, e na altura estava à espera que desse o salto para a ribalta. Mas como muito poucos viram ‘Ondine’, isso ainda não aconteceu…
Mesmo assim, vejo dois problemas em ‘Ondine’. O primeiro é que o facto de não ser uma produção de Hollywood é um pau de dois bicos. Admitamos que o local das filmagens é belíssimo, os enquadramentos são de cortar a respiração e alguns planos, como Ondine a sair da água a determinada altura depois de tomar um banho, são pura perfeição. Mas o que acho incrível é que a composição e as cores dos planos praticamente negam esta beleza. São cruas e sujas. A fotografia é do genial Christopher Doyle (director de fotografia usual dos filmes de Wong Kar Wai, por exemplo), mas aqui houve a decisão, provavelmente propositada, de manter um tom realista e acinzentado na imagem. Na cena nocturna, o clímax do filme em que tudo é revelado, juro que se consegue ver o grão na fotografia. Numa época de alta definição digital, num filme com fabulosas paisagens de montanhas e lagos, uma experiência visual mais gratificante poderia ter sido concebida. Mesmo assim, se Jordan e Doyle o tivessem feito, não estariam a estragar a dualidade que há em ‘Ondine’ entre a realidade que existe e a magia que imaginamos? Talvez. E isso poderá justificar esta escolha de negar cores vivas e contrastantes, que quando vi o filme no cinema me pareceu extremamente descabida, mas que agora já não me afecta assim tanto.
O segundo problema é o desenlace do filme propriamente dito, em que há a revelação do segredo de Ondine. A primeira parte do filme desenrola-se como um conto de fadas moderno e está construída sobre um delicado equilíbrio de emoções (dos indivíduos e da comunidade), não esquecendo contudo a pungência da realidade. Mas de repente, o filme altera completamente o seu tom (provavelmente para dar o choque da revelação), mas esta alteração não me satisfez, e ainda me satisfaz menos agora que já sei o desfecho. Da primeira vez que vi o filme, admito que também já desconfiava do ‘segredo’, já que há bastantes pistas ao longo do filme, por isso nada foi uma grande surpresa. Mas mesmo assim poderiam ter feito mais alarido, poderiam ter criado uma espécie de tensão, poderiam ter esticado mais a situação, poderiam ter observado e ponderado mais as reacções das personagens. Mas nada disso acontece. Dois terços do filme são incrivelmente bem construídos. De repente, é tudo dado com imensa pressa, os eventos são atirados para a câmara ao desbarato, e despacha-se o argumento para chegar ao final. Não deixa de ser um desenlace interessante (que para o espectador menos atento poderá até ser uma surpresa agradável) mas sinceramente poderia ter sido feito de uma forma bem mais trabalhada.
Retirando esta forma de dar o twist que continuo sem apreciar em ‘Ondine’, não posso deixar de dizer que este é um filme magnífico. Aliás, até fui um defensor que era um dos melhores e mais importantes filmes de língua inglesa desse ano, o que suscitou alguma incredulidade de muita gente. Mas passado este tempo, mantenho essa opinião. Porquê? Porque é um filme humilde com personagens humildes, mas que tem um enorme coração. É um daqueles filmes que não está destinado a ganhar prémios (nos prémios de cinema da Irlanda, Neil Jordan até perdeu Melhor Realizador para Jim Sheridan naquela aberração que já critiquei chamada ‘Brothers’!), é um daqueles filmes que teve uma distribuição contida e de que muito pouca gente falou e falará, mas nada disso é necessariamente mau. Porque assim pode ser descoberto e apreciado pelo espectador quando ele menos está à espera.
Comparado com os filmes mecânicos e acéfalos que chegam constantemente dos Estados Unidos, ‘Ondine’ é uma pequena pérola cinematográfica, que se “limita” a mostrar uma história simpática e terna, enrolada num contexto e num twist mais realista, mas que não deixa de ter um final feliz como se quer dos contos de fadas. Está feito num estilo clássico e intimista de realização, flui bem, consegue tocar o espectador emocionalmente, possui belíssimos cenários e excelentes actores. Talvez a história não satisfaça completamente no final, e talvez o delicado sorriso ‘tudo está bem quando acaba bem’ com que termina possa ser algo forçado no contexto da história. Mas a alegria e a magia da vida estão nas pequenas coisas e independentemente do passado todos têm uma hipótese de redenção. São estas duas mensagens simples e talvez algo batidas que ‘Ondine’ transmite, mas de um modo inteligente e humano, nada batido, e isso constitui o seu encanto. Acho que é essa a palavra que melhor caracteriza este filme, tem encanto. Não consegue ser melhor que o magnífico ‘The Butcher Boy’ mas é o melhor filme que Jordan fez desde então. Um drama social mascarado de conto de fadas moderno, realista e até humilde, com um toque de ilusão e esperança que agradará a vários públicos. Um filme com uma mensagem, mas que não se cinge a ela. Em vez disso revela um enorme coração, através do drama das suas personagens.
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